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domingo, 5 de abril de 2015

"encorpo(r)ação"


Juliana Pessoa (2)

Convite da exposição "encorpo(r)ação", texto do curador, Fernando Pessoa, texto da professora Claudia Murta e texto da artista, Juliana Pessoa.


SERVIÇO
Exposição de Desenhos da Artista Plástica Juliana Pessoa – Encorpo(r)ação
De 22/04/2014 a 20/05/2014 na Galeria de Arte e Pesquisa da UFES

Curso de Extensão em Filosofia e Psicanálise  – Entrecorpos
Módulo 3
24/04/2014 – Auditório do IC II – UFES – 19h
3ª Mesa de Palestras: Gestação e perda de corpo - Claudia Murta (UFES); Ricardo Herbert Jones (REHUNA); Fernando Pessoa e Juliana Pessoa.

Exibição do Documentário e debate
24/04/14 – Cine Metrópoles – UFES – 15h
Parto orgásmico: o segredo mais bem guardado
Direção: Debra Pascali-Bonaro
Ano 2008
SINOPSE
Desafiando o mito de que é doloroso e perigoso por natureza e deve ser deixado nas mãos dos médicos, o filme mostra as potencialidades emocionais, espirituais e físicas do parto. Acompanhamos de forma íntima onze mulheres que num trabalho de dar a luz o mais natural possível, gemem, beijam, riem e até gozam. O depoimento de vários especialistas no assunto, médicos e parteiras, junto com as mães, comprovam que estatisticamente esta é uma forma de parir mais saudável e mais segura, tanto para a mãe quanto para o bebê.


Juliana Pessoa. Sem título. Carvão sobre papel



Texto de apresentação da exposição encorpo(r)ação
Fernando Pessoa

Os desenhos de Juliana Pessoa mostram a encorporação. Encorporar é a ação de fazer corpo, uma possibilidade de experimentar a criação de si mesmo.Seja na comoção do parto ou no êxtase do transe, a encorporação leva o homem para além do ordinário habitual, ao mistério de sua própria transcendência, onde tudo é divino e maravilhoso, extraordinário. Comoção e êxtase são pathos, o sofrer a ação de, que promovem a encorporação física ou metafísica do homem: o parto é o acontecimento da criação física de um novo mundo e o êxtase, a manifestação metafísica de um outro mundo. Assim, encorporar é a ação de ser levado para dentro do corpo, que intensifica a sua força vital, o vigor de sua realidade. Antes de suas características bio-fisiológicas, o corpo é o lugar da manifestação da vida, de sua concretização primordial e elementar; corpo é força, poder de se tornar corpo, de encorporar vida:para além de suas funções orgânicas, o corpo é afecção, o ser tomado pelo humor, afeto, força, interesse: encorporação.

Tudo muito simples:desenhos em papel com carvão, giz, óleo; rostos e bustos, mulheres parindo, o transe do candomblé. Juliana trabalha com princípios elementares, tanto em sua técnica quanto em seus temas. A simplicidade do elementar revela a força, o poder do que é próprio, propício por natureza. Por meio dessa apropriação dos elementos naturais, Juliana desenha estranhas imagens que são simultaneamente fortes e suaves, medonhas e singelas; eo estranhamento deste paradoxo nos promove uma inquietação tranquila, um horror plácido. Tudo muito simples, estranho.

O carvão e o giz permitem que o desenho seja feito e refeito inúmeras vezes, deixando no papel os resquícios dessa história, que, como as veladuras da pintura, operam uma relação entre as diversas camadas da imagem, uma transpiração de seu fundo na superfície do desenho. Devemos observar também a importância da linha nos desenhos de Juliana. Elas não são apenas o limite da imagem, mas a própria imagem é toda feita de linhas, várias linhas, para todos os lados, em uma tensa harmonia. Ao contrário do equilíbrio como ausência de conflito, essas imagens são desenhadas com nervos expostos, numa tensão de linhas, borrões, manchas, rabiscadas com serena violência; distinto da imagem composta pela apatia de leis e métodos, os desenhos de Juliana mostram o que Heráclito caracterizou como a mais bela harmonia: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia.”


A exposição Encorporação propõe apresentar desenhos que mostrem o corpo na força de sua vitalidade, tomado pelo poder da transcendência, seja física, no parto de um filho, ou metafísica, na incorporação do divino. Em técnica mista, com carvão, giz e óleo, os desenhos de Juliana Pessoa mostram o corpo entusiasmado pela força vital, tanto nas imagens de parto ou de transe, quanto no modo como essas imagens foram desenhadas. 





Encorpo(r)ação e êxtases
Claudia Murta
(Psicanalista e Professora do Departamento de Filosofia da UFES)


Os êxtases místicos surgem na Grécia Antiga, no séc. V a. C. com o Culto a Dioniso, no qual, sobretudo as mulheres eram tomadas por uma loucura divina. O culto a essa divindade contrastava violentamente com a religião oficial da Grécia. A cerimônia acontecia nas montanhas, com música e danças fortes e circulares para as quais, especialmente as mulheres se entregavam. Aqueles que se entregavam à dança, mergulhavam em uma espécie de mania, uma superexcitação de todo o seu ser na qual o êxtase se manifestava. Esse era o sentido religioso do fenômeno que se dava a partir da dilatação e exaltação do ser permitindo que o Deus circulasse entre os adoradores entusiastas. O turbilhão da dança violenta produzia uma superexcitação que levava à dor e ao gozo; a alma do possuído se encontrava em êxtase orgástico, uma loucura momentânea e sagrada na qual a sensação é de que a alma escapava do corpo e se unia ao Deus em possessão. A comunhão da alma com o Deus é o princípio de todo êxtase místico. O candomblé retoma em seu ritual religioso, os movimentos de dança extática. Do candomblé, podemos encontrar ainda algumas manifestações, que tem bons registros fotográficos feitos aqui no Brasil por Pierre Verger, no entanto, em referência às festas dionisíacas, só encontramos representações artísticas pelas vias da pintura em cerâmicas e da poesia.

A mística espanhola do século XVI mantém o princípio do êxtase, contudo segue o movimento de seu tempo e, Teresa de Ávila, funda a Ordem Reformada das Carmelitas Descalças. Os êxtases dos místicos espanhóis são cantados através de poemas que, segundo os próprios místicos, não traduzem de modo algum a experiência vivida. A linguagem não é suficiente para expressar a experiência de desapropriação do corpo vivida pelos místicos e nomeada como união de amor da alma com Deus. No momento da união de amor mística, não há mais a vivência de corpo, sendo a alma tomada por Deus. A queixa dos místicos é que a poesia não traduz fielmente tal experiência. Ao fazer exceção ao sentido, a experiência mística escapa a qualquer referência, até mesmo corporal e a relação entre corpo e linguagem se desfalece, manifestando-se, assim, como um gozo silencioso.

No campo da Psicanálise, Jacques Lacan propõe uma maneira própria de lidar com o tema do êxtase, sem que se restrinja ao campo do fenômeno religioso. Ele nomeia gozo feminino essa forma de êxtase que podemos viver sem, necessariamente, participar de um evento religioso místico. Lacan aponta para os seus leitores que, caso não consigam acompanhar a sua exposição, olhem para a estátua de Teresa de Ávila feita por Bernini e, assim podem perceber algo da ordem do gozo feminino. A indicação de Lacan é muito útil, pois para transmitir algo da ordem do vivido, sem experimentá-lo, faz-se necessária uma mediação e a arte visual pode cumprir esse papel.

Segundo Lacan, o êxtase pode prescindir do religioso pela via do gozo feminino. Nesta perspectiva, me propus a experimentá-lo pela via do parto natural e apostei na ideia de que o parto é uma dimensão do gozo feminino – pari e comprovei a hipótese. Fruto dessa experiência de gozo no parto e diante da demanda de fazer desse momento um acontecimento onde o desejo da mulher seja compreendido e, sobretudo respeitado, desenvolvo, desde então, o programa de pesquisa e extensãoParthos que se engaja na luta pela humanização do parto e nascimento para que mais mulheres percebam sua parturição como um dos momentos mais deliciosos de suas vidas.  Além disso, no intuito de transmitir essa experiência visceral com fins de fornecer argumentos para a humanização do parto, me associei ao obstetra, Paulo Batistuta, também fotógrafo, e produzimos um livro de fotos, “Parto: uma dimensão do gozo feminino”, que retratam mulheres em momentos de êxtase durante o parto. Pelo olhar dirigido às fotos podemos ter uma experiência corporal de percepção do êxtase alheio sem tanta perda do poder do fenômeno como se queixam os místicos que escolhem a poesia enquanto meio de transmissão do êxtase.


Com base na visão das fotos do livro “Parto: uma dimensão do gozo feminino” e das fotos de candomblé de Pierre Verger, a artista plástica, Juliana Pessoa, produziu uma nova visão do êxtase. Em uma expressividade toda própria, Juliana nos apresenta corpos extáticos a partir do seu traço preciso que nos inclui no âmago da experiência de êxtase por meio da Encorpo(r)ação na qual, não recebemos algo de fora como em uma incorporação, pelo contrário, a partir da experiência de olhar a obra de Juliana Pessoa nosso corpo se desenha junto com o seu traço.



Juliana Pessoa. Sem título. Carvão sobre papel


"encorpo(r)ação": desenhos
Juliana Pessoa

É bastante provável que a melhor porta voz de um artista é a obra que dele se origina. Muito menos do que suas vivências pessoais e particulares, é a obra, ela mesma, quem pode nos orientar na busca pelo seu sentido. O que é, portanto, a obra? Será que ela é uma coisa, um objeto simplesmente dado, exposto à minha percepção e ao meu juízo ou gosto? Ou será a obra muito mais um caminho ou uma indicação de caminho a ser percorrido? Antes de ser uma coisa determinada, acabada, a obra é um veículo. Um veículo é o que nos auxilia, à medida que nos impulsiona, a percorrermos um caminho, algo que nos transporta, que nos põe em movimento.

De que tipo é esse movimento que experimentamos junto à obra? Não se trata aqui de um caminho e de um movimento no sentido de um deslocamento espacial de um lugar a outro. O movimento aqui é mais vital, da ordem da agitação dos sentidos, da animação do corpo, do afeto. A obra se dirige, assim, aos sentidos, ao corpo, agindo por contágio. Contudo, não podemos nos ater ao sentido exclusivamente biológico de corpo, que compreende o corpo como uma estrutura orgânica multicelular, controlada por um sofisticado circuito de neurotransmissores. Dentro dessa compreensão, o corpo é algo desprovido de razão, espírito, inteligência. Logo, é o que normalmente consideramos como lugar do erro, do vício, da culpa.

Pois bem, precisamos aqui nos liberar da noção de corpo como algo inferior e irracional. Só a partir dessa liberação, podemos começar a ver que o corpo é a nossa grandeza, à medida que ele é o lugar de realização de vida, no qual homem e mundo se reúnem em uma possibilidade de ser, um caminho para a existência se fazer. Assim, não temos algo como um corpo. Falamos aqui de um fenômeno, o encorporar, ao qual homem e mundo copertencem. Como esse fenômeno se materializa? Pelo afeto. Falamos aqui de homem e mundo, pois somos sempre situados, tanto no espaço, quanto no tempo: somos sempre em uma situação histórica. Isso é o mundo, o que nos ultrapassa ao mesmo tempo em que nos mantém (nos situa).

Por isso, a dimensão mais fundamental da vida é o afeto, ou melhor, o modo como somos afetados, a cada vez, pela situação na qual vivemos. Assim, o afeto não é um comportamento particular, pessoal, ou uma característica genética coordenada pelo nosso DNA, mas é o modo como efetivamente somos e nos colocamos em nossa situação. A obra, assim, muito antes de se dirigir a espectadores em busca de um conceito sintético para si mesma, ela visa uma delicada comoção do corpo. Isso significa dizer que ela visa nos transportar de um estado a outro, ditando o nosso pulso, a nossa cadência. Nesse transportar, o que se passa? Somos afetados pelo assunto, pelo interesse, que perfaz a obra e, assim, participamos de seu destino, sua destinação. Saímos de um estado de pura passividade e individualidade e tomamos parte junto a isso que a obra nos acena, de modo que somos afetados por uma dimensão que, paradoxalmente, não é “real”. A obra nos faz habitar o estranho, o duplo, o inquietante, diluindo as barreiras de nosso hábito.

O interesse que perfaz essa exposição é a encorporação. De maneira geral, quando falamos em incorporação, tendemos a nos remeter a uma experiência de passividade, por meio da qual uma força externa se apodera de um indivíduo, possuindo e controlando o seu corpo. Por isso, a opção por encorporação, a fim de causar estranhamento mesmo, curiosidade, pois o interesse aqui é pelo instante em que o corpo se entusiasma, isto é, libera uma energia descomunal, poderosa, transfiguradora, divina. Assim, fala-se aqui do que jorra de dentro para fora, do que é da ordem do extravasamento de nossa força vital. A dimensão que se pretende chegar aqui é a da supraexcitação do vigor de nosso corpo, seja na comoção do parto, ou no êxtase do candomblé.

No candomblé, o orixá se corporifica junto aos homens, dançando, comendo, conversando, aconselhando, punindo; no transe, deus e homem coexistem em um mesmo corpo.  No segredo de concepção, fenômeno mais supremo da vida, a mulher sustenta a terra, recomeçando o mundo. Mãe é fonte geradora, uma maravilhosa explosão vital. Essa dimensão da encorporação é o que orienta esses desenhos. Através da cadência e do timbre da linha, em seu temperamento, na tensão, ou melhor, no corpo a corpo que há entre mão, carvão, giz e papel, esses desenhos buscam condensar forças ativas, que antes de serem compreendidas na lucidez de nosso entendimento, precisam ser experimentadas no mistério de nosso corpo, na encorporação.


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