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segunda-feira, 6 de abril de 2015

A linha da mão esquerda: João Cabral crítico de Joan Miró



Fernando Pessoa (2)
















§ Conforme depoimentos em diversas entrevistas, João Cabral de Melo Neto sempre manifestou o seu desejo e vocação para a atividade crítica, seja a de si mesmo, a crítica sobre a sua própria poesia, ou uma crítica ao outro – “Meu ideal foi sempre ser crítico literário. (...), mas a minha poesia é quase sempre crítica.”[1] Essa vocação se revela em toda a sua obra, sendo tema constante de suas poesias, bem como motivo de uma antologia organizada pelo próprio poeta, o livro Poesia crítica, na qual escreveu como apresentação na Nota do autor: “Este livro reúne os poemas em que o autor tomou como assunto a criação poética e a obra ou a personalidade de criadores poetas ou não.”[2] Nesse sentido, conforme o seu assunto e estrutura, essa antologia foi dividida em duas partes: a primeira, intitulada Linguagem, onde João Cabral faz crítica da própria atividade poética, e a segunda, intitulada Linguagens, onde ele faz a crítica da obra ou da personalidade de criadores, poetas ou não. Dentre os diversos criadores abordados pela sua poesia crítica, encontramos, no poema O sim contra o sim, o pintor Joan Miró. Além deste poema, Cabral também escreveu um longo ensaio sobre Miró, intitulado Joan Miró, que foi publicado, em sua primeira edição, numa pequena tiragem de luxo, com gravuras originais de Miró, e hoje se encontra editado em suas Obras completas.



[1] João Cabral de Melo Neto – Edla van Steen, Viver e escrever, v. 1, Porto Alegre, L&PM, 1981. In: Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, FNB; Mogi das Cruzes, SP: Universidade Mogi das Cruzes, 1998.
[2] João Cabral de Melo Neto, Poesia crítica (antologia). Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.



A linha da mão esquerda: João Cabral crítico de Joan Miró (2)


Fernando Pessoa


Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer sim.

F. Nietzsche


§ Conforme depoimentos em diversas entrevistas, João Cabral de Melo Neto sempre manifestou o seu desejo e vocação para a atividade crítica, seja a de si mesmo, a crítica sobre a sua própria poesia, ou uma crítica ao outro – “Meu ideal foi sempre ser crítico literário. (...), mas a minha poesia é quase sempre crítica.”[1] Essa vocação se revela em toda a sua obra, sendo tema constante de suas poesias, bem como motivo de uma antologia organizada pelo próprio poeta, o livro Poesia crítica, na qual escreveu como apresentação na Nota do autor: “Este livro reúne os poemas em que o autor tomou como assunto a criação poética e a obra ou a personalidade de criadores poetas ou não.”[2] Nesse sentido, conforme o seu assunto e estrutura, essa antologia foi dividida em duas partes: a primeira, intitulada Linguagem, onde João Cabral faz crítica da própria atividade poética, e a segunda, intitulada Linguagens, onde ele faz a crítica da obra ou da personalidade de criadores, poetas ou não. Dentre os diversos criadores abordados pela sua poesia crítica, encontramos, no poema O sim contra o sim, o pintor Joan Miró. Além deste poema, Cabral também escreveu um longo ensaio sobre Miró, intitulado Joan Miró, que foi publicado, em sua primeira edição, numa pequena tiragem de luxo, com gravuras originais de Miró, e hoje se encontra editado em suas Obras completas.


















§ Nessa sua crítica a Joan Miró, João Cabral ressalta dois elementos complementares e igualmente fundamentais de sua pintura: o rompimento com o paradigma tradicional da composição renascentista e o constante esquecimento de todo e qualquer hábito ou habilidade, o desaprender, que, resguardando a inocência de sua criação, mantém o vigor do inédito em seus quadros. A partir desses dois elementos, Cabral caracteriza a obra de Miró como uma “pintura viva”.


§ João Cabral defende a tese de que “o Renascimento criou a pintura”, à medida que, até então, o que era pintado não se encontrava em nenhuma relação específica com os limites da superfície que o continha. Seja nos desenhos rupestres, em retábulos ou nos afrescos murais, as imagens estavam sempre soltas no espaço, a serviço de uma função simbólica ou utilitária. 


Por sua vez, a superfície era um elemento neutro, cuja função era unicamente suportar a figura pintada. Até então, somente na pintura decorativa a superfície era relevante, mas também apenas em um sentido funcional. “Pode-se dizer que o Renascimento associou o objeto, isto é, a representação utilitária, ou a utilidade da representação, à superfície decorada, isto é, à utilidade da contemplação. Dessa associação nasceu a pintura, o que tem sido para nós a pintura, o quadro.”[3]





Com essa associação, a representação da figura passa a ser estruturada numa relação tanto com a paisagem, quanto com os limites do quadro, a moldura; e sempre no sentido de obter-se, nas duas dimensões da superfície da tela, uma ilusão tridimensional do espaço, da paisagem na qual a figura se situa. Com isso, a pintura, desde o seu nascimento, vai buscar uma dimensão que não é propriamente a dela, a profundidade, mas própria do relevo e da escultura. Cabral ressalta o fato de que para o sentido de profundidade ocorrer na superfície do plano é necessário haver uma visão do conjunto estruturada a partir de um único ponto, aquele aonde as três dimensões devem ser apreendidas simultânea e articuladamente. Por demanda da ilusão de terceira dimensão, na medida em que ela exige a fixação do espectador em um ponto ideal, no qual, e somente a partir do qual, essa ilusão se torna possível, a composição renascentista anulou o aparecer dinâmico do tempo em prol da aparência do espaço. Com a composição equilibrada a partir de um centro que organiza a reunião de todas as partes, a pintura posterior ao Renascimento fixa a vista na harmonia desse equilíbrio. Neste sentido, segundo o poeta-crítico, em seu próprio nascimento, a pintura negligencia o ritmo do tempo a fim de conquistar o equilíbrio do espaço, obrigando ao espectador exercer apenas uma única modalidade de sua visão, aquela que, detendo-se no ponto ideal do quadro, veja instantaneamente as suas três dimensões e, assim, obtenha a ilusão de profundidade na superfície pintada. Harmonia, equilíbrio e proporção entre figura e fundo passam a ser os elementos constitutivos de toda e qualquer pintura, os seus pressupostos fundamentais. A imposição desses elementos, subjacente às leis que constituem a composição renascentista, promove os princípios de toda pintura, instaurando o estatismo do olhar como a sua condição fundamental. “Da mesma maneira que é a contemplação estática, instantânea, a convenção a que se submete o contemplador desta pintura, é o estatismo, nascido daquela convenção, o que se poderia chamar seu estilo, o espírito de sua organização.”[4]


De acordo com esta tese, João Cabral de Melo Neto compreende que o estatismo espacial, imposto pela necessidade ilusória da terceira dimensão, estrutura a composição da pintura renascentista, forma o “espírito de sua organização”, bem como determina, até os dias atuais, todo o seu desenvolvimento posterior.




§ A composição de um quadro é o que, juntando o que nele foi posto, estrutura e mostra a sua imagem. Embora seja o que estrutura e mostra o que é visível em uma pintura, a composição permanece sempre oculta, invisível, na imagem do quadro. Como o espectador tem a tendência de sempre só ver o que é visível, ele não se dá conta da composição, que é percebida sem uma compreensão explícita, imperceptivelmente; a não ser quando, imperfeitamente concebida, ela se evidencia em seus defeitos. “Portanto, a composição é recebida sem que a atenção se dê conta. É nesse plano, em que a inteligência não se dá conta, que ela se cristaliza em hábito.”[5] O costume do hábito se constitui numa lei que, embora não esteja dita nem escrita, todos conhecem, acolhem e obedecem, ele forma a memória de uma tradição, a sua história. E foi pelo costume habitual dos preceitos de centralização, equilíbrio e harmonia, que a composição renascentista tornou-se o modelo exemplar de toda pintura, determinando, até os dias atuais, a sua história. Nesse sentido, João Cabral compreende que a pintura se fundou na modalidade de composição renascentista que, por ter como finalidade provocar no espectador uma ilusão de profundidade, impõe o estatismo imediato do olhar no ponto em que a harmonia do quadro se estrutura, privilegiando o equilíbrio do espaço em detrimento do ritmo do tempo.




§ “Seria possível outra forma de composição? Seria possível devolver à superfície aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimensão destruiu completamente? A pintura de Miró me parece responder afirmativamente a essa pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar à superfície seu antigo papel: o de ser receptáculo do dinâmico. Ela me parece uma tendência para libertar o ritmo do equilíbrio que o aprisiona e que aprisiona toda pintura criada com o Renascimento.”[6]

§ Para Cabral, ao abandonar a ilusão de profundidade e, assim, libertar a composição de um centro dominante, a pintura de Miró rompeu com as normas, com os paradigmas renascentistas e, abandonando o seu equilíbrio estático, resgatou o dinamismo do ritmo, a fluência do tempo. Contrário a qualquer hierarquização entre os elementos de seus quadros, de um centro de interesse a partir do qual a composição se estrutura, Miró desintegra a noção de unidade da tela. Não há mais uma subordinação de elementos a um ponto central, organizador e dominante; em sua pintura tudo se propõe simultânea e igualmente importante, exigindo do espectador uma série de observações sucessivas, um movimento do olhar que, agora, deve deter a sua atenção em cada setor do quadro: “Ele multiplica quadros dentro de um quadro e obriga ao espectador a uma série de atos instantâneos, a uma contemplação descontínua.”[7]




Desse modo, fragmentando a unidade hierárquica de seus elementos e descentralizando o interesse do quadro, Miró liberta a pintura tanto de sua moldura, quanto de sua paisagem, disso que a havia aprisionado no espaço da composição renascentista, a fim de explorar o sentido dinâmico da superfície, o tempo. Como não há mais uma grande composição modulada pela harmonia tonal, que impõe ao espectador um movimento contínuo e único, previsto e controlado, mas uma estrutura melódica fragmentada e serial, livre de toda predeterminação ou qualquer previsão, a pintura de Miró exige um permanente discorrer da atenção sobre a superfície; como não há mais uma solução, uma harmonia que, com todos os elementos unificados, permite uma única visão geral do quadro, o espectador agora precisa percorrer o olhar por cada região da tela, deter-se em seus elementos e, simultaneamente, se encaminhar aos outros – realizando, assim, no movimento de sua visão, uma ação temporal.




  
De acordo com João Cabral, a busca pela dinâmica temporal da pintura, esquecida pela tridimensionalização espacial da composição renascentista, se faz ver, fica evidente na obra de Miró, com o crescente poder da linha e suas inusitadas possibilidades rítmicas e melódicas. Ao contrário da composição tradicional, na qual a linha, por ter uma natureza essencialmente dinâmica, foi empobrecida, anulada, eliminada, em Miró a linha é fundamental.
“Nesta composição, a linha não é um elemento perigoso como se dá com a composição tradicional, onde ela, se não está dominada, é um elemento dissociador. Nesta composição, a linha é a mola. É não somente o que contemplar, mas a indicação, o guia, a norma da contemplação. Ela vos toma pela mão, tão poderosamente, que transforma em circulação o que era fixação; em tempo, o que era instantâneo.”[8]


§ A obra “El diamante sonrie al crepúsculo”, pintada em 1947 e atualmente exposta na Fundação Miró, em Barcelona, é um exemplo do que Cabral indica ser o poder da linha de Miró. Em um fundo azul, esverdeado, claro, celeste, o quadro apresenta cinco manchas redondas, de tamanhos e cores diferentes, com bordas esvoaçadas: à esquerda, na parte superior, a mancha maior, preta, noturna, e na parte inferior, a menor, verde; à direita, uma vermelha embaixo e outra amarela em cima, diurnas; no centro da tela, uma mancha violeta, crepuscular, dividindo, como nos dados, o quadro em cinco áreas. Tais manchas são enoveladas por quatro grupos de linha: uma abaixo da preta, rítmica e rápida, angulosa e abissal, envolve a pequena mancha verde; outras duas, uma envolta no vermelho e a outra, no amarelo, com linhas mais sinuosas e melódicas, lentas e encantadas; e outra central, que começa rítmica e termina melódica, envolvendo, de cima a baixo, a mancha violeta. Entre a noite e o dia, sobre o crepúsculo central, um olho vertical, circunscrito numa linha, sugere uma face a sorrir. Três estrelas de Miró, uma em cada região da tela, e cinco pares de bolinhas pretas interligadas. Visto de longe, o quadro aparenta uma unidade geral que articula os seus elementos em uma totalidade espacial; mas, assim, as linhas perdem as suas propriedades lineares, tornam-se massas, figuras abstratas.
Entretanto, na proximidade, com o interesse de ver detalhes, o quadro revela a singular e contínua trajetória de cada linha, o seu nascimento, desenvolvimento e fim, encaminhando o olhar por percursos inusitados, em movimentos e velocidades diversas, diferentes ritmos e estranhas melodias. Tais linhas são guias que obrigam o espectador ao dinamismo visual; com seus deslocamentos inesperadamente vivos e lúdicos, tais linhas provocam sensações de calma e serenidade, vertigem e angústia, turbilhão, fluidez, alegria. As linhas de Miró operam uma circulação do olhar que transforma o que era fixo e instantâneo em dinâmicas temporais, o que era representação espacial em disposições afetivas. Diferente da representação da imagem, essas linhas nos provocam experiências de tempo.

§ Com as suas linhas, Miró constitui organismos que nascem e crescem em formas vivas, dinâmicas, surpreendentes. Ao contrário do fio de Ariadne que leva à saída, as linhas de Miró conduzem a visão por labirintos onde perdemos tudo que é conhecido, já sabido, certo – onde nos perdemos. Nessas linhas não há certezas, previsões, métodos, apenas descobertas, surpresas. Sempre recomeçando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem a visão habitual, automática, e impõe, com o inusitado da surpresa, um olhar inocente, original. Tal como às manchas coloridas, elas nos enlaçam, confundem, embaralham o já sabido – e nos restituem a criança, a criação de ver o mundo como pela primeira vez. Os quadros de Miró desembaçam os olhos e lavam a alma, proporcionam alegria, leveza, sorrisos.


§ Sorrisos de esquecimento e inocência. Ao contrário de ter uma gramática, uma lógica que, resolvendo todos os problemas, possui todas as respostas, para além das leis ou pressuposições habituais, Miró está sempre, em cada quadro, aprendendo a pintar. Esta capacidade de desaprender todo já sabido e sempre recomeçar é o outro elemento que Cabral ressalta como igualmente fundamental da pintura de Miró. “A obra de Miró me parece nascer da luta permanente, no trabalho do pintor, para limpar o seu olho do visto e sua mão do automático. Para colocar-se numa situação de pureza e liberdade diante do hábito e da habilidade.”[9] Foi a partir, e através, dessa luta, do trabalho do pintor desaprender o já sabido, que Miró realizou uma efetiva superação das normas da composição renascentista. Portanto, tal superação não ocorre como um processo intelectual, teórico, mas com a força do desaprender todo o habitual que, perdendo o seu automatismo, se abre ao embate da criação, à necessidade de aprender o que fazer a partir, e na medida, de seu próprio acontecimento. Interessado em sua obra, Miró esqueceu a tradição.
Em sua prosa crítica, Cabral enfatiza tanto que Miró não possui um sistema, conceito ou fórmula de composição, quanto que ele não busca combater, criar leis contrárias, à composição renascentista tradicional. Igualmente distante tanto do abandono à inspiração quanto da segurança do saber acadêmico, Miró, totalmente interessado em sua atividade, pinta com esquecimento e inocência. “Nada existe exterior à sua atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, nenhuma fórmula, à qual ele deixe a missão de buscar tal solução, com a qual ele compara a sua criação.”[10] Cabral localiza a força de Miró neste não saber, em sua capacidade de esquecer de todas as soluções já realizadas e sempre, de novo, aprender a pintar pintando – o que, por sua própria originalidade, inviabiliza aferir uma lei, estilo ou norma de sua composição.
Por buscar compreender a pintura em seu próprio ato criador, Cabral ressalta a importância que o pintor dava à atividade de pintar, uma valorização do fazer que coloca a finalidade do trabalho em sua própria origem, no sentido de considerar o fazer não como o meio para se chegar ao quadro, mas o quadro como pretexto para pintar – “Miró não pinta quadros. Miró pinta.”[11] Por se concentrar em sua ação e descobrir o que fazer no próprio fazer, ao contrário de já saber previamente o que deve pintar, Miró busca compreender o que precisa ser feito no embate entre a mão e a matéria, no acontecimento desse trabalho. “Esse conceito de trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permite, ao artista, o exercício de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mínimo resultado a que seu trabalho vai chegando.”[12] Esse julgamento não ocorre como um policiamento que visa corrigir a ação, um esforço de controle e apoderamento da atividade, mas como uma atitude de interesse, vigília e lucidez própria do artista completamente entregue ao seu acontecimento, à ação de criação – um sagrado dizer sim.


§ No poema O sim contra o sim, Cabral escreveu:

Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.

A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.[13]


O desaprender é a possibilidade de, por meio do esquecimento, se impor a necessidade de sempre, outra vez, aprender um novo começo. Ao contrário do já sabido, seja pelo entendimento ou pelo hábito, do que é feito automaticamente, sem pensar, o desaprender demanda o permanente esforço de manter o saber na medida do aprender, sem dispensar o pensamento. Ao sentir a mão direita demasiado sábia, tão hábil que já não inventava mais nada, Miró passou a pintar com a mão esquerda a fim de reaprender, a cada linha, em cada instante, a recomeçar-se. Para Cabral, esse eterno recomeço do ato criador é a força do trabalho de Miró, a originalidade que mantém a sua obra sempre viva. Ao contrário do sentido de harmonia do que está equilibrado, Cabral indica que a pintura de Miró busca obter a sensação de vivo, do inédito que, surpreendendo, desperta.
“É a esse vivo que parece aspirar a pintura de Miró. Isto é, a algo elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hábito e a algo que vá, por sua vez, romper, no espectador, a dura crosta de sua sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa região onde se refugia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o inédito, o não-aprendido.”[14]





§ A força da criação de Miró faz sua obra parecer viva, no sentido de original, espontânea – a obra guarda o frescor, o vigor de sua origem. Pela vigência desse vivo, ela pode romper a crosta da sensibilidade do espectador, formada pelo hábito de seus sentidos cotidianos, ordinários. O hábito caleja; a sua familiaridade forma uma casca que impede as percepções do mundo e automatiza tanto as compreensões quanto as ações dos homens. Por guardar o seu vigor original, a vigência extraordinária de sua experiência, a obra de Miró espanta, acorda essa sensibilidade adormecida no hábito. O vivo espessa a vida, desperta a capacidade de saborear o inédito de sua própria origem – e a origem é a força vital, a essência primordial, da própria vida. A partir de esquecimento e inocência, a pintura de Miró, superando a composição renascentista, caracterizada pelo estatismo espacial, mostra a dinâmica temporal da vigência originária da vida.





[1] João Cabral de Melo Neto – Edla van Steen, Viver e escrever, v. 1, Porto Alegre, L&PM, 1981. In: Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, FNB; Mogi das Cruzes, SP: Universidade Mogi das Cruzes, 1998.
[2] João Cabral de Melo Neto, Poesia crítica (antologia). Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
[3] Idem, Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 691
[4] Idem, ibidem, p. 693
[5] Idem, ibidem, p. 709
[6] Idem, ibidem, p. 695
[7] Idem, ibidem, p. 697
[8] Idem, ibidem, p. 703
[9] Idem, ibidem, p. 711
[10] Idem, ibidem, p. 715
[11] Idem, ibidem, p. 711
[12] Idem, ibidem, p. 712
[13] O sim contra o sim. Serial. Em: Idem, ibidem, p. 298
[14] Idem, ibidem, p. 718

3 comentários:

  1. Lindo isso, Miró me lembra Manoel de Barros, essa verdez das coisas recém nascidas, virgens, abertas ao novo.

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    1. Obrigado pelo comentário, Verônica. Concordo que há em Manoel de Barros uma semelhante busca pela linha da mão esquerda.

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