Fernando Pessoa (14)
Entrevista de Fernando Pessoa concedida a Emília Manente
Revista Universidade nº 1, março de 2013 - Ufes
morte
“A companheira que me convida a viver”
Emília Manente
O poeta português Fernando Pessoa
escreveu “a morte é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto”. Para
entendermos um pouco sobre “essa curva da estrada” de que fala Pessoa,
conversamos com um quase seu homônimo, o professor de Filosofia da Ufes Fernando
Mendes Pessoa.
O Fernando daqui nasceu no Rio de Janeiro e
começou a vida acadêmica estudando psicologia, curso que abandonou no segundo
ano, se graduou em ciências sociais, fez dois mestrados, em comunicação e
filosofia, doutorado e pós-doutorado em filosofia, e desde 1993 é professor
desse departamento na Ufes. Do mestrado até o pós-doutorado os seus estudos se
concentram em Martin Heidegger, o filósofo alemão que se tornou mais conhecido
após a publicação, em 1927, do livro “Ser e tempo” obra na qual ele analisa a
morte humana como um caminho para a descoberta do ser. E foi sobre Heidegger e
a morte, passando pela finitude humana e infinitude divina e, principalmente,
sobre a vida, que Fernando Mendes Pessoa conversou com a Revista da Ufes.
Uma síntese do que pensa o filósofo você
confere a seguir.
Por que estudar Heidegger?
Eu acho que não há como fazer
Filosofia hoje em dia sem estudar Heidegger, pois ele faz uma ruptura com toda
a tradição filosófica. A Filosofia era uma coisa antes dele e passou a ser
outra coisa depois dele. Você pode nem concordar com a crítica que ele faz, mas
tem de compreender essa crítica até para discordar dela.
A Filosofia queria ser uma ciência.
Na modernidade ela veio se constituindo como um sistema que visa à compreensão
objetiva do real. E com isso ela foi se tornando cada vez mais acadêmica, mais
teórica, mais conceitual. Mas a Filosofia não é uma doutrina, ela é sempre uma
tarefa. E Heidegger vai fazer uma crítica a todo esse procedimento filosófico,
trazendo a questão filosófica para a existência, para a questão da morte, da
angústia.
O pensamento de Heidegger conduz o
homem não para um âmbito teórico, mas para um desafio existencial. Por isso, sempre falo para os meus alunos:
nós vamos estudar Heidegger, portanto a nossa questão não é acadêmica, fazer
prova, passar de ano. Nossa questão é existencial. O objetivo desse curso é
promover com este estudo uma transformação de nossa compreensão de ser.
O ser
Heidegger é um pensador que faz uma crítica a
toda tradição filosófica, que, segundo ele, substancializou o ser. Ao pensar o
ser como essência, ele acabou sendo concebido como aquilo que é eterno, a
substância; o que não nasce nem perece, sendo sempre idêntico a si mesmo. Mas,
ao contrário de um ente eterno, Heidegger quer mostrar que o ser não é, pois
tudo o que é, é ente. Tudo o que é, é coisa, uma realidade. O ser não é coisa
nenhuma. O ser se dá em tudo o que é, mas ele enquanto tal é uma vigência, é um
aberto, é a possibilidade dos entes serem. Então o ser é a pura manifestação da
realidade, sua temporalização. O ser não é um ente pela condição de finitude
temporal da existência, pela morte.
Hoje em dia nós homens modernos
vivemos numa crise, numa decadência, que é não compreender mais o sentido de
ser. Por que nós somos? Qual é o sentido do mundo? Por que estamos vivos? Qual
o sentido do casamento? Qual o sentido do filho, do pai, do amigo? Heidegger
diz que essa descompreensão é o produto do esquecimento do ser. Por isso, é
necessário, nesse império de esquecimento, recolocar a questão do ser, mas em
um novo horizonte: para que o homem deixe de se compreender como sujeito,
conforme ele veio a se compreender a partir da modernidade, e se compreenda
como finitude, existência.
A morte e a finitude
A morte é minha companheira que me
convida a viver, ela exige que eu não adie meus planos. Ela é a nossa instância
ao mesmo tempo intransponível, intransferível e certa, porém indeterminada.
Para Heidegger, a morte é o fundamento da finitude. A infinitude seria o
eterno, o que é para sempre, o que não morre, o que permanece sempre igual a si
mesmo: Deus. O contrário disso é o finito, que é marcado pelo tempo e não tem
eternidade. E Heidegger diz que essa é a nossa condição. Não querer ser finito,
não aceitar a nossa condição mortal, é rebeldia. O que estabelece a
finitude e o que dá essa constituição ao homem é o fato de ele ser mortal: ao
contrário dos Deuses, que são eternos, o homem morre.
Assim como a vida não é o que acontece quando
nascemos, a morte também não é o que acontece quando falecemos. Vida e morte
são uma tensão de ser e não ser entre nascimento e falecimento. Morte não é
falecimento. A morte é o assumir a nossa condição finita. E assumindo a nossa
condição finita, saber que a gente precisa se esforçar para vir a ser, de novo,
o que somos. Beethoven compôs a Quinta Sinfonia. Depois disso, ele poderia
achar que não precisava fazer mais nada, como se o seu ser estivesse pronto,
acabado. Mas não, ele sabia que, para tornar-se músico, o músico que ele foi,
precisava ainda compor a sexta, a sétima, a oitava e a nona sinfonias, pois a
vida só termina quando acaba.
Heidegger fala o seguinte: só o homem morre. Os
animais fenecem, chegam ao fim. Por isso só os homens são mortais. Mas nós
homens somos mortais não porque morremos e sim porque sabemos que vamos morrer
antes de morrermos. Essa é a angústia do homem, o que o impõe ter que vir a ser
o seu próprio ser.
A
angústia como libertação
Para Heidegger, a angústia é uma relação com o nada
da existência. Ele faz uma distinção entre angústia e medo e fala que o medo
possui sempre um referencial a algo. Já a angústia não tem referencial
determinado. Ela nos restitui uma tarefa própria, que precisamos cumprir para
sermos o que somos. Geralmente a gente não quer saber dela, pois essa tarefa
nos promove angústia. Mas, para
Heidegger, a angústia liberta, ela possibilita a apropriação existencial do
homem.
Como a vida não está dada, pronta, o homem tem que
construir a sua vida assumindo-a. Para Heidegger, assumir significa: “ser para
a morte”. E assumir essa condição existencial é assumir a finitude, é assumir,
em última instância, não o falecimento, mas a morte. “A morte é a possibilidade da impossibilidade
de toda a possibilidade”.
A imortalidade é a grande ilusão do homem moderno.
Mas ele sabe que isso é uma fantasia, que ele adia a apropriação de seu ser
para justificar o esquecimento. Com isso, ele posterga tanto a morte, quanto a
responsabilidade pela sua vida. O que Heidegger diz é que a morte nos clama à
vida. A compreensão da morte é um fator que nos exige uma responsabilidade para
com a existência, pois sabemos, diante da morte, que, se nós não fizermos o que
precisamos fazer para sermos o que somos, ninguém vai fazer, não vamos ser.
Assim, a angústia é uma disposição que nos retira dessa lida impessoal com
nosso ser.
Liberdade
Heidegger tem uma compreensão de que a liberdade é
um movimento duplo, um negativo e outro positivo. A liberdade negativa é a
independência, o “ser livre de”, necessário mas não suficiente para a total
liberdade do homem, pois quando temos somente independência, apenas o horizonte
aberto do possível, a gente não vem a ser nada; aquele que pode tudo, ainda não
realizou nada. Sendo “livre de”, eu preciso agora ser “livre para”, e essa é a
liberdade positiva, que engendra destino. Cada um precisa focar o horizonte
existencial do possível na realização do que é necessário: ser músico,
professor, cientista, jogador de futebol... A possibilidade da existência
precisa ser realizada pela necessidade do destino.
A
existência
Para o pensamento de Heidegger, essas questões que
hoje em dia são vistas como tão bobas, como caráter, verdade, dignidade, ética,
tudo isso se torna importante. Não em um sentido moralista, careta, mas num sentido
de consumar a existência. A existência é esse presente que a gente não pode
ficar bobeando, adiando – precisamos nos apropriar do que somos.
A
arte
Uma frase famosa de Heidegger é: “A linguagem é a
casa do ser”. E os poetas são os guardiões dessa casa do ser. É muito
importante que o mundo contemporâneo, marcado fundamentalmente pela tecnologia,
estabeleça um diálogo com a arte, para que o homem possa retomar o sentido
existencial de seu ser.
O
real é afeto
Nietzsche vai ser
o primeiro pensador a fazer uma crítica ao pensamento tradicional, retomando o
afeto como uma questão fundamental do pensamento. E Heidegger vai ser o
herdeiro dessa crítica. Para eles, afeto não é essa coisa psicológica,
subjetiva, individual. A mesma realidade se manifesta de um jeito para quem ama
e de outro jeito para quem odeia. Então, não existe a realidade em si e depois
a interpretação pelo amor ou pelo ódio. A realidade já se manifesta sempre no
amor, no ódio, na angústia, no medo, no tédio, porque o real é afeto.
O
cuidado
Não é o homem
quem domina, quem tem a posse e é senhor da natureza, da realidade, tal como
propõe o projeto moderno. Mas, pelo contrário, o homem tem que cuidar da
realidade. Heidegger diz que o homem não é o “Senhor da Terra”, mas “o pastor
do ser”, aquele que precisa reunir aquilo cuja tendência é se dispersar. Ele
fala que nós não temos o controle sobre nós mesmos, sobre a realidade. Por
isso, precisamos cuidar do que somos. Heidegger caracteriza essa nossa essência
existencial como cura (Sorge), mas não no sentido de remediar, sarar.
Pelo fato de sermos mortais, precisamos cuidar o tempo todo de nossa
existência, essa condição perfaz a nossa essência como cura.
A
modernidade e as tecnologias
A modernidade tem
uma compreensão individualizante do homem, de que a liberdade de um termina
onde a do outro começa. Pois, se é assim, nós não temos uma vivência comum de
liberdade. Nós estamos confinados a um isolamento, pois, se a minha liberdade
termina onde a do outro começa, só podemos ser livres individualmente. A
liberdade passa a ser o se dar bem, obter poder individual. Essa é uma ideia
equivocada de homem. O homem está decaído nos entes, por isso ele só quer ter.
Pois acha que com esse domínio material ele tem um controle existencial, o que
é um grande engodo. A finitude, que é a morte, gera uma angústia. E o homem não
suporta angústia. Então, ele quer tamponar essa angústia, esse buraco, essa
falta, criando tecnologias, novos produtos. E Heidegger faz uma crítica a essa
pretensão de eternidade do homem, a essa necessidade de domínio, de
asseguramento, tentando reconduzi-lo para a finitude.
Heidegger fala
uma coisa muito interessante: a gente acha que a tecnologia é um meio para fins
utilitários do homem. E ele diz que isso é balela. O homem não é senhor da
técnica. Pelo contrário. A técnica é quem assenhora o homem. Os
desenvolvimentos tecnológicos não são orientados por uma necessidade
existencial, vital do homem e da terra. Eles são ditados por necessidades
tecnológicas. Heidegger diz que a técnica, enquanto tecnologia, disponibiliza o
real como matéria-prima e o homem como mão-de-obra. Ou seja, ela já coloca o
real na perspectiva da produção. Isso para ele é produzido por um esquecimento
de ser.
O
luto
O luto é um sentimento de perda. Tudo na vida, por
mais que as coisas estejam equivocadas, sempre tem uma forma de você cuidar,
dar um jeito. Mas, como a morte é “a possibilidade da impossibilidade de toda a
possibilidade”, quando ela se realiza, cessa a possibilidade da cura, a vida
acaba. Fica então o sentimento de perda: não há mais a possibilidade de ser, a
existência: “eu nunca mais verei aquela pessoa”. Portanto, há a morte para o
outro e a morte para si, que são diferentes. A gente lida muito com a morte do
outro e tende a esquecer a nossa morte.
Suicídio
e Ansiolíticos
Acho que o suicídio é análogo ao ansiolítico. Ambos
provêm do não suportar a condição de angústia, a finitude e aí apelar ou para a
alienação anestésica ou para a desistência existencial. Eu acho que é covardia,
tanto um quanto o outro, no sentido de buscarem facilitar a tarefa da vida, uma
fuga existencial. Como Sartre diz: nós somos condenados à liberdade. Sim, a
existência é esse ser fora de quem foi expulso do paraíso. Comer o pão com o
suor de nossa testa é a nossa liberdade e a nossa miséria. Depende se a gente
assume essa tarefa, vindo a ser com gosto o que somos, ou se não suportamos
essa nossa condição.
O
convite à vida
O destino, para Heidegger, é um chamado para você
vir a ser o que o plenifica. E a morte, para ele, tem o sentido de vida. Ela é
a plenificação da existência, a sua consumação. Existencialmente, morrer é se
entregar para o que você é e ser todo, sem querer se poupar, sem querer se
guardar para amanhã. A finitude não está relacionada à idade. A qualquer momento
a gente pode deixar de ser, por isso devemos ser sempre plenamente o que somos.
Excelente abordagem ,muito clara e acessível.Igualmente a palestra no youtube.Obrigado pela exposiçao.
ResponderExcluirObrigada pela mensagem.
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