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terça-feira, 28 de julho de 2015

Arte no pensamento de Nietzsche - Gilvan Fogel

Arte: uma festa para os olhos!?
(Ou, no caso: ser pintor)*

Gilvan Fogel**

                                                                                                                 
Para Antônio Pedro


           
1. O que é festa? Como? A pergunta é impertinente, fútil, supérflua. Pois, quem não sabe o que é festa, uma festa?! Quem não sabe como é festa?! Festa é festa, ora!

            Mas a pergunta, na sua impertinência e superfluidade, fica. Fica e traz outra consigo, igualmente impertinente, igualmente fútil ou supérflua: O que são olhos? O que é olho? Ver! E como ver? Um ver que, talvez, seja ver? ver?! Onde está o problema, qual a dificuldade? Que mais se poderia querer ou esperar do olho, do ver?!
            Arte como a festa, como o regozijo, a alegria do ver – e que alegria, que festa é essa quando, sabe-se, na arte aflora também, talvez principalmente, dor, mesmo sofrimento e quando ela, às vezes escancaradamente, revela o grotesco? Arte, sendo alegria do ver, festa do aparecer e só do aparecer e do ver, não deve ser coisa de bobo alegre...!


            2. Bem, vamos direto ao assunto e comecemos citando uma passagem, uma anotação de Nietzsche, de 1888, e que, logo se verá, é o que provoca estas considerações preliminares, assim como a exposição que segue. A anotação diz:

                        Quanto aos pintores:
Tous ces modernes sont des poètes, qui ont voulu être peintres. L’un a cherché des drames dans l’histoire, l’autre des scènes des moeurs, celui-ci traduit des réligions, celui-là une philosophie. Aquele imita Rafael, outro os primeiros mestres italianos; os paisagistas empregam árvores e nuvens para fazer odes e elegias. N e n h u m é pura e simplesmente pintor; todos são arqueólogos, psicólogos, colocadores de uma ou de alguma recordação ou teoria. Eles se comprazem com nossa erudição, com nossa filosofia. Tal como nós, estão carregados e sobrecarregados de idéias gerais. Amam uma forma não pelo que ela é, mas pelo que ela e x p r e s s a . São filhos de uma geração erudita, atormentada e reflexiva. Milhares de milhas distantes dos antigos mestres, que não liam e pensavam somente em dar (oferecer) uma festa a seus olhos.[1]



                Pergunta-se: O que e como é “ser pura e simplesmente pintor”? É ser pintor e não algo mais, p. ex, poeta, arqueólogo, historiador escavador de sentidos ocultos e profundos, psicólogo, idem; filósofo, ibidem; experto em coisas religiosas. E, para ser pintor é preciso poder “amar uma forma pelo que ela é, pelo que ela é” e não “pelo que ela expressa”. Temos aqui tudo que nos interessa, tudo que precisamos.
            Primeiro, é preciso esclarecer forma. Fica subentendido que pintura, p. ex, é uma forma. Ser pintor seria amar a pintura, a forma-pintura, pelo que ela é e não pelo que ela expressa ou pode expressar, uma vez que ela, parece, pode ou poderia ser expressão de algo poético, histórico, de alguma religiosidade ou de alguma filosofia ou escola filosófica, ou algo psicológico, arqueológico. Daí que, continua a insinuação, poesia, religião, história, psicologia, filosofia são também formas – cada qual uma forma possível.
            Forma não é fôrma e, assim, não é formato, formatação ou bitola. Não é uma “armação” ou algum encaixe, caixilho. Precisando ser entendida como limite, não é, porém, limitação, no sentido de apequenamento, diminuição, restrição ou redução de possibilidades. Enfim, sendo limite, não é insuficiência. Enquanto limite, forma fala de determinação ontológica, define lugar ontológico ou, pura e simplesmente, lugar, a instância ou o próprio do que é.
            Assim sendo, forma fala de um poder (!) de aparecer, de mostrar-se, de fazer-se ou tornar-se visível. Forma (morphé) faz, torna visível – é eidos, isto é, aspecto, visão ou visada. Assim, forma e força dizem o mesmo. Ampliando e ao mesmo tempo intensificando a própria compreensão e formulação nietzschianas, pode-se entender e dizer forma como horizonte, perspectiva ou mesmo interesse, ou seja, um modo de ser de vida, de existência, no qual e a partir do qual o que aparece e é (dá-se, mostra-se) pode ou precisa ser ou aparecer. Forma é de tal modo o que é, o que em última ou primeiríssima instância aparece ou se mostra, que Nietzsche dirá: “O preço, o custo de ser artista é ver, é sentir, nisso que todo não-artista chama ‘forma’ o próprio conteúdo, a própria coisa (die Sache selbst)”. E acrescenta: “Com isso, pertence-se a um mundo invertido, às avessas (eine verkehrte Welt). Agora, doravante, o conteúdo torna-se algo puramente formal – inclusive nossa vida[2].
            Forma, pois, é o que é. É o é! Daí ser preciso “amar uma forma pelo que ela é”. Amar é querer. Querer bem, isto é, intensa e inteiramente. Este amar ou querer uma forma pelo que ela é, quer ainda dizer: pôr-se em ou transpor-se para tal forma (modo de ser) e desde aí, desde tal forma, pois, e desde tal forma ver o que se mostra, ou seja, deixar ser o que aparece tal como aparece; o que é tal como é. Testemunhar.
            Só há uma maneira de amar, isto é, de querer uma forma pelo que ela é e tal qual é, ou seja, uma única maneira de ver a coisa (forma) nela mesma e desde ela mesma, a saber, pôr-se em (a forma) ou transpor-se para (a forma) e assim nela tomar parte, dela participar, à medida que por ela se é tocado ou tomado. Desse modo faz-se, cofaz-se o fazer-se de forma. Deveria, precisaria ser tema de análise como se dá este ser tocado ou tomado e como “se dá este pôr-se em ou transpor-se para. A via seria a explicitação de escuta (corpo) e de salto ou imediatidade. Mas deixemos isso de lado.
            Dissemos: forma faz, torna visível. Isto, na verdade, quer dizer: forma compacta, reúne tudo em um, a saber, no um ou na unidade da própria forma. Em fazendo visível, reúne, compacta, pois o que se vê, o que aparece, se vê ou aparece porque se dá reunido ou compactado, integrado (“sintetizado”). Só por isso, só graças a isso pode ser visto, compreendido. É isso que se dá, p. ex, com o um ou a forma, que é a pintura. Tudo pode ser pintado, tudo pode vir a ser pintura ou tudo pode ser visto desde a, na e como pintura. Por isso, no abrir-se e impor-se de um destino, de uma forma ou de uma vida-pintura, p. ex, é dito, algo ou transcendência diz: pintar é preciso, viver não é preciso! Assim reunido, integrado, composto ou compactado (sintetizado!), forma é lógos, razão. Ou seja, o lógico (de “lógos”) é, nesse sentido, o poético. E “nesse sentido”, a saber, de o lógico (de “lógos”), está falando do sentido reunidor, compactante ou espessante – disso que o alemão fala em dichten, erdichten e Dichtung (poesia). Portanto, sim, o lógico como o formal, o formal como o poético, como princípio de visualização e aparecer ou fazer-se visível.
            A pintura, p. ex, é uma forma – uma forma possível. Com isso, fica dito que há muitas, inumeráveis formas – tantas quantas os possíveis modos de ser ou de aparecer de vida, de existência. Forma, sendo “lógos”, é igualmente o um que se diferencia. Forma é, perfaz multiplicidade.
            Estranha e desconcertantemente, nesta uma forma que, p. ex, é a pintura – nela mesma, como ela mesma há, faz-se muitas, inumeráveis formas, pois este um se diferencia, se transforma em se multiplicando, melhor, em se dividindo se multiplica (!) – isso é sua fartura, sua superabundância –, uma vez que há muitas, inumeráveis pinturas (estilos?!) possíveis. Em princípio, tantas quantos os possíveis pintores. E, de novo, estranha e desconcertantemente, como que em milagre, cada pintor, cada realização ou particularização da forma-pintura – cada pintor! – se diferencia em si mesmo, se altera, se multiplica à medida que se divide, pois este pintor, cada pintor pinta muitos, inumeráveis quadros. A cada vez e sempre um outro quadro, ainda que sempre a mesma pintura... É este e assim o milagre da vida, da doadora plácida, que é em si e por si transformação, alteração, diferenciação ou auto-superação. Diria, diz Platão: no âmbito, na circunscrição de um mortal, é isso e assim uma espécie de imortalidade. Uma espécie de eternidade no e do tempo – sempiternidade na, da vida. A memória, a grande memória...
            Mas, voltemos ao nosso texto e retomemos a ponta de nossa meada.



            3. É preciso amar uma forma pelo que ela é e não pelo que ela expressa.
            Expressar, exprimir, ex-premer – tudo isso diz arrancar ou tirar para fora algo apertando, pressionando, comprimindo sobre e para fora (ex-premere). Em alemão: “aus-drücken”. 
Por expressão, seguindo este fio, entende-se ainda manifestação, representação, simbolização. Representar é ser ou estar no lugar de, ser um representante ou um embaixador. Simbolizar é remeter a outro, que não isso mesmo que aparece ou se mostra no sinal ou no símbolo. Também o símbolo, sobretudo o símbolo, remetendo e enviando, é um representante ou um embaixador e, assim, expressa algo. Igualmente, a manifestação esconde, no manifestado, o que imediatamente aparece, para insinuar ou apontar algo que em si e por si mesmo não aparece, não se mostra, mas fica latente, sub-dito, sub-visto, subliminar. Enfim, expressar, falando manifestar, simbolizar, representar, está sempre falando e remetendo a um sub, a um atrás não imediatamente visto, sabido ou percebido.
            Na ou como expressão, o que aparece, na verdade, ilude, engana. É mais ou menos como se dissesse: “Veja, eu não sou isso, que imediatamente mostro ou aparento, mas lembro, recordo e remeto a outro que não sou e nem aparento ser! Sou, pois, uma ilusão, uma falsificação de mim mesmo!” Portanto, na expressão é preciso ver não o que aparece, não tomar o que imediatamente se dá, mas ver no que aparece o que presumivelmente sub-aparece ou se esconde, o que se sub-põe. Quem expressão, quem busca expressão e só expressão não vê, por princípio não pode, não é capaz de ver superfície. A dor do Quixote, p. ex, é o seu desencanto frente à falta de franqueza e de limpeza d’alma dos enganadores, dos burladores, pelo fato que sempre dissimulam e ocultam o que de imediato aparece e se dá com expressões de fundo, de profundo, de subditos e subentendidos. Sempre sem franqueza, sem limpeza d’alma, mas com segundas e terceiras intenções e propósitos. O Quixote, porém, como toda alma grande, é limpo, franco, ingênuo, frágil ... Sempre pronto para sucumbir!
            Portanto, ergo, expressão é burla, embuste, falsificação – deliberada ou não. Se não deliberada, erro; se deliberada, mentira.
            Assim sendo, com a fala de expressão o que acontece é que uma outra forma (modo de ser ou de aparecer) é acrescentada, somada, isto é, é inter-, sub- ou sobre-posta à forma que imediatamente se dá ou aparece e, então, por este mecanismo ou ardil da soma, do acréscimo, da inter-, da sub- ou da super-posição, esta outra forma somada é artificialmente trazida, à força, para um primeiro plano, para a superfície, ocultando, dissimulando ou, melhor e mais precisamente, falsificando a primeira e querendo fazer passar por verdadeira esta soma, esta sub- ou super-posição. A expressão, assim, funciona como um tapume que não deixa a forma primeira ou imediata aparecer e ser tal como é, tal como precisa ser e aparecer. Na expressão, como expressão, uma forma é colocada na frente de outra e, então, se propõe a “primeira”, a que se mostrou imediatamente, como o que ela absolutamente não é – falsi-fica, pois. Então, como algo que se soma, que se sub-, inter- ou sobre-põe, expressão é, por excelência, o princípio da falsificação. Como já dissemos, da falsificação e do erro. Isso, claro, na suposição que verdade seja o que imediatamente se dá ou se mostra. A forma que é e se impõe.
            É isso, é disso que o texto de Nietzsche está falando de maneira simples, clara, direta, exemplar. Voltemos a ele e leiamos.
            Ele diz: Os modernos – ouçamos, nós – são no fundo poetas que, parece, querem ser pintores, mas, no entanto, colocam (somam, acrescentam) diante da pintura a poesia, assim encobrindo ou falsificando a pintura. Como, realmente? Um certo paisagista, p. ex., fazendo uso de árvores e de nuvens, não para tão-só mostrar nuvens e árvores, mas para, a partir daí, com base nisso ou sob este fundo (a pintura!), fazer odes ou elegias, isto é, ele busca, quer despertar e expressar com nuvens e árvores cantos, sentimentos líricos, langorosos, também plangentes, lamentosos, enlutados – elegíacos. Um outro tipo andou procurando, investigando dramas na história e vendo na pintura, na tela, oportunidade, pretexto para encená-los, representá-los – expressá-los; outro quer traduzir, isto é, expressar fundos e motivações religiosas; um outro ainda costumes ou alguma filosofia, entenda-se, alguma doutrina, escola ou corrente filosófico-estética, a falar de princípios e de fundamentos, por exemplo. Tudo isso, a cada vez, é portanto somado ou acrescentado à forma-pintura e, assim, não deixa a pintura ser pintura, dissimulando-a, falsificando-a, ou seja, forçando, forçando barra, como se diz, para que pintura seja, na verdade, pretexto para se fazer poesia, ciência religiosa, sociologia, psicologia, filosofia... Por isso, com desdém, é dito: são todos arqueólogos, psicólogos, isto é, escavadores de funduras e de profundidades, buscadores de gigantescos  icebergs atrás de singelas e inocentes pontas, superfícies... Aparecem também como colocadores de uma ou de alguma recordação ou teoria. Recordação, aqui, quer dizer registro, dado, fixação. Uma atitude que, de algum modo, está presentificando, pela memória, uma coisa, um algo ausente. Ou seja, a pretexto do que aparece e se apresenta, está remetendo a algum outro passado e que ficou registrado, fixado. “A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela” – ou ainda: “A recordação é uma traição à Natureza”, ouve-se em Fernando Pessoa.[3] Tudo isso, está dizendo o texto, entulha, sobrecarrega a pintura, a arte, de modo geral. E este excesso, esta sobrecarga é identificada com “cultura”, melhor, com “erudição”, com “nossa filosofia”, entenda-se, com nossa pesquisa, historiografia e cultura filosóficas. “Todos”, ouça-se: os modernos, nós, “filhos de uma geração erudita, atormentada e reflexiva”.
            Erudição é ajuntamento, acúmulo – inchaço. Hoje, em geral, é obra da pesquisa. Aliás, seria, antes, de se dizer: é quando já impera uma certa sanha, uma certa disposição de corrida afanosa, que pesquisa pode se tornar pesquisa, corrida sôfrega para a informação, que, hoje, pode ser avaliada pelo bíceps bits, medida em megabits. É tanta acumulação, capitalização, que se faz empecilho, sobrecarga, entulho – inchaço. Nestes termos, erudição, já disseram, é a vingança da burrice. “Uma geração erudita, atormentada, reflexiva”. Tudo isso pode muito bem qualificar nossa geração, melhor, nosso tempo – nós mesmos. “Atormentada”, “torturada”, “afligida” (“geqüalte”), aqui, está também dizendo “emburrada”, “amuada”, “macambúzia”. E é tudo isso porque, ao mesmo tempo, é reflexiva, muito reflexiva, reflexiva demais. E reflexão, aqui, não deve ser entendida como a saudável ponderação, como a consideração contida, recolhida, concentrada, como a prudente meditação. Não. “Reflexivo”, aqui no contexto, diz, em última instância, hesitante, inapto para a ação, incapaz de decisão. Meio à Hamlet, à Stawrogin, tipos modernos. Expliquemos: o fato é que a erudição, a “cultura erudita” (um pleonasmo!), gera um tipo que, diante de tanta informação, de tantos dados, de tantas possibilidades, frente a tal e tão farto “leque de opções”, como se diz, se sente impossibilitado, provavelmente fomentado por seu espírito crítico e não-dogmático, aberto pelas informações eruditas, de decidir, impedido de se lançar à ação, paralisado como está ou se torna devido ao peso, ao volume de informações e de opções. Este enredado começa a gerar uma estranha inércia e é neste medium que reflexão se faz triste, macambúzia. Amuado, este tipo parece que o tempo todo anda a mastigar e a resmungar sua máxima: Penso, logo ... hesito! Cogito, ergo... haesito! De tanto hesitar e de tão pouco ou nada existir, ele acaba por nada fazer, nada gerar. Eunuco. Tipo desprezível. Todo incerto, inseguro, indefinido, amorfo, ele nem dança e nem sai da pista, para eufemizar um dito popular, meio chulo, é verdade, mas muito agudo...
            E quão distante estão estes eruditos, estes tipos indecisos e amuados dos velhos, dos antigos mestres, que, diz Nietzsche, “não liam e pensavam somente em dar uma festa para seus olhos”. É preciso ouvir neste “velhos, antigos mestres” (da pintura!) nada de remoto e de nostálgico. Velho, antigo, está falando dos pintores de ontem, de hoje, de amanhã, enfim, dos de sempre, pois em “antigo” é preciso ouvir arcaico, de arché, de origem. Então, “antigo” está falando de fundador, de inaugurador. Por isso são mestres, pois são os memoráveis arché-tipos ou arquétipos. E isso tão-só porque foram, porque são, porque serão sempre pintores – pintores.



            4. Voltemos ao tema: ser pintor. E, para tanto, retomemos forma, isto é, vejamos de novo o que é amar (querer) uma forma pelo que ela é – só pelo que ela é. Aí está o tipo que é pintor, insistentemente pintor, à medida, claro, que ame (queira) só a forma-pintura.
            Dissemos: forma mostra, revela, faz visível. Dissemos ainda: faz ou torna visível à medida que compacta, que espessa, que reúne, isto é, à medida que poetiza (“dichtet”) e assim se faz, se cumpre lógos, razão – enfim, a medida ou o modo próprio de ser de forma. A forma é, portanto, o poético, que é o lógico (de “lógos”)[4] e que, por isso, é o lugar, a instância, a hora do fazer-se visível ou aparecer.
            Como entender isso melhor? E, sobretudo em se tratando de Nietzsche, o dionisíaco (!), não se estará enfiando os pés pelas mãos e se tirando tudo dos gonzos?! O fato é que Nietzsche é, sim, um obcecado pela forma, a ponto de caracterizá-la e reivindicá-la como “a própria coisa”, como o “conteúdo”, todo o conteúdo e isso enquanto e como o lógico, que assim define o lugar excelente da arte. Todo este processo, todo este mecanismo ou artifício de somar, de acrescentar, de sub-, inter- ou sobre-pôr algo a algo (entenda-se, uma forma a outra forma), assim ocultando ou falsi-ficando o que imediatamente se mostra (a forma imediata) – tudo isso é falta de forma, falta de amor a uma forma ou, o que é a mesma coisa, uma veleidade ontológica, uma vez que ama demais, isto é, quer, ao mesmo tempo, muitas formas... N.B.: Don Juan, para as mulheres, por fim, costuma mostrar-se tipo desinteressante ...
            Wagner, por exemplo, com seu drama musical, teria sido o protótipo desta falsificação, pois ele quis tanto da ou com a música a ponto de querer demais, de querer o que não podia, o que não tinha o direito de querer, pretendendo fazê-la, além de música, também tragédia, teatro, poesia, religião, filosofia, enfim, quis fazer da música uma grande arqueologia ou, neste sentido, uma psicologia. É neste contexto que Nietzsche escreve: “O wagneriano puro sangue é não-musical, unmusikalisch. Nele se observa um repugnante desvio da lógica, da quadratura do ritmo ... Nele constata-se algo de sub-reptício e de esquivo no histerismo de sua melodia infinita ...”[5] Coisa efeminada!! Nietzsche dirá, ainda: “É um erro imaginar que o que Wagner criou seja uma forma: – é uma total falta de forma, uma completa deformidade, eine Formlosigkeit”. Ele queria, buscava, visava “a e x p r e s s ã o a todo e qualquer custo”.[6] Wagner seria, pois, este espírito não-musical, degenerado ou deformado, porque quis, queria expressão, ou seja, insistia em colocar diante da forma-música outra e outras formas (teatro, poesia, religião, etc....) e queria fazer passar ou propor esta forma, a saber, a música, por todas aquelas outras, que ela absolutamente não é, não pode ser. Isso é, sim, desvio, corrupção, degeneração, deformação – melhor e em suma: falsi-ficação. Longe, muito longe da dimensão própria de realização da arte, de toda arte e de toda forma e que Nietzsche denomina grande estilo.
            No grande estilo, desde grande estilo não há, p. ex., sentimentos, emoções, paixões em primeiro plano, definindo ou constituindo uma forma, uma autêntica experiência artística – isso é, seria “coisa fácil, mais fácil e pressupõe artistas mais pobres, menores. Eles apelam para isso”.[7] Enfim, rasteira facilitação, apelação...
            “Grande estilo” – o que é isso, realmente? Ouçamos Nietzsche, o apaixonado dionisíaco, nesta passagem:

A grandeza de um artista não se mede segundo “os belos sentimentos” que o excitam: nisso podem acreditar as madames (as patricinhas!, “die Weiblein”). A grandeza de um artista mede-se, sim, segundo o grau, de acordo com o qual ele se aproxima do grande estilo, tanto quanto ele é capaz do grande estilo. Este estilo tem em comum com a grande paixão o fato de ele envergonhar-se de agradar, de dar prazer; o fato de esquecer de persuadir. Ele manda, quer tornar-se senhor sobre o caos que se é, obrigar seu caos a tornar-se forma; tornar-se necessidade na forma: lógico, simples, indubitável, matemático; tornar-se l e i –: aí está a grande ambição [...] Todas as artes conhecem esta ambição do grande estilo [...][8]


No grande estilo, portanto, não tem vez “os belos sentimentos”. “Com os mais belos sentimentos faz-se a má literatura”, escreveu igualmente A. Gide, em seu ensaio Dostoievski. “Sentimentos”, aqui, está falando de sentimental, de sentimentalismo e, então, de pieguice. No grande estilo, do mesmo modo, não entra, ou seja, não faz parte dele, emoções, paixões. Coisa fraca, frouxa! Nele impera, sim, a l e i , quer dizer, a necessidade, que é ainda caracterizada como o lógico (ouça-se a compactação, o espessamento, próprio de lógos, i.é, a poetização) e ainda o simples, o indubitável, o matemático. A verdade é que isso, tudo isso, que caracteriza grande estilo, define forma. Grande estilo é a forma da forma.
Assim sendo, percebe-se que “grande”, na formulação “grande estilo”, não é nada pomposo, monumental, associado ao gigantismo e ao exibicionismo. Em “grande” é preciso ouvir-se, primeiro, real, autêntico, de verdade – então, real, autêntico estilo. Um estilo de verdade! E esta verdade deste estilo é justo o lógico, o simples, o indubitável, o matemático. Tudo isso é concentrado em l e i . Então, “grande” não fala o esparramado do pomposo, o derramado e inflacionado do grandiloqüente, mas o sóbrio, o contido, o parco, o pouco, o econômico. Em suma, o s i m p l e s . Assim se faz estilo, isto é, medida. Assim, in hoc signo, cunham-se as coisas, tudo que se dá ou aparece. Estilo, remetendo a estilete, diz cunhagem. O estilo do grande estilo tem, é a forma das inscrições líticas. Altamira, Serra do Alaripe é grande estilo. São formulações, cunhagens heraclíticas, quer dizer, “incandescentes para dentro e geladas para fora”, disse Nietzsche em outro lugar. Assim se faz igualmente o grande sentimento, a grande paixão. Grande estilo é coisa, é obra de alma seca, quer dizer, a vida, o hálito ou o alento mais perfeito – mais forte, mais nobre.[9]
É preciso, porém, também dizer: o exercício, o fazer-se de grande estilo seca, purifica (i.é, faz virar fogo!) a alma, a vida. Grande estilo e alma seca são a mesma coisa. Um único e mesmo ato, qual seja, o ser e o viver desde forma. Forma e distância. Distância certa. Portanto, desde o imperativo de ver e de tornar visível. Esta é a festa para os olhos. Olhos exigentes, contidos e não cobiçosos. O olhar simples, seco, que vê e se satisfaz com o pouco e o parco do possível tornado necessidade (lei) e que não é, pois, o olhar típico, próprio da concupiscência do e no ver, que é justo o ver sem medida, sem contenção, sem forma. Sem pudor, como, p. ex., o olhar do tipo culto, erudito – do pesquisador, sempre o grande lascivo, o grande pecador... Grande estilo, alma seca, é pudor. Por isso, ele se envergonha, quer dizer, se retrai, se resguarda, de agradar, de dar prazer ... Grande estilo, alma seca, é contenção.
O grande estilo, se disse, não é dominado pelos belos sentimentos – belas emoções ou paixões. Isso não quer dizer, porém, que esteja sendo propalada a falta, a ausência de sentimentos – de emoções, de paixões. De afeto, de modo geral. Não se defende e se propala uma vida anêmica, inapetente. Não. Há, sim, sentimentos – emoções, paixões. Estes aí estão como constitutivos da forma ou do grande estilo.[10] Na forma, no grande estilo, sentimentos estão, sim, presentes, mas domados, dominados – contidos. Conter, porém, não quer dizer reprimir ou recalcar envergonhados, entendendo-se agora “vergonha” não como o pudor limpo, mas como o cavernoso da má consciência, o subterrâneo da pseudopudititia ou do falso pudor, que procuram esconder e mesmo desfazer algo feio, proibido, a saber, o próprio sentimento, emoção, paixão ou os afetos, de modo geral. Isso seria o próprio da idiossincrasia racionalista, que não tolera irracionalidades, ou seja, os sentimentos, as emoções, as paixões. Então, conter não é catarse racionalista, empenhada em filtrar e daí excluir o irracional. Insistindo, conter não está falando de dominar (reprimir, recalcar) o sentimento para não deixá-lo ser, para excluí-lo, pelo fato de ele ser menos, p. ex., que a razão, o intelecto, o espírito. Não. Conter quer dizer: não deixar que se derrame, que se esparrame inflacionadamente, assim esvaindo-se. Conter quer dizer: não deixar que se desfaça em se esvaindo, justo para não enfraquecer, não se debilitar e, sim, ao contrário, fazer-se mais forte, quer dizer, mais grave, mais intenso e, então, verdadeiramente poder cunhar, forjar, modelar – formar. Na contenção, desde contenção, o sentimento (a emoção, a paixão) se faz mais sentimento, ou seja, mais intenso e, por isso, graças a isso, mais agudo, mais punçante, mais nítido, mais lúcido – mais formador. Conter, assim, é a autêntica formação. “Não forma, mas formação (‘Formung’)”, ou seja, o agravar-se e o intensificar-se de forma em se fazendo forma, é o que reivindica Klee.[11] E assim agudiza-se o ver, pois desse modo se faz, se torna visível – mais visível. E isso se dá à medida que compacta, reúne, ou seja, logiciza, poetiza, assim se tornando mais simples, mais sóbrio, mais econômico – de ritos, de gestos. E mais evidente, mais certo, mais seguro – “indubitável”. Ganha-se, conquista-se um gesto mínimo – o necessário; uma pincelada, uma palavra única – a necessária. Neste simples, neste sóbrio, em se ganhando intensidade, ganha-se também concisão. Contenção dá concisão. Concisão dá intensidade. Mais intenso – mais conciso; mais conciso – mais intenso. Parece ser este e assim o jogo de forma se fazendo forma, enquanto e como grande estilo.
Conter, portanto, não é recalcar, abolindo; não é reprimir, excluindo, mas apurar, no sentido de agravar e de intensificar para ganhar clareza, nitidez, lucidez – intensidade, precisão na concisão. Contendo, apurando, o sentimento se faz mais punçante, mais navalha, mais faca – “uma faca só lâmina”

                                   Assim como uma faca
                                   que sem bolso ou bainha
                                   se transformasse em parte
                                   de vossa anatomia;

                                   ... ... ...

                                   a lâmina despida
                                   ... ... ...

                                   cujo muito cortar
                                   lhe aumenta mais o corte
                                   e vive a se parir
                                   em outras, como fonte[12]


Num depoimento de Francis Bacon, ouve-se: [...] gosto da arte que é bastante formal e, à medida que vou envelhecendo, tenho tentado tornar a arte mais livre e fazê-la também mais formal.[13] Que não se entenda e mal entenda neste “formal” algo abstrato, formalista. Bacon não está querendo “formalizar” a arte no sentido da dominante lógica formal, que, pela via da chamada formalização, quer, na verdade, reduzir tudo a uma única língua (seria uma única pintura!), que pode, poderia se referir a qualquer coisa, qualquer conteúdo. Formalização, assim, está dizendo uniformidade, igualdade, equalização, nivelamento. “Mais formal”, na citação de Bacon, está dizendo, sim, mais ao jeito ou à maneira de forma e, nesse sentido, mais forma, mais intensa ou essencialmente forma, isto é, mais poético, mais compacto, mais espesso. Então, mais necessário, mais lei. E, paradoxalmente, por esta via, graças a esta formação, mais livre. Liberdade, que não se contrapõe a necessidade, mas que, ao contrário, com ela e, então, com lei, se ajusta e se compõe. Livre graças à lei, à necessidade. Liberdade sob a lei é liberdade nobre, aristocrata – fazer e agir desde necessidade, obediente à lei e assim fazer vir a ser o que precisa ser! E isso, tal liberdade, à medida que envelhece. Velho, velhice, não está falando de depauperamento, de senilidade. “Velho” está dizendo curado, curtido, duro, seco – alma seca. E aí mais forma, mais formal – simples, intenso, conciso, evidente.
Esse envelhecer é um aprendizado, um lento aprendizado. Lento, uma vez que o tempo do fazer-se das coisas essenciais. O tempo próprio da vida, que não tem pressa. Tal como o mundo, ela é lenta e certa. Nosso poeta, nosso grande poeta, o mais lógico de nossos poetas, diz este acontecimento, descreve esta aprendizagem, a partir da visão da forma-tourada, que é a forma-vida, já se disse, “dançando diante da morte”. Ouçamos, mais uma vez, João Cabral de Melo Neto, que, em Alguns toureiros, diz ter visto Manolo González, Julio Aparício, Miguel Baez, Antonio Ordoñez, mas sobretudo Manuel Rodriguez,

                                  

Manolete, o mais deserto,
                                   o toureiro mais agudo,
                                   mais mineral e desperto,

                                   o de nervos de madeira,
                                   de punhos secos de fibra,
                                   o de figura de lenha,
                                   lenha seca de caatinga,

                                   o que melhor calculava
                                   o fluido aceiro da vida,
                                   o que com mais precisão
                                   roçava a morte em sua fímbria,

                                   o que à tragédia deu número,
                                   à vertigem, geometria,
                                   decimais à emoção
                                   e ao susto, peso e medida,

                                   sim, eu vi Manuel Rodriguez
                                   Manolete, o mais asceta,
                                   não só cultivar sua flor
                                   mas demonstrar aos poetas:

                                   como domar a explosão
                                   com mão serena e contida,
                                   sem deixar que se derrame
                                   a flor que traz escondida,

                                   e como, então, trabalhá-la
                                   com mão certa, pouca e extrema:
                                   sem perfumar sua flor,
                                   sem poetizar seu poema.[14]



5. Mas, afinal, como não somar ou acrescentar nada à pintura e deixar pintura ser pintura – pura e simplesmente pintura ou s ó pintura? O que verdadeiramente se ama ou se quer, quando se ama ou se quer a forma-pintura, s ó a forma-pintura nisso que ela é, s ó nisso que ela é? O que é, enfim, a forma-pintura?
A resposta, lacônica, concisa, podemos toma-la, p. ex., em Cézanne: na pintura, a linha é a cor. Quem tem olhos, que veja!
Linha não está falando a mera e abstrata sucessão ou deslocamento de um ponto num espaço (extensão) ou num plano determinado. Linha está falando, sim, de limite e limite diz o lugar próprio de coisa – toda e qualquer. Linha é, pois, lugar ontológico – então, hora! Portanto, o espaço e o tempo de coisa – toda e qualquer. Trata-se de modelar, isto é, cunhar, forjar, formar pela cor, na cor, como cor. Cor, sendo linha, é princípio de realidade, uma instância possível do ver, do fazer-se visível. Então, forma e, em sendo forma, nascedouro, gênese, devir. Agora, pintar é preciso! E pintar é fazer cor vir a ser cor – modelando, forjando, formando, isto é, fazendo ou deixando realidade se realizar. E, agora, realidade se faz à medida que se pinta, à medida que se faz cor vir a ser cor. Pintar é, sim,  a coração (formação!) de cor. Então, o coração, isto é, o pulso, a cadência, a força, a vida do real. Gênese. Pintura é a poética de cor no e desde o pintar. Só há pintar. Gênese. Cor, a forma-cor, é a lógica do real, de todo real possível. Quem tem olhos que veja: a linha é a cor! Uma festa! Quando se diz, quando se pode ou se tem o direito de dizer isso, quando se isso – que festa! – a forma-pintura ganha o máximo de clareza, de evidência, de intensidade. Agora, pintar pode ser maximamente intensidade, isto é, maximamente real ou realidade, na máxima concisão. Precisão com o mínimo. Cor é preciso. Agora, sim, cor pode-precisa vir a ser cor, pois cor é, vale tudo. Pintar é preciso, viver não é preciso. Cor é a forma, a coisa mesma. Cor, forma – isso é todo o conteúdo. Toda realidade possível. Quem tem olhos, que veja! Sim, é uma festa, uma festa para os olhos – uma grande alegria, um grande regozijo.
Morando aí, sendo aí nesta instância ou estância, outro pintor, Paul Klee, anotou, em 1906, em seu diário: “Sonho. Vôo para casa, onde o começo é [...] pois sou aí, onde o começo é”.[15] E, no mesmo diário, oito anos depois, em 1914, vivendo sempre o mesmo instante, o mesmo “aion”, habitando a mesma casa, a cor, então, sempre todo perfeito ou na perfeição de cor, ele confirma: Agora, deixo o trabalho de lado. Algo atravessa-me funda e docemente – sinto isso e me torno certo, seguro, sem devotada aplicação. A cor me tem. Não preciso mais correr apressurado atrás dela. Ela me tem para sempre – sei, vejo isso. Este é o sentido da hora feliz: eu e cor somos um. Sou pintor[16]s ó pintor!







* Artigo publicado em: Arte no pensamento. Org. Fernando Pessoa. Vila Velha: Museu Vale, 2006.
** Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[1] KGW, VIII-1, 7[7], p. 294, 12/27. Também Der Wille zur Macht, Kröner Verlag, Stuttgart, 1964, nr. 828
[2] Cf. F. Nietzsche. KGW, VIII-2, 11[3], p. 251-2. Ou Der Wille zur Macht, op. cit., nr. 818.
[3] Cf. Em F. Pessoa. Poemas completos de Alberto Caeiro. Obra poética. Vol. único. Rio de Janeiro: Aguilar Editora, 1974, p. 238 e 225 respectivamente.
[4] Lembrar E. A. Poe, em Philosophy of Composition, a propósito da escrita de O corvo, que Baudelaire traduziu como La Génèse d’un Poëme e que é, sim, uma lógica da criação.
[5] Cf. F. Nietzsche. KGW, VIII-2, 10[155], p. 209. Der Wille zur Macht, op. cit., nr. 839.
[6] Idem.
[7] Cf. F. Nietzsche. KGW, VIII-2, 10[116], p. 188-9. Der Wille zur Macht, op. cit., nr. 837.
[8] Cf. F. Nietzsche. KGW, VIII-3, 14[61], p. 38-9. Der Wille zur Macht, op. cit., nr. 842.
[9] Cf. Heráclito, frag. 118.
[10] À medida que realidade, toda e qualquer, é afeto, sentimento (emoção, paixão) é forma, forma (realidade) é sentimento. Aqui, agora, porém, não é hora para discutir isso.
[11] Cf. Paul Klee. Die Ordnung der Dinge, Bilder u. Zitate, zusmmengestellt u. kommentiert von Tilman Osterwald, Verlag Gerd Hatje Stuttgart, 1975, S. 94
[12] Cf. J. Cabral de Melo Neto. Uma faca só lâmina (ou: serventia das idéias fixas), em Antologia poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975, p. 131/144
[13] Cf. D. Sylvester. Entrevistas com Francis Bacon. A brutalidade dos fatos,  Cosac & Naify Edições, São Paulo, 2002, p. 104
[14] Cf. J. Cabral de Melo Neto. Alguns toureiros, em Antologia poética, op. cit., p. 155-6.
[15] Cf. P. Klee. Tagebücher, Verlag M.DuMont Schauberg, Köln, 1957, p. 206
[16] Op. cit., p. 307-8

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