Fernando Pessoa (4)
A relação entre arte e verdade sempre foi pensada no
Ocidente a partir de um paradigma fundamental: a separação entre ser (essência
inteligível) e aparecer (aparência sensível); e a conseqüente vinculação do ser
ao conhecimento filosófico-científico e do aparecer à arte. Após o exemplo
socrático da expulsão do poeta da cidade ideal, a tradição filosófica passou a
interpretar a relação entre arte e verdade desde a contraposição aparência versus essência, sensível (corpo) versus inteligível (alma), ilusão versus verdade. Nesse sentido, a arte veio
a ser interpretada como uma atividade que manifesta a beleza sensível, aparente
e ilusória do real, o belo estético, sendo, portanto, oposta ao conhecimento
científico da verdade, compreendido como uma certeza inteligível, essencial e
efetiva do que as coisas são. A tradição ocidental do pensamento, ao pressupor
a separação entre ser e aparecer, contrapôs arte e verdade na disjunção “sensível
e inteligível”, concedendo um maior valor a esse, como fundamento da ciência,
do que àquele, como princípio da arte.
Arte e verdade no
pensamento de Nietzsche
A
arte não reproduz o visível, faz visível.
Paul Klee
A relação entre arte e verdade sempre foi pensada no Ocidente a partir de
um paradigma fundamental: a separação entre ser (essência inteligível) e
aparecer (aparência sensível); e a conseqüente vinculação do ser ao
conhecimento filosófico-científico e do aparecer à arte. Após o exemplo
socrático da expulsão do poeta da cidade ideal, a tradição filosófica passou a
interpretar a relação entre arte e verdade desde a contraposição aparência versus essência, sensível (corpo) versus inteligível (alma), ilusão versus verdade. Nesse sentido, a arte veio
a ser interpretada como uma atividade que manifesta a beleza sensível, aparente
e ilusória do real, o belo estético, sendo, portanto, oposta ao conhecimento
científico da verdade, compreendido como uma certeza inteligível, essencial e
efetiva do que as coisas são. A tradição ocidental do pensamento, ao pressupor
a separação entre ser e aparecer, contrapôs arte e verdade na disjunção “sensível
e inteligível”, concedendo um maior valor a esse, como fundamento da ciência,
do que àquele, como princípio da arte.
O pensamento de Nietzsche, a sua filosofia com o martelo, opôs uma
crítica tão radical a esses pressupostos, que eles começaram a ruir; após as
suas considerações, esses paradigmas perderam a sua validade universal, eles
não possuem mais uma legitimidade incondicional no mundo contemporâneo. A fim
de abordar a questão da arte no pensamento contemporâneo, este texto propõe
mostrar como Nietzsche, rompendo com essa avaliação tradicional, interpreta a
arte não mais no âmbito da beleza estética, mas como uma experiência
fundamental da dinâmica própria de vida – o que ele chamou de “vontade de
poder” (Wille zur Macht) –, que
promove no homem uma transvaloração de seus valores tradicionais. O propósito
deste texto é mostrar como a arte, vista desde a perspectiva da vida como
vontade de poder, é compreendida por Nietzsche como um antídoto contra a
decadência, a doença, da verdade: “Temos a arte para não perecer na verdade.”[1]
Como herdeiro da tradição filosófica, Nietzsche também contrapôs arte e
verdade na disjunção aparência sensível e essência inteligível; todavia, ao
contrário do modo tradicional, que outorga mais valor à verdade, considerando a
ciência mais importante do que a arte, já desde o seu primeiro livro, Nietzsche
busca mostrar que, a partir da perspectiva da vida, a arte tem mais valor do
que a verdade:
A relação entre arte e verdade é uma questão que se tornou grave para
mim desde o princípio; e hoje ainda experimento um horror sagrado diante deste
desacordo. Meu primeiro livro lhe é consagrado. O nascimento da tragédia professa a fé na arte, sobre o fundo de
uma outra crença: a saber, que não é
possível viver com a verdade; que a “vontade de verdade” já é um sintoma de
degenerescência...[2]
A esse propósito de, a partir da perspectiva da vida, ver a ciência com a ótica do artista,
Nietzsche chamou de “transvaloração de todos os valores” (Umwertung aller Werte), o que devemos compreender como sendo o seu
projeto de superação da decadência do pensamento tradicional, de transformação
de sua concepção metafísica de verdade – o que ele chamou de “transmundo” (Hinterwelt). Tal como o termo
meta-física, a palavra trans-mundo também indica um buscar o que está além da
física, do mundo. O transmundo como modalidade metafísica do pensamento, indica
o propósito humano de procurar princípios universais e necessários para
fundamentar a realidade de nossa existência. Ao contrário de assumir sua
condição temporal, onde tudo está submetido à dinâmica finita de nascimento e
morte, ao devir conjuntural da transitoriedade, o homem busca uma verdade
autônoma e eterna das coisas, a partir da qual ele pode obter certeza da
realidade e, assim, estabilidade, domínio e segurança.
Nietzsche compreende que, desse modo, a ciência concebe a ficção de um
tansmundo conceitual, perfeito e eterno, que serve como modelo para avaliar
esse nosso mundo como imperfeito, ilusório, o que não deveria de ser[3]. O
transmundano corresponde à representação de uma eternidade paradisíaca, a
verdade conceitual que, por tornar tudo disponível à dominação da certeza,
acaba provocando no homem um desprezo ao que é efetivo, o que passa então a ser
visto como ilusório, o mundo aparente. Com essa ficção, o homem inventa um
mundo verdadeiro, concebido pela representação de princípios, conceitos e
juízos, em detrimento da experiência de nosso mundo da vida, da natureza e da
história. Cria-se um lado de lá para difamar o lado de cá; um além eterno para
depreciar a nossa condição temporal.
Em resumo: o mundo, tal como deveria ser, existe; este mundo, o mundo
em que vivemos é um erro: este mundo, o nosso, não deveria existir. A crença no
ser é apenas uma conseqüência: o verdadeiro motor primeiro é a descrença no
devir, a desconfiança ao devir, o desprezo do devir. Qual é o homem que
raciocina dessa maneira? Uma espécie improdutiva e doente, uma espécie cansada
da vida. (...) A crença de que o mundo que deveria ser existe verdadeiramente é
uma crença dos improdutivos, que não querem criar o mundo tal como deve ser.
Admitem que já existe, buscam os meios para se chegar a ele. “Vontade de
verdade”: essa é a impotência da vontade de criar.[4]
Nietzsche considera a “vontade de verdade” (Wille zur Wahrheit) um sintoma de degenerescência do homem doente,
improdutivo e casado da vida – aquele que nega a necessidade de decidir o que é
na conjuntura de seu acontecimento e, por isso, quer certeza, a estabilidade e
a segurança da verdade. Por não suportar a tarefa de criar a sua própria
realidade, de vir a ser em si e por si mesmo o seu próprio ser, esse homem
busca, por todos os meios, submeter o real às regras de princípios lógicos, a
fim de tornar todo existente possível de ser pensado e, assim, súdito do
espírito – seu espelho e reflexo.
À medida que a verdade do real está na certeza do homem, esse pode
conhecer a priori a própria essência
de tudo que é, tornar-se mestre e senhor de todas as coisas – aquele que pode
não só conhecer, como também corrigir a vida. Concebendo a realidade a partir
de princípios que possam ser, previamente, calculados, a certeza do homem passa
a ser a medida do mundo – o seu “leito de Procusto”. Com a imposição da certeza
como medida do real, o mundo torna-se uma coisa para o homem, um ob-jeto – o
que está contra-posto ao que é sub-posto, ao sujeito. Tomando previamente o
homem como sujeito e o mundo como objeto, o real se predispõe a ser dominado
pelo conhecimento objetivo do homem, que pode assim contar previamente com a realidade do mundo. O conhecimento torna-se uma
certificação do que já era contado, esperado, com os princípios do entendimento
– conhecer é certificar, calcular. Desse modo, a ciência estabelece as
condições prévias, a partir das quais pode haver um conhecimento a priori; ela pré-dispõe o real, como
objeto, à certeza do sujeito.
O método, a metodologia, constitui a possibilidade de garantir essas
condições do conhecimento prévio, ele é o que viabiliza haver certeza. A
metodologia se constitui como uma regra
que garante de antemão ao pensamento um caminho à verdade; é através dela que o
homem pode assegurar as condições de possibilidade do conhecimento científico –
por isso, Nietzsche indica como característica do século XIX o triunfo do
método sobre a ciência, pois foi ele que estabeleceu a dominação moderna do
conhecimento científico. O método transforma o pensamento em cálculo. Enquanto
o que constitui o pensamento é uma espera no questionamento, a demora que
Nietzsche caracteriza como um ruminar[5],
calcular significa contar previamente com a realidade a que se vai chegar,
indica o exercício de equacionar soluções que resolvam os problemas o mais
rapidamente possível.
Qual tipo de homem raciocina dessa maneira? – Pergunta Nietzsche para
responder: uma espécie improdutiva e doente, um homem cansado da vida. A
vontade de verdade é um sintoma de decadência do homem. Antes de ser concebida
como um juízo moral, tal decadência indica uma diminuição da força vital, o desinteresse, um cansaço existencial que
debilita a disposição de criar conjunturalmente a sua realidade – uma
impotência da vontade de criar. Ao reduzir a realidade à medida da certeza
humana, a vontade de verdade promove um homem alienado de seu contexto e
dependente do planejamento da certeza, que não suporta o risco de não ter
previamente garantido o conhecimento do mundo. Desse modo alienado e covarde, o
homem evita confrontar-se com o inesperado de sua situação e de-cai no que já
era esperado – apela aos “princípios”. A verdade tranqüiliza, alivia a
existência, termina com o erro e a ignorância: a verdade corrige a vida. Esse é
o sentido do transmundo indicado acima: um além supra-sensível que se torna
modelo para o homem injuriar, desprezar e corrigir as suas condições existenciais.
Diante do paradigma da eternidade transmundana dos princípios, a vida passa a
ser considerada uma doença que precisa ser curada.
A essa consideração que, por atribuir mais valor ao transmundo do que ao mundo,
busca corrigir esse com aquele, Nietzsche chama de “espírito de vingança” (Geist der Rache). A vingança é o
espírito que anima e promove o desejo transmundano. O homem se vinga porque
concebe a vida como o que não deveria de ser – logo, ele está inteiramente
legitimado, à medida que considera a sua vingança como justiça, o que, corrigindo
a imperfeição da existência, cura a doença da vida. A vingança surge no homem
que, revoltado contra a sua condição de ser humano, quer consertar a existência
– ela é uma reivindicação de justiça, um direito do homem: “Justiça chamamos
nós, precisamente, que o mundo seja varrido pelos temporais de nossa vingança”[6].
Como indicado acima, para esse tipo decadente, o mundo, tal como deveria de ser, existe; este mundo, o mundo em que
vivemos, é um erro: esse mundo, o nosso, não deveria existir. Mas, por que
a vida é uma doença que precisa ser curada? Um erro que não deveria existir?
Nietzsche responde: porque ela passa, nasce e perece, vindo a ser no “foi assim”
do que aparece; porque a vida é finita, se dá no tempo, morre: vingança é a aversão da vontade pelo tempo
e seu “foi assim”. Essa é a sua culpa, a
falta – e, por isso, ela precisa ser punida, isto é, corrigida. Contestando
a sua própria humanidade, o homem vinga-se de sua condição finita, nega o sentido
da terra com a ficção de um além-mundo perfeito e eterno, sem o acaso e a
transitoriedade da morte. A vontade de verdade promove um homem que, ao
contrário de encontrar sentido na conjuntura do mundo, isto é, interesse no que
vem a ser, nega o aparecer com a representação de princípios, conceitos e
juízos que determinam uma essência autônoma, eterna e subjacente às coisas, aos
pensamentos e às ações. Desse modo, por só confiar nisso de que pode obter
certeza, o homem atrofia a sua capacidade de ser, enfraquece o seu poder, se
esquece de exercer a sua força. A decadência promovida pelo espírito de
vingança corresponde à diminuição da vontade de poder que engendra um homem
impotente de criar o seu próprio destino, de decidir por si mesmo a sua própria
sorte. A decadência ocorre com o desinteresse em vir a ser o que se é, por si e
para si mesmo; um cansaço que já não quer nem mesmo querer – diagnosticado
por Nietzsche como niilismo.
Diante dessa constatação de que a nossa compreensão de verdade promove uma
decadência do homem, Nietzsche apresenta uma crítica aos valores supremos do
Ocidente moderno, a fim de propor uma transvaloração de todos os valores, o que
ele caracterizou como sendo uma redenção
do espírito de vingança: “Que o homem seja redimido da vingança: esta é, para
mim, a ponte da mais elevada esperança e um arco-íris após longos temporais”.[7]
Nietzsche compreende a arte como um movimento contrário à verdade, o que
restitui ao homem a sua vitalidade, seu interesse pela vida como ela é, a sua
vontade de poder: Temos a arte para não
perecer na verdade. Distinto da tradição do pensamento estético, que sempre
compreendeu a arte desde o ponto de vista dos que a usufruem, dos amantes e
admiradores do belo, a arte é pensada por Nietzsche a partir da perspectiva do
artista, de sua experiência de criação: “Nossa estética foi feminina, no
sentido que apenas as naturezas receptivas à arte formularam as suas
experiências: ‘o que é o belo?’ Em toda filosofia até hoje se carece do
artista...”[8]
Nietzsche quer, desse modo, mostrar que a arte, antes de ser apenas vista a
partir da sensação estética, promove no homem uma compreensão fundamental da
realidade, a de sua própria criação. O artista é quem experimenta a criação, a
produção que conduz algo a aparecer. Na criação artística, assistimos o vir a
ser dos entes, o surgir de uma obra que, antes, não era, que passou a ser por
meio da atividade do artista – a arte desperta a realização da realidade, ela
promove o modo de ser da vida. No artista transparece o fenômeno da vida, a
propriedade da vontade de poder que Nietzsche caracteriza como vontade de
criar.
Como oposta à vontade de verdade de quem sempre quer a estabilidade da certeza,
a vontade de criar constitui a dinâmica de constante auto-superação do foi
assim, do sido de uma realidade feita, pronta e acabada, de quem permanece no
interesse de seu próprio vir a ser – daquele
que, fazendo de todo foi assim um assim
eu quis e hei de querer, eternamente retorna à possibilidade original de si
mesmo. Somente a partir da assunção do eterno retorno de sua possibilidade de
ser, o homem pode se constituir na auto-superação própria de seu vir a ser, num
processo de crescimento e intensificação do que ele é. A vida é o que quer
sempre crescer, vicejar, tornar-se cada vez mais forte, mais viva: “Onde
encontrei vida, encontrei vontade de poder.”[9]
Nietzsche indica que o “fenômeno artista” é o mais transparente[10],
por mostrar a vida como vontade de poder, sua dinâmica de criação, de vir a ser
no interesse do que aparece, de origem. Promovendo a origem do que o ente é, a
arte o faz aparecer de um modo pleno, mais intenso e forte: “Os artistas não
devem ver nenhuma coisa como ela é, senão mais plena, mais simples, mais forte;
para isso devem ter uma espécie de juventude e primavera, uma espécie de
embriaguez habitual na vida.”[11]
Nietzsche compreende o fenômeno-artista como um sentimento de embriaguez (Rauschgefühl),
no qual o homem é tomado por um ânimo extraordinário que, apurando a sua
percepção, promove a plenificação de sua ação, a sua per-feição. A arte provoca
um efeito tônico que aumenta a força, o sentimento de poder, a disposição do
interesse. O estado de ânimo da embriaguez artística, antes de um torpor
narcótico ou alcoólico, corresponde a um aperfeiçoamento dos sentidos que
permite ao homem perceber uma diversidade de coisas mínimas e fugazes, um
apuramento da visão, a adivinhação, a força de compreender mediante a mínima
sugestão – uma “sensualidade inteligente”[12].
Nietzsche compreende a arte como movimento contrário à decadência da
vontade de verdade, por promover uma superação do espírito de vingança (a
transvaloração dos valores), no sentido de instaurar a vontade de o homem
assumir o seu acontecimento e vir a ser com interesse o que ele é. Ao contrário
do fastio e desinteresse daquele que não suporta compreender e decidir por si
mesmo o sentido do que aparece, como o que carece do planejamento e garantia de
uma verdade predeterminada metodologicamente, a arte bendiz a existência porque
faz o homem assumir a vida como ela é, sem querer corrigi-la nem evitar o seu caráter
de aparecer. Ao assumir a sua vida, o homem se interessa em exercer a sua
possibilidade de ser, faz aparecer e cria a sua realidade. A arte não reproduz o
visível, faz visível.
A arte é o movimento contrário ao niilismo provocado pela vontade de
verdade, por restituir o ser ao aparecer e, assim, trazer o sentido da
realidade para o seu próprio acontecimento. Ao contrário de buscar uma verdade
transmundana das coisas, do conhecimento como a certeza que o sujeito pode ter do
objeto, a arte recoloca o homem na necessidade de compreender o que aparece a
partir de seu próprio aparecimento; antes de promover a relação sujeito-objeto,
ela instiga o interesse do homem pelo mundo. Inter-esse diz ser entre,
envolvido, no meio, a partir e através do que homem e mundo são em seu próprio
aparecimento; um dispor-se no nexo de cada conjuntura. Ao contrário da
alienação do conhecimento científico que, por buscar um transmundo a priori, despreza o aparecer com a
ficção de uma essência verdadeira, a arte desperta o interesse pelo que
aparece, assume a sua perspectiva. Desde a vida como vontade de poder, a arte é
o contra-movimento à dominação do conhecimento científico, que concede mais
valor à verdade essencial dos princípios do que à aparência disso que se mostra
– “Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a
aparência; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já houve. Admita-se
ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e
aparências perspectivas.”[13]
Desde sua primeira obra, O
nascimento da tragédia, Nietzsche propôs ver a ciência com a ótica do
artista, e a arte com a perspectiva da vida. Esse projeto, que ele
posteriormente chamou de “transvaloração de todos os valores”, e caracterizou
como superação do espírito de vingança, tem como tarefa mostrar que, como não
há um ser autônomo e universal, uma essência por detrás ou além do aparecimento
das coisas, ao contrário da vida se fundar no conhecimento de uma verdade subjacente,
ela se baseia em avaliações e
perspectivas. Ao indicar que a vida se realiza no seu próprio aparecimento,
Nietzsche quer mostrar que a realidade se constitui como perspectiva, uma
interpretação do que as coisas são. Tudo é interpretação, uma avaliação
dominante. Não que haja as coisas, os homens e depois as suas interpretações.
Não. As coisas e os homens são, aparecem nas e como interpretações, e por trás
ou para além disso não há nada.
Cabe aqui uma advertência: compreendendo a realidade como avaliações e
aparências perspectivas, Nietzsche não quer, de modo algum, dizer que o real se
funda em preceitos morais ou na subjetividade individual de quem o avalia.
Valor não está sendo aqui pensado nem moralmente nem como representação do
homem, mas como o sentido histórico que faz as coisas aparecerem como isso ou
aquilo; perspectiva consiste na visão de realidade instaurada pelos valores
dominantes, o que mostra conjunturalmente o nexo que faz as coisas serem o que
elas são. Antes de qualquer representação posterior, o valor é o que mostra
homem e mundo sempre já numa perspectiva, num contexto referencial. Perspectiva
é o desde onde tudo que é aparece, o sentido, ou nexo, no qual sempre já
estamos. Como o mundo não possui uma essência prévia, as coisas aparecem sempre
subitamente nas conexões de seus sentidos, nas referências de suas conjunturas.
Tudo que aparece é visto sempre já desde uma perspectiva; a realidade não é
nunca em si, ela sempre se constitui a partir de uma ótica, um ponto de vista –
o real é valor: “Minha principal afirmação: não há fenômenos morais, mas apenas
interpretações morais destes fenômenos.”[14]
O real, a sua “verdade”, consiste em uma
avaliação que, se apropriando do fenômeno através da interpretação de seu
sentido, mostra o ente como isso ou aquilo. Antes de ser uma representação
subjetiva, valor é a força (vontade) que se apropria do fenômeno, conferindo-lhe
um significado histórico, um sentido – por isso,
a filosofia, como ciência do ser (onto-logia), se constitui para Nietzsche como
uma genea-logia: um estudo histórico da gênese dos valores (origem do ser), que
busca demonstrar o valor dos valores (a essência do ser). Concebendo o aparecer,
em sua interpretação histórica, como fundamento do que as coisas são, Nietzsche
indica que a genealogia consiste na investigação das condições de surgimento
dos valores de uma determinada época, no questionamento acerca da origem da
interpretação histórica dos valores; e visa compreender o valor dos valores,
quais são os seus interesses, o que eles instauram, que concepção de homem,
mundo, vida estes valores promovem – a pergunta genealógica é: como ocorre,
qual é a origem e a finalidade da interpretação histórica do valor da
existência? No nosso caso: qual é o valor da verdade?
Nietzsche constata que os valores modernos, concebidos pela interpretação
científica de verdade, promovem a decadência do homem: “Niilismo como
conseqüência da interpretação histórica do valor da existência.”[15] Com
a compreensão de que, na modernidade, os valores científicos instauram o
niilismo, a vontade de verdade como impotência da vontade de criar, Nietzsche buscou
ver a ciência com a ótica da arte – e a arte, com a da vida –, a fim de fazer
um diagnóstico da doença do homem moderno, uma compreensão da origem de seu niilismo,
que promova um deslocamento da perspectiva dominante da ciência para a arte, do
valor da verdade para o das aparências perspectivas. Esse projeto de superação
da decadência do homem moderno, propósito que orientou o esforço e tarefa de
todo o seu pensamento, Nietzsche caracterizou como “transvaloração dos
valores”:
Da ótica do doente ver conceitos e
valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer
os olhos ao secreto lavor do instinto da décadence
– esse foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo
vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira
porque talvez somente para mim seja possível uma ‘transvaloração dos valores’.[16]
[1] Nietzsche, F. Wille zur Macht § 822, p. 569. Herausgegeben von Peter Gast. Frankfurt
am Main: Insel Verlag, 1992.
[2] Idem. Nietzsche Werke,
VIII-3,16[40], § 7, p. 296. Kritische Gesamtausgabe, Herausgegeben von G. Colli und M. Montinari,
Walter de Gruyter, Berlin -New York .
[3] “Não há
dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência
pressupõe, afirma um outro mundo que
não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse
‘outro mundo’ – não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, o nosso mundo?” – Idem. A Gaia Ciência § 344, p. 236. Tradução
de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[4] Idem. Wille zur Macht § 585, p. 417. Op. Cit.
[5] Cf. Idem.
Genealogia da moral, prólogo § 8, p.
14. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[6] Idem. Assim falou Zaratustra, Das
tarântulas, p. 113. Tradução de Mário da Silva. 4ª ed. Rio de Janeiro:
1986.
[7] Idem. Ibidem,
p. 113. Op. Cit.
[8] Idem. Wille zur Macht § 811, p. 562. Op. Cit.
[9] Idem. Assim falou Zaratustra, Do superar si
mesmo, p. 127. Op. Cit.
[10] Cf. Idem. Wille zur Macht § 797, p. 548. Op. Cit.
[12] Cf.
Idem. Ibidem, § 800, p. 550. Op.
Cit.
[13] Idem. Além do bem e do mal § 34, p. 41.
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[14] Idem. Wille zur Macht § 258, p. 197. Op. Cit.
[16] Idem. Ecce homo, I, § 1, p. 24. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Este texto tem a doçura da professora juliana e a leveza do professor Fernando.A arte como superação da vontade de verdade e do espirito de vingança, ficou muito leve e romântico na concepção desses dois mestres.
ResponderExcluirOlá, Zilda,
ExcluirObrigada pelo comentário tão gentil. Dessa vez, o mérito é todo do Fernando. O texto é só dele...
Este comentário foi removido pelo autor.
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