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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Gilvan Fogel - Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar

Cadernos Nietzsche, no 13 – São Paulo – 2002 
ISSN 1413-7755

Por que não teoria do conhecimento? 
Conhecer é criar 

Gilvan Fogel* 

Resumo: Partindo de um fragmento póstumo de Nietzsche, o autor explica por que o filósofo alemão nega a teoria do conhecimento enquanto disciplina em proveito de uma nova noção de conhecimento. Para isso, ele assinala, de um lado, a imbricação entre a concepção tradicional de conhecimento e os pressupostos cartesianos; e recorre, de outro, ao esclarecimento de conceitos como perspectiva e afeto, presentes, para Nietzsche, em todo ato de conhecimento. 

Palavras-chave: conhecimento – perspectiva – afetos 



I 

Uma anotação de Nietzsche, de 1887, sob o título “Reforma de Princípios”, anuncia cinco tópicos. Um deles, o quarto, diz: “Em lugar da teoria do conhecimento uma doutrina perspectivista dos afetos (à qual pertence uma hierarquia dos afetos: os afetos transfigurados: seu ordenamento superior, sua espiritualidade)” (KSA XII, 9[8]).  

Queremos entender esta proposta de Nietzsche. Para tanto, é preciso começar perguntando: e por que não teoria do conhecimento? O que é – Nietzsche diria: o que quer a teoria do conhecimento? 

Na história da filosofia, desde a Grécia clássica, o conhecimento sempre se configurou com um dos problemas maiores. Discutido, porém, de maneira inseparável da pergunta pelo real, ou seja, constituindo-se num modo ou numa via de acesso para a compreensão da realidade do real. Mas com a característica de um problema à parte, independente e, sobretudo, com a efígie de propedêutica e de organon, isso somente se dá na modernidade, no desdobramento de uma certa compreensão/interpretação de Descartes e, principalmente, de Kant. É nesta rota histórica que o conhecimento, já no século XIX, será tematizado sob a sigla “teoria do conhecimento” (ou ainda epistemologia, criteriologia, gnosiologia) e tal tematização se fará a partir dos pressupostos desta era moderna. 

O ponto de partida decisivo é a separação e oposição alma e corpo (homem e mundo, ativo e passivo, vivo e morto, sujeito e objeto), que traz consigo uma aporia: como pode o sujeito atingir, captar, apreender o objeto? Sujeito e objeto, homem e mundo, alma e corpo são substâncias, isto é, cada qual se define como um estrato autônomo, um algo sub- e pré-existente e, então, pergunta-se: como o dentro capta o fora? É possível o conhecimento, o saber? Como? Em que medida? Sob quais condições? Surge assim o chamado “problema da ponte”, quer dizer, da passagem, da mediação ou da intermediação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido, entre homem e mundo, entre alma e corpo. 

O conhecimento passa a ser uma terceira substância, uma terceira “coisa”, a saber, uma propriedade, um poder ou uma faculdade do sujeito, da “alma”, responsável por estabelecer a mediação. Ele torna-se uma espécie de hífen para conectar sujeito e objeto, homem e mundo. O conhecimento torna-se assim meio e instrumento e forja-se um campo específico de investigação, cunha-se um “objeto novo”, que, portanto, reclama uma nova disciplina – a teoria do conhecimento. 

Neste contexto, conhecimento e representação são inseparáveis. Conhecer é representar, ou seja, conhecimento é a representação de algo ou, ainda, a representação que um sujeito pensante (o homem) faz ou tem de um objeto formal ou materialmente dado, à medida que este sujeito se volta, retorna sobre si e a partir desta volta sobre si re-apresenta o dado sob a própria forma do sujeito – esta re-apresentação constitui propriamente o objeto. No âmbito desta formulação, impõe-se a necessidade de definir os três termos, a saber, representação, sujeito e objeto. A grande questão, no entanto, geradora de tudo o mais, é a pressuposição desta compreensão, segundo a qual a realidade, toda realidade possível, já se faz e precisa se fazer como ou a partir da estrutura sujeito “versus” objeto. Isto é uma evidência, um óbvio e, por isso, inquestionável. Este tipo de evidência cria sempre uma escuridão, uma cegueira no pleno meio-dia da evidência... 

A teoria do conhecimento está a serviço da realização do ideal moderno de verdade, ou seja, está empenhada em fazer cumprir a certeza como critério de verdade, como medida de realidade. Para tanto, ela define que, antes de conhecer, é preciso certificar-se, assegurar-se que se conhece (isto é, atinge-se, capta-se, apreende-se ou representa-se o objeto) e que se conhece bem, isto é, que o conteúdo do conhecimento, de algum modo, real ou transcendentalmente, corresponde à natureza ou ao modo de ser do objeto conhecido. A teoria do conhecimento, assim, vendo o conhecimento como meio e instrumento (organon), reivindica para si o direito de propedêutica, tal como a lógica se auto-denominou propedêutica e organon para pensar – para pensar bem ou corretamente: antes de pensar é preciso aprender a pensar corretamente. Impõe-se previamente estudar as regras para o bom pensar, tal como se o modo de pensar existisse ou pré-existisse antes e fora do pensar isso ou aquilo, assim ou assim outro. Teoria do conhecimento, tal como lógica, converte-se num aspecto da metodologia, ou seja, da doutrina do método ou do caminho do prévio asseguramento e controle do conhecimento, da verdade e do real. Sim, impera o tipo “desconfiado”, que, meio empolado, se diz cético e crítico... De passagem, lembremos uma observação de cunho psicológico, de Dostoievski, segundo a qual os tipos mais desconfiados são o anão e o corcunda. Seria teoria do conhecimento coisa de corcunda e de anão?!... Nietzsche fala que a filosofia “reduzida à teoria do conhecimento é um resto de filosofia, movida por desconfiança e covardia, quando não escárnio e compaixão consigo mesma – uma filosofia no último suspiro, um fim, uma agonia – como poderia tal filosofia mandar”? (JGB/ BM § 204). 

É neste contexto de incerteza e de desconfiança, mas que no fundo é obsessão por certeza, controle e auto-asseguramento, que se faz oportuna a pergunta de Hegel: “Por que não, ao contrário, tratar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança e preocupar-se com o fato de que o medo de errar já é o próprio erro?”1 . É, portanto, no espírito desta aguda observação de Hegel, que precisamos começar a articular a compreensão da proposta de Nietzsche de ver o problema do conhecimento no âmbito de uma doutrina perspectivística dos afetos – é, pois, desconfiado com a desconfian- ça fomentadora da teoria do conhecimento e, sobretudo, cuidando que o medo de errar já é o próprio erro... Sim, não preocupação com conhecimento e verdade, mas medo de errar – isto norteia a teoria do conhecimento. 

O desdobramento do problema do conhecimento, tendo como fios condutores a teoria do conhecimento e a moderna formulação de base do problema (S x O), conduz ao estudo detalhado dos processos e dos mecanismos bio-psicológicos e neurofisiológicos (o cérebro) do sujeito cognoscente, o que passa a responder pelas possibilidades e pela natureza do conhecimento. Este, que já é visto como intermediário e instrumento, passa a ser compreendido e determinado como uma espécie de epifenômeno de funções cerebrais, melhor, bio-psico-neurológicas. É o que hoje se faz com o nome de neurociência cognitiva. Por esta via, explicar-se-á sensações, recepções do fora ou externo pelo dentro ou interno, estímulos, enzimas, ácidos, sinapses, correntes e fluxos eletroquímicos – enfim, sempre ainda a mecânica e o mecanismo da representação, do conhecimento, que, assim, continua visto como intermediário e instrumento. A questão, a saber, o conhecimento nele mesmo, continua desviada e falsificada. A neuro-ciência cognitiva e, por extensão, as chamadas filosofias da mente são a versão pós-moderna da moderna teoria do conhecimento – o conhecimento estaria localizado em alguma área do cérebro, que estaria sendo rigorosamente mapeada. E o cérebro seria um dado primário – o real !! O pós (pós-moderno), como também o neo, aqui e quase sempre, é tão-só indicação de arcaísmo – arcaísmo e solecismo... 

Por que não teoria do conhecimento? Porque o problema, de cara, ab origo, está mal encaminhado, já desviado do verdadeiro problema e, portanto, com esta formulação ou a partir desta pré- compreensão não resta nenhuma esperança. Kant, com surpreendente humor, diria: perguntando deste modo, é como se um ordenhasse o bode e outro aparasse com a peneira...!!2 


II 

Sim, “introduzir uma desconfiança na desconfiança e cuidar que o medo de errar já é o próprio erro”, pois se parte de uma outra evidência, a saber, o afeto é o elemento, o medium – o absoluto. Isto é o mesmo que dizer: o começo (princípio, fundamento) é afeto. Quando se diz: afeto é o elemento não se está pensando com elemento, por exemplo, a parte que entra na composição de algo ou cada parte, cada indivíduo de um ajuntamento de partes, mas o âmbito, o ambiente, o clima ou o pathos em que algo se dá, acontece, a saber, o envolvimento ou ambiência em que este algo se encontra – mais, que ele é, quando se diz, por exemplo, que a água é o elemento do peixe. Digo também que é o seu meio, seu medium e com isso não se pensa com meio o intermediário (como acima, na primeira seção, quando assim se falava do conhecimento na perspectiva da teoria do conhecimento), o ponto central eqüidistante, a metade ou a porção entre (intermediária) um e outro termo, mas algo como o meio ambiente, a circunstância, tal como se está no meio da multidão, no meio da borrasca e da tormenta, isto é, totalmente envolto e tomado por borrasca, por tormenta ou por multidão, de tal modo que estas se fazem, cada vez, sim, o elemento! É, portanto, neste sentido de elemento e de medium que afeto se faz o ab-soluto, quer dizer, o que não tem referência alguma para fora (antes ou depois, aquém ou além) do próprio afeto: ele é lugar e hora de vida, de existência, das coisas que aparecem ou se dão na vida, na existência. Portanto, começo, origem, fundamento. 

Formulando melhor: por afeto cabe entender todo e cada verbo constitutivo do existir, do viver. Verbo, isto é, todo e qualquer modo de ser possível do homem, modo este que abre um campo de relacionamentos e, a partir da ação ou da atividade que é este campo, se instaura, vem a ser um âmbito, um domínio possível de realidade, por exemplo, pensar, escrever, pintar, caçar, guerrear, jogar... A isso se pode também denominar força, isto é, irrupção de força, que é um campo de relacionamento ou de instauração de uma realidade possível. 

Foi dito: o afeto abre um campo de relacionamentos e este é ação, atividade. Em questão está a ação ou a atividade de auto-exposição deste afeto, ou seja, a ação de o afeto fazer-se este afeto ou vir a ser o que é aparecendo como isto, como aquilo. Auto-exposi- ção diz: expor-se, aparecer ou vir a ser desde si mesmo. Este desde si mesmo é a denominação própria de vida (Psyché) e o que decide por esta auto-exposição é o caráter de súbito, de abrupto ou de imediato do afeto. Afeto, a força ou o modo de ser em que se está e que se é, é como a subtaneidade, a i-mediatidade do salto. Assim se configura também o círculo. Por isso, origem, começo – Ur-sprung. O afeto, a força, que é ação, é abissal – por isso vida, a saber, movimento desde si próprio ou auto-exposição. 

Afeto diz ainda e, sobretudo, ser tocado, ser tomado por. É o que também denominamos experiência. Dizer que afeto é começo, é igualmente dizer que origem (salto, Ur-sprung) é entendida a partir de experiência, como experiência. Experiência, empeiria, fala do movimento, da atividade do ser tocado, tomado pelo afeto que perfaz, isto é, que é esta própria experiência. É assim, nesta estruturação, que vai se fazendo a exposição, a auto-exposição ou, o que é a mesma coisa, aparição, concretização. 

A noção de experiência anda rigorosamente junto com a noção de começo, de origem, perfazendo uma e a mesma compreensão – um e o mesmo fenômeno. Isto justamente porque começo, origem, se define como e a partir de experiência. Ao se falar de começo como súbito, imediato, o que se está falando é que, a rigor, no ou num começo (pois o começo é sempre um começo) não se entra, mas nele abruptamente se cai, mesmo se de-cai, isto é, nele nos vemos súbita ou abruptamente caídos, jogados e, por isso, tomados, atravessados, perpassados – quer dizer: afetados. Este atravessar, perpassar é que propriamente dá o caráter de pathos, de afecção, ou seja, de ser tocado e tomado por... Enfim, o que também se denomina experiência. Começo, por um lado, tem ou é a mesma estruturação de experiência e, por outro, é sempre e necessariamente uma experiência determinada e é justamente esta determinada experiência que define, que dá a determinação ou o modo de ser do que aparece e se mostra – quer dizer: disso que é e há. A determinação (em alemão, Be-stimmung, en-tonação) é justamente a cor, o tônus, o tom – mais e melhor, a coloração, a entonação que atravessa, quer dizer, percorre, perdura, performa e assim perfaz isto que é e há, tornando isto tal como há e é. Sim, o é é o tom, a entonação, isto é, o afeto, a afecção. “Experiência, empeiria, é uma palavra que em grego, como em latim, vive da raiz per. Os vocábulos, como as plantas, vivem de suas raízes. Nas línguas germânicas existe igualmente per em forma de fahr. Por isso, experiência se diz Erfahrung. ...per é atravessar; em grego, peiro ...”3 

Assim, perfazendo, performando, perdurando, experiência (Erfahrung) é, de algum modo, a viagem – erfahren é viajar. Mas sobretudo a viagem verbo e não substantivo, ou seja, trata-se de ser ou estar em viagem, a caminho. Por exemplo, A fenomenologia do espírito, de Hegel, enquanto “Ciência da experiência (Erfahrung) da consciência”, é o saber que é a viagem da consciência, isto é, é o ser e estar em viagem, o a caminho da consciência para a consci- ência que, assim, define, determina o movimento de realização de realidade enquanto e como curso e percurso desta origem, deste caminho, deste método – enfim, desta estória (acontecer, suceder). Experiência é portanto isto: a, uma viagem. A viagem que se é. A viagem que é, que são as coisas, cada coisa. É assim, como viagem, que experiência é também envio, destino e destinação, remetimento, relacionamento – estória. 

Experiência (afeto), portanto, se faz e se dá como uma viagem (fahr), que é uma travessia (per), ou seja, em viagem, a caminho ser atravessado, trespassado, perpassado. Nesta viagem, por ela e desde ela, mostra-se, revela-se ou faz-se visível tudo quanto é e há. Daí que experiência (afeto) e perspectiva dizem o mesmo. Elas se implicam e se complicam! Tudo quanto é e há, é e há à medida que já é a articulação de um afeto, isto é, de um modo de ser, que também pode, talvez precise se denominar perspectiva, uma vez que é neste ou desde este afeto que o que há e é mostra-se, aparece, faz-se visí- vel (perspectiva = perspicere) ou vem à determinação (entonação, coloração!). Perspectiva (perspicere) fala, portanto, do elemento, do medium como lugar e hora de instauração ou a instância do fazer-se visível – ser-aparecer. 

Uma “doutrina perspectivista dos afetos” é uma doutrina que articula uma compreensão de realidade, da dinâmica de realização de realidade, enquanto e como perspectiva-afeto ou afeto-perspectiva. Trata-se de uma doutrina do real enquanto e como movimento de experiência ou a compreensão de realização de realidade como sendo o mesmo que realização/concretização de experiência. Experiência (afeto) é determinação à medida justamente que é o que faz com que a coisa (tudo quanto há e é) insista e persista em seu ser, na sua presença e isto, de novo, à medida que é um insistente e persistente (repetitivo e incoativo) atravessar. Ou seja: a experiência, o humor, per-fazendo, per-correndo, per-passando, per-durando e, assim, levando o que é e há à perfeição (per-facção)4 . 

A realidade, toda e qualquer possível realidade, é o movimento, a dinâmica de transfiguração, isto é, de alteração ou diferencia- ção do afeto, do humor – da experiência. É ela que é o mesmo que se altera, que se diferencia (se transfigura) 5 , perfazendo assim o múltiplo, a multiplicidade – tudo quanto há e é. É ela, portanto, o logos, quer dizer, o sentido, a força instauradora de todo real. E isto na e como a estruturação de afeto (perspectiva), que, por se fazer desde e como salto (súbito, i-mediato, círculo!), se revela como transcendência – e nada subjetiva. 

Os verbos que conjugam o viver, o existir, são experiências, afetos e, por sua vez, cada um é diferenciação e alteração (transfiguração) de si mesmo. Ou seja, cada um repete a estrutura de experiência ou perspectiva enquanto tal. Daí sua(s) transfiguração(ões) na tessitura, no urdimento do real. 


III

A este modo de ser arcaico, que é ser no elemento-afeto (experiência), pode-se também denominar interesse. Vida, existência é sempre já interesse, ou seja, é ou dá-se sempre já interessadamente. Num sentido bem preciso, interesse quer dizer: ser sempre já no âmbito ou desde dentro (“inter”) de um determinado modo de ser (“esse”); quer dizer: desde dentro de um afeto que, viu-se, modula-se como força, perspectiva, experiência – enfim, a ou uma determinação. A expressão “sempre já”, escandida pela repetição, aponta para a dimensão de súbito, de imediato ou de salto, justamente a dimensão que abre, instaura medium, elemento, no âmbito do qual sempre já se é ou se está – círculo. Os modos de ser, os verbos que perfazem o existir definem os interesses, são os interesses. Com isso, está-se dizendo que a vida é inserção. Inserção ou história – na verdade, estória (acontecer, suceder). O homem não consegue, não pode pôr-se fora ou atrás de si mesmo para apreender-se ou representar-se “oniabarcantemente” de fora, ou seja, antes de afeto (interesse), o que significa dizer: o homem não consegue pôr-se antes ou fora do próprio homem, para assim apreender, captar o começo do homem. Ser histórico, ser inserção quer dizer que o homem não começa, isto é, não há o primeiro homem, pois ele sempre já come- çou, sempre já se deu ou aconteceu. 

Então o homem, este ou aquele homem, não pré- ou sub-existe ao afeto, ao interesse. Assim sendo, o homem, quer dizer, este ou aquele, não tem afeto(s), ele não é algo algum, nenhum eu, nenhuma pessoa, nenhuma alma, espírito, consciência, enfim, nada constituído (sujeito) e que seja tocado ou tomado, ou que assim constituí- do se abra para ser tocado ou tomado por algum afeto, por algum interesse, que venha a somar-se ou a agregar-se a ele. Antes e paradoxalmente, é porque sempre já foi tocado e tomado por afeto-interesse é que o homem vem a ser, pode vir a ser este, aquele ou aquele outro sujeito definido, constituído. Mas, ora, está-se falando de homem e vem irremediavelmente a pergunta: afinal, que homem? Quem é tocado ou tomado, isto é, afetado? Não há quem, isto é, sujeito pré- ou sub-existente, mas tão-só um modo de ser (o homem) que pode e mesmo sempre já veio a ser tocado ou tomado (afetado) por um tal ou tal interesse e que, uma vez tomado, é usado pela ação do afeto que, então, o faz vir a ser o que ele é. Isto na ação, historicamente, isto é, na estória (acontecer, suceder) de auto-exposição do afeto-interesse. Este modo de ser, que se define como poder ser tocado por afeto, não é, portanto, nenhum algo, material ou imaterial, pré- ou sub-existente, mas, segundo uma cunhagem precisa, “a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”6 . Este estranho estrato – a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade – é a definição de homem, do vivente que é ou tem “logos” e, então, a forma ou a determinação de toda realidade possível, à medida que se configura como lugar e hora de todo e qualquer afeto-interesse, ou seja, de tudo quanto é e há, uma vez que é o afeto (experiência) que define a textura, a constituição ou determinação ontológica. 

O salto, decidindo pela forma afeto-interesse, define uma amarração, uma co-implicação (“síntese”!), que é relação. Não relação compreendida a partir de seus termos ou pólos, que seriam, na mútua, recíproca ou simultânea e dialética referência, anteriores (portanto, fora!) à própria relação e os autores ou a causa da relação. Ao contrário, o salto decide por relação como o atamento que se instaura, que sempre já se instaurou no salto e desde o salto (por causa dele, então, em razão ou por causa de nada! Graças a nada!) e que funda e possibilita isso que a distração ou o senso comum denomina termos ou pólos de uma relação. O salto, o súbito, abrindo e instaurando círculo, põe ou instaura relação, a relação arcaicooriginária, cuja insistente retomada desenha a linha, os contornos, as configurações todas do real, ou seja, determina toda realidade possível. 

Nesta articulação ou na vigência deste modo de ser, que se define como inserção-história (a relação arcaico-originária), a estrutura sujeito x objeto não é boa medida para medir o real, quer dizer, não é oportuna para falar de realidade enquanto afeto-interesse ou inserção e história. Por isso, não é boa medida para se falar responsavelmente de conhecimento. O próprio conhecimento se determinará como um afeto, como um verbo possível, e, assim sendo, tal como se fosse um terceiro termo ou uma faculdade ad hoc, ele não mediará ou intermediará nada interno (homem) com algo externo (mundo, ‘coisas’). Sujeito e (+) objeto, homem e (+) mundo, dentro e (+) fora são epígonos e isto porque o e (o “+”), o conectivo, que está à busca de explicação e justificativa para um elo de ligação, um nexo (a síntese) é o que não há como terceiro termo, o que é supérfluo, uma vez que tal ligação ou amarração sempre já aconteceu, sempre já se deu. Ou seja, a síntese sempre já foi! É ela o acontecimento arcaico, a relação originária ou o um que sempre já se deu. Tanto Deus (Descartes), quanto esquematismo transcendental (Kant) são supérfluos – expedientes inoportunos para solucionar um pseudo-problema. 

Jogado, inserido no afeto-interesse-história, o homem é, melhor, vem a ser – se faz! – tal como personagem num enredo. O enredo, a estória, é o elemento. A tal ponto o elemento – ou seja, o começo, a fundação, a inauguração – que é preciso dizer: não há personagem sem enredo, quer dizer, não há o personagem do drama, da obra não escrita. Faltou tudo, faltou o enredo, a ação, a estória, que é o tecido, a textura, a substância do personagem, isto é, do homem e de todo e qualquer real possível. Ao abrir-se de uma narrativa, de uma estória – imagine-se o Quixote, Hamlet, Raskolnikov, Riobaldo – o personagem é tão-só um grafema ou um fonema, tinta preta sobre papel branco e, enquanto tal, somente uma insinuação e uma promessa. Melhor formulado: a promessa de um enredo, de uma estória faz do personagem também uma insinuação e uma promessa – a possibilidade de ser, de vir a ser o poder-ser que ele é. Portanto, a possibilidade de uma possibilidade, a saber, a sua própria. Sim, vem a ser o que tu és. No desdobrar-se da ação, no entretecer-se, no urdimento ou na teia do enredo, da estória, que é o suceder ou acontecer deste poder-ser, o personagem vai surgindo, vai irrompendo, fazendo-se carne, ganhando vísceras, miolo, tutano, determinação, evidenciando ou fazendo visível um modo de ser possível, qual seja, o seu e só o seu próprio. Ele não é sujeito ou causa da ação, mas, ao contrário, ele é obra de ação, de atividade de obra fazendo-se obra. Diz o Quixote, com toda propriedade: “Que cada uno es hijo de sus obras”. Isto é: obra de obra. 

Por falar em Quixote, curas e barbeiros – todos aqueles que estão fora da Cavalaria Andante, o senso comum! – acreditam que personagem, por exemplo, o próprio Quixote, é obra da fantasia, da imaginação do autor, de Cervantes, que, sim, seria um sujeito e preexistiria à obra. O Quixote seria invenção, projeção, podem dizer ainda produção ou criação da mente (pois é assim que entendem criação: como “invenção”, projeção da mente!), do cérebro do autor, de Cervantes, e, como tal, efeito da causa-Cervantes. Mas isso é senso comum – perspectiva de curas e de barbeiros! O Autor não pré- ou sub-existe à obra. Ao contrário, ele é obra da obra. Cervantes, o escritor, vem a ser Cervantes, a saber, o escritor, à medida e só à medida que escreve, que se deixa tomar pela possibilidade-Quixote e se deixa fazer pelo fazer-se do Quixote. É o escrever que faz de Cervantes escritor e, por isso, com todo rigor, fora, antes ou depois do escrever ele não tem o direito de dizer: “eu escrevo!”. O eu é tardio, epígono. É o que resta, o que sobra, o que se cristaliza ou se coisifica no escrever, desde o escrever. É assim que, na obra e desde obra, fazem-se o autor e o personagem – Cervantes e o Quixote: “Que cada uno es hijo de sus obras”! 

O escrever, o verbo, que perfaz a possibilidade de ser à medida que é um afeto-interesse, usa Cervantes, o qual se deixa usar e, então, fazem-se autor e obra, isto é, Cervantes (o escritor) e Quixote. É só a perspectiva do de fora, do sujeito, que diz: “Ele, Cervantes, escreve”, quer dizer, ele é o sujeito, a causa do escrever, que portanto preexiste ao escrever. Isso, já se disse, é a visão de curas e de barbeiros, que sempre pensam: “eu escrevo”, como se escrever fosse um atributo e um ato deliberado (posso ou não posso, quero ou não quero escrever!) de um sujeito, que seria escritor antes de escrever e mesmo absolutamente sem escrever. É claro que há isto, este sujeito, mas tal sujeito só é verdadeiro quando redijo uma petição ao INSS ou preencho um formulário na repartição pública, por exemplo, para o CNPq. Mas quando está em questão identidade, próprio, destino, história (estória!), enfim, vida como obra e obra de obra, a medida passa a ser outra e aí ouve-se o veredicto de artista, de quem fala a partir da experiência – Cervantes: “Para mí sola nació don Quijote, y yo para él; él supo obrar, y yo escribir; solos los dos somos para en uno”. 

Portanto, dentro e fora, constituinte e constituído, causa e efeito, autor e obra, sujeito e objeto – nada disso é boa medida para medir o real, o qual se faz e se determina desde e como afeto, que é, em última instância, a textura, a consistência da vida. Nada disso pois é modo de ser fundador do autêntico, do genuíno conhecer. 


IV 

E como se faz então o conhecer no horizonte de uma doutrina perspectivista dos afetos? 

No discurso Do ler e do escrever, na primeira parte de Assim falava Zaratustra, lê-se: “De tudo que se escreve, amo (isto é, gosto, quero) somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito. Não é fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores preguiçosos”. 

Cabe entender, na citação, “escrever” com a mesma intensidade, com a mesma gravidade, tal como acima se falou do escrever para Cervantes. Escrever, na citação, não fala, portanto, do ato de preencher um formulário para a CAPES, mas é verbo, um verbo do ou no existir-viver, então, uma possibilidade de ser do real e, por isso, em questão está a feitura e a liberação de um próprio, de uma identidade, a conquista de liberdade – portanto, questão de vida e de morte na dinâmica do vir-a-ser ou do fazer-se deste escrever. Em lugar de “escrever”, posso e preciso ler-entender qualquer outro verbo, contanto que realmente verbo do ou no existir-viver, por exemplo, pintar (com sangue), arar (com sangue), jogar (com sangue), guerrear (com sangue), pensar (com sangue), etc... 

Ao invés de dizer “escrever com sangue”, pode-se dizer: escreve com força, escreve com vida. Mas vida é afeto, interesse. “Sangue” diz o mesmo que afeto, isto é, o mesmo do que acima formulamos como força, perspectiva, experiência, interesse. O texto, então, diz: escreve desde o real interesse, ou seja, desde dentro de um modo próprio de ser – ou ainda: escreve realmente tocado e tomado (afetado) e experimentarás, quer dizer, evidenciar-se-á ou fazer-se-á visível que sangue, isto é, afeto (interesse), é espírito, ou seja, a vida, a força ou o poder de evidenciação e persuasão de todo escrever, de todo aparecer e fazer-se visível. Enfim, tal escrever revela-se como uma autêntica perspectiva (perspicere), autêntico poder de realização. É, portanto, “sangue” (afeto) que evidencia, que é a evidência ou o poder de iluminação do que aparece e se faz visível como isso, como aquilo. Ele é a determinação – “Be-stimmung”. 

Mas, na citação, a frase que realmente nos interessa é a seguinte: “Não é fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores preguiçosos”. Como entender o sangue alheio, isto é, como conhecer o outro? Seria esta a mesma pergunta que aquela: como o sujeito pode atingir, apreender o objeto? Estaríamos, de novo, frente ao problema da “ponte”? Não. Não é isto que está em questão, uma vez que o fundo de ressonância, a estruturação é outra, a saber, vida (começo, origem, fundamento) desde e como afeto, ou seja, na configuração do súbito (imediato), salto, círculo, relação originária. Aí sujeito x objeto não é a medida, não diz a relação. Mas vejamos. 

“Compreender o sangue estranho” quer dizer: entrar no horizonte, na dimensão, isto é, na força ou no interesse realizador (= perspectiva) do outro. Ou seja, entrar no movimento de realização de realidade (= afeto), a partir do qual o outro fala, o qual o outro é, ao dizer e ver o que diz e vê, tal qual vê e diz. Por “entrar” entenda-se o ser tocado e tomado por, isto é, subitamente, passar a fazer parte ou participar de uma experiência. Entrar no sangue estranho é, sim, crescer com o outro, con-crescer com o movimento de realização do outro. É então co-fazer a realização de realidade que o outro faz e é, melhor, pela qual o outro é feito e per-feito. Em suma, é co-fazer e assim con-crescer com a própria coisa, que aparece como outro, como transcendência. O sangue estranho, dizendo afeto-experiência-perspectiva, diz a própria coisa, a saber, o sangue estranho é sempre a determinação da coisa estranha, do outro – a alteridade enquanto tal. Conhecer, assim, é realmente co-nascer. 

E é preciso, impõe-se, por respeito à coisa, para poder colocar-se nela mesma e falar desde ela mesma – para tanto, impõe-se entrar nela, participar dela, que é o modo, o único modo como vai-se concrescer, co-fazer – co-nascer. E isso, diz o texto, “não é fácil”. E não é fácil, porque não é mediatizado, intermediado, ou seja, não é nada “demonstrado”, se se entende por demonstração o processo formal de, pela via de uma cadeia de pressuposições e de conclusões, coerentes ou sintaticamente consistentes, derivar ou deduzir a “passagem” e com ela também a própria coisa. Não é fácil porque não tem, no caso, o expediente facilitador da mediação ou intermediação lógico-dedutiva – silogística. Não há “prova” e “garantia” objetivas. “Então, é subjetivo!” – retruca e refuta o espírito objetivo. Não. Objetivo-subjetivo, já se viu, não é critério, não é medida, quando o que está em questão é a natureza súbita e então circular do afeto, isto é, da experiência, isto é, de toda e qualquer realidade possível. 

Compreender, experimentar e assim entrar no sentido do sangue estranho, participar dele e desde ele e graças a ele ver e falar – isso não é fácil! Não é fácil, mas é o que é preciso, o que se impõe. Afinal, como se entra no sangue estranho, como se passa a se participar dele? Enfim, como se entra na própria coisa, na própria transcendência? A transcendência o é do afeto, da experiência e quem (!) decide isso é o súbito, o salto – quer dizer, “ninguém”, nada. O caminho é o salto. No sangue estranho, na coisa, só se entra através do salto. No salto, através dele, dá-se a transposição súbita para o outro, para o sangue estranho. Por esta via, entra-se na pró- pria coisa, participa-se dela, ou seja, entra-se no seu sentido (força, afeto, interesse) e assim a compreendemos. Este salto, porém, não acontece sem esforço, sem prévia ocupação ou sem pré-ocupação. Por isso, diz ainda Zaratustra, quer dizer, esta compreensão de experiência (afeto) e salto: “Odeio os leitores preguiçosos”, ou seja, estes que não estão empenhados no esforço, na necessidade da conquista do salto ou da transposição para o sangue estranho – para a própria coisa. 


V 

A preparação para o salto dá-se por uma espécie de prévia ocupação ou de uma pré-ocupação com a coisa, com o sangue estranho. Esta preocupação se caracteriza como o esforço, o empenho, mesmo a “boa vontade” para com a coisa, ou seja, uma certa disposição preliminar de consentimento e de assentimento. A este consentimento ou assentimento, que é uma obediência, pode-se também denominar escuta. Portanto, a transposição súbita é preparada por todo um tempo de escuta, isto é, por todo um tempo de prévia doação e entrega a isso para que é preciso se passar, se transpor – enfim, se saltar. É isso, a saber, este esforço de escuta, de espera e de entrega prévias, que o leitor preguiçoso não tem, não é. É justamente sua indiferença, sua apatia ou desinteresse, o não estar e não ser assim previamente empenhado que caracteriza a sua preguiça. A rigor, ele não quer ler o sangue estranho, não quer entrar na coisa. 

Dizia-se: O salto se dá desde a escuta. É-se tentado dizer: ele cresce, ele se funda em escuta. Alguém objetará: “então, não há nem súbito e nem salto!” O fato é que o salto reclama que, para saltar, de algum modo, já se esteja na compreensão ou na pré- compreensão disso para dentro de que se quer ou se precisa saltar, para assim vir a compreender e a conhecer. Isto é paradoxal – contraditório. Mas justamente neste contraditório ou paradoxal está a afirmação do salto, quer dizer, do círculo que somos e do abissal da coisa, de toda coisa. Isto está anunciado no fragmento 18, de Heráclito, que diz: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”,7 isto é, se de algum modo já não se está nisso para o qual se impõe saltar, o salto jamais se dará e a “coisa” permanece “indescobrível”, inacessível. 

Mas que “de algum modo” é este? O homem, sendo ou vivendo no e desde o salto – a irrupção súbita, o “Ur-sprung” – já é sempre todos os afetos. Entende-se, enquanto possibilidade, ele já é todos os possíveis modos de ser de vida ou todas as possibilidades (verbos, afetos) da existência, uma vez que é homem, isto é, que vive, que existe. Assim sendo, quando se fala de súbita transposição (passagem, transferência) para o sangue estranho, para o afeto que o outro é, não estamos diante da aporia cartesiana da passagem de um sujeito para um objeto, pois o que está em questão não são duas substâncias autônomas (a res cogitans e (+) a res extensa), mas, saltando para outro afeto, salta-se sempre para uma possibilidade pró- pria, ou seja, tão-só passa-se para um modo de ser que já é nosso, de cada um. Por isso e só por isso pode-se passar. Um passar que é sempre ultra-passar, trans-cender, o que se é ou aquilo em que se está em direção a uma possibilidade própria – isto é, passagem ou ultrapassagem de um afeto para outro. Isto define a estória (o acontecer ou suceder) das transfigurações dos afetos. Esta passagem ou transposição, enquanto salto da ultrapassagem, é a conquista de uma possibilidade própria, que perfaz o crescimento, ou seja, a intensificação e a clarificação de vida no traçado de um destino, de uma destinação. É nesta dinâmica, que é a do jogo da passagem, da autosuperação ou da estória, que o homem realiza o imperativo da vida, cunhado por Píndaro, sob a forma: “Vem a ser o que tu és”. Ou seja, estória, acontecer ou suceder, de afeto – de interesse ou de experiência. 

Esta transposição, melhor, esta (pré)disposição para o salto é ela mesma um afeto, a saber, o afeto que é o próprio conhecer, que, por seu lado, cada vez realiza-se diferentemente, ou seja, cada vez este conhecer se realiza como o afeto ou a coisa em questão – isto é, o afeto ou a coisa da hora! Há tantos conhecimentos, tantos modos de conhecer, quantos os interesses, os afetos ou os possíveis verbos do existir. E isto não é subjetivismo ou relativismo, uma vez que não é esta a constituição, a textura de afeto, de interesse. 

Mas há um conhecimento exemplar, que não é o conhecimento, tal como, por exemplo, se auto-proclama o conhecimento conceitual-representativo ou lógico-categorial, mas que é sempre um conhecimento, a saber, aquele que se põe na própria coisa, à altura da própria coisa e desde ela vê e fala, quer dizer, aquele que se transporta ou se transfere para o sangue estranho, para o afeto que é a coisa em questão, que a performa, enquanto e como sua determinação (Bestimmung), sua essência. 

O conhecimento conceitual ou lógico-categorial-representativo é tão-somente um modo possível de conhecer, que tem ou é um interesse próprio, o qual se revela teleologicamente na civilização técnica ou na tecno-ciência. É aí que este conhecimento exibe maximamente o interesse que ele é, qual seja, o ideal ou o programa de tudo programar, isto é, de planificação, controle e autoasseguramento totais. Identifica-se inteiramente com o ideal de cálculo, onde “cálculo” não diz somente numeração e quantificação, mas, sobretudo, através da numeração e da quantificação, cálculo fala da atitude que está empenhada no estabelecimento antecipado de todas as condições prévias para o exercício do controle e do autoasseguramento, quer dizer, cálculo fala do triunfo do esforço pelo cumprimento do projeto cartesiano de verdade e igualmente de realidade como certeza. Este conhecimento possível – a total objetificação na representação subjetiva – domina como o conhecimento e justamente isso se constitui na sua presunção, na sua arrogância, na sua hybris maior – se é que se possa falar de hybris maior ou menor... 


VI 

Recapitulando, a teoria do conhecimento erra, primeiro, porque supõe a estrutura sujeito versus objeto como um índice elementar de toda realidade. É este seu ponto de partida. A partir daí, impõe-se resolver o problema da ponte, isto é, da passagem, da apreensão ou da captação de um fora, o objeto em sentido lato (isto é, o que quer que, formal ou materialmente, apareça fora do sujeito), por um dentro, o sujeito, em sentido estrito, ou seja, o cogito, que representa. Num segundo momento, a teoria do conhecimento erra, porque, seguindo o fio condutor desta formulação, escamoteia o real problema do conhecimento, à medida que passa a compreendê-lo e determiná-lo como meio, como elemento de ligação, o nexo que faria a conexão ou a junção (síntese!) com o real ou o objeto, supostamente separado do sujeito cognoscente. Assim, o conhecimento aparece como meio ou, o que é a mesma coisa, instrumento. Na seqüência, a teoria do conhecimento tende a se voltar exclusivamente para a determinação e explicitação dos processos bio-psíquicos e neuro-fisiológicos (veja-se, hoje, a chamada neuro-ciência cognitiva) do sujeito cognoscente, do cérebro, ou seja, passa a ser doutrina(s) a respeito do funcionamento dos mecanismos do conhecimento. 

Vistos, porém, desde uma doutrina perspectivista dos afetos, estes processos, mecanismos do conhecimento, melhor, do sujeito cognoscente, absolutamente não interessam, pois resultam da falsificação na colocação do problema (ordenha e apara com a peneira!). Isso, a saber, tais processos e mecanismos, configura-se como estranho e externo ao conhecimento, ou seja, não vai ao encontro de seu modo de ser próprio, que, em última instância faz coincidir conhecer e viver, conhecimento e vida. E por vida entende-se a dinâmica de vir a ser, o jogo de auto-superação ou de alteração (diversificação ou diferenciação) desde si mesmo. Este jogo de alteração, quer dizer, de vir a ser outro, que marca transformação ou transfiguração, o movimento vida, se define como criação. E isto se dá à medida que vida, enquanto dinâmica e jogo de interesse-afeto, se revela como sendo necessariamente apropriação. Apropriação no uso que faz daquilo que vem ao encontro no interesse e como interesse, que se revela ou que se faz visível desde a perspectiva que tal interesse é. O interesse ou perspectiva já é sempre também apropriação. E apropriação quer dizer: trazer para junto de um próprio e, assim, cunhar uma identidade. O próprio é sempre o interesse, a força que realiza, que faz visível isto que aparece e se faz. Próprio, interesse, afeto e perspectiva dizem, em diferentes níveis ou configurações da compreensão, o mesmo, ou seja, diferentemente apontam para o mesmo fenômeno. Sendo atividade de próprio ou apropriação, impõe-se que vida seja compreendida desde e como interpretação. Inter-esse (apropriação) já é sempre inter-pretação, isto é, o que quer que seja e apareça (que se faz visível na perspectiva, no per-spicere) o é e se faz sempre já desde a relação arcaica que é todo e qualquer interesse, todo e qualquer afeto, que sempre já se interpôs. É irrevogável que conhecer, isto é, transpôr-se para a dimensão própria da coisa (= afeto), seja atividade de interesse, que este seja ou se dê como apropriação e que esta seja o fazer-se ou concretizar-se de interpretação (isto é, a própria ação de interesse ou afeto, que sempre já se interpôs na e como relação originária), o que caracteriza uma dinâmica de alteração (diferenciação ou diversificação) ou um jogo de insistente auto-superação, cujo outro nome é vida, enquanto e como criação ou estória (suceder, acontecer) – isto é, atividade de auto-transcender-se, auto-ultra-passar-se, auto-superar-se. 

Assim sendo, impõe-se não entender conhecimento nos termos propostos pela teoria do conhecimento, mas ver-se no conhecimento, na ação de conhecer, um modo de ser possível, então necessário, do homem e que, por isso, coincide com o próprio modo de ser do fundamento, a saber, vida, que é criação. Por este caminho, o problema do conhecimento coincide, por um lado, com o próprio problema da realidade do real e, por outro, identifica-se com a pró- pria filosofia, ou seja, com o esforço de coincidir com o próprio real – amor à verdade! 

Enquanto modo de ser fundamental de vida, o conhecimento pode e precisa ser ele mesmo determinado como uma afecção (isto é, nele e por ele mesmo um interesse possível) – um verbo da existência, cuja determinação é ser trans-posição para a dimensão da coisa (real) nela mesma. A “coisa nela mesma”, note-se, não é nenhum algo subjetivo, objetivo ou intersubjetivo, mas igualmente um afeto ou um interesse e este, por sua vez, dado sua constituição sú- bita ou imediata (salto, círculo), é transcendência. 

Só por esta via é possível dizer o que é o conhecimento, uma vez que por esta via ele é incorporado à própria estrutura de todo real (ou seja, a vida) e ele passa a se revelar como realização plena de estória, isto é, no suceder, no acontecer, na estrutura ou no jogo de herdar (receber) e de transmitir (legar). Justamente esta estrutura de herdar e de transmitir – a estória, que perfaz todo movimento de realização de toda realidade possível – é descrita como criação, ou seja, a interpretação desde e como a articulação de incorporação, apropriação, que é liberação de um próprio e assim e por isso concretização de liberdade. Vida como o jogo de inocência no e do desejo.8 A partir desta compreensão, mecanismos do conhecimento, formas ou estruturas neuro-fisiológicas ou bio-genéticas – toda a atual neuro-ciência cognitiva – se revelam como questões externas, marginais, desinteressantes... Isto não vai ao encontro do problema em sua essência ou modo próprio de ser, mas o falsifica. Encobre-o, escamoteia-o com subterfúgios. 

É preciso ficar claro que, visto desde e como criação, o conhecimento igualmente não se faz a partir do domínio e do controle de uma certa metodologia, de uma certa doutrina metodológica, compreendida esta como um processo de universalização do acesso a toda e qualquer coisa, a toda e qualquer verdade, por todo e qualquer um – diz-se: universal e objetivamente. Ter-se-ia assim método, melhor, lógica e metodologia, cada qual, como uma espécie de instrumento para o exercício da democracia do/no saber e do/no conhecer... Seria preciso dominar certas estratégias, certos princípios, antes e mais precisamente, certas regras e tudo se revelaria igualmente para todo e qualquer um que dispusesse de um tal aparato-metodológico para a investigação, para a pesquisa... 

Mas, não. Conhecimento como e desde afeto, à medida que este é o princípio fundamental de todo real possível (isto é, real é afeto), exige sobretudo simpatia. Simpatia ou, como vimos, consanguinidade – “Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito...” O que enfatizamos, porém, foi a seqüência da passagem, que diz: “não é fácil compreender sangue estranho”, pois não é fácil escutar e, então, obedecer ou participar da experiência, desde a qual cresce e se faz o que aparece, há e é. E, no entanto, é isso e somente isso que é preciso, que se impõe – por amor à verdade! Para tanto é preciso disposição, pré-disposição – disposição ou pré-disposição de esforço. Esforço para co-fazer e assim con-crescer, ou seja, irromper, nascer para o realmente concreto, a saber, o fazer-se, o auto-fazer-se de experiência como gênese do real. Por isso, diz o texto ainda, “odeio os leitores/conhecedores preguiçosos”. Preguiça diz inércia, isto é, apatia, inapetência, indiferença em relação a este necessário esforço de transposição – para participação. Aqui, sem dúvida, a preguiça se revela a mãe de todos os vícios. O maior é o da coisa, do dado. Todo pensamento, todo saber que parte do dado e do feito e que visa ou aspira ao feito e ao dado, que quer o feito e o dado – a informação! – é preguiçoso. O demônio de Deus, dizem, é o sétimo dia... Foi subentendendo conhecimento e verdade no sentido de adequação e esta como ajustamento ou molde com o dado e o feito – a constatação, a verificação –, então, vendo conhecimento e verdade como preguiça, que Nietzsche escreveu a seguinte anotação: “Vontade de verdade como impotência da vontade de criação”.9 E em outra parte: “A verdade é asquerosa, repugnante. Temos a arte – assim, não sucumbimos na verdade”.10 O real, as coisas não são. Ou melhor: são à medida e somente à medida que se fazem, à medida que se revelam um por-fazer. Enfim, como nobre, como aristocrático esforço de conquista e de reconquista de seus percursos. É assim, isto é, conquistando e reconquistando, que se faz verdadeiramente estória – assim dá-se genuinamente o jogo de herdar e de legar. Conquista-se e reconquista-se o que se herda, para que assim se torne verdadeiramente nossa herança. 

Este esforço de participação no sangue-experiência estranho caracteriza maiusculamente o conhecimento, pois é este o esforço, melhor, o exercício que essencialmente marca o homem, a vida, onde e quando ela se realiza plenamente – isto é, quando ela vem a ser ela mesma. Este esforço culmina no salto, na trans-posição (transporte ou transferência) para a força, para o “sangue”, que é o princípio ou propriamente a realidade de toda e qualquer “coisa”. Isto não se trata de fácil tarefa, mas de máximo empenho previamente movido e promovido por consanguinidade (a participação que, no salto ou desde círculo, sempre já se deu) e que só se dá para aquele que está neste esforço de conquistar e vir a ser isto que já é – vem a ser o que tu és, é o chamamento, o apelo que é atendido e cumprido. Neste esforço, na destinação do cumprimento desta tarefa (transposição, transferência) está aquele que se empenha por corresponder ao chamado, para assim continuar estória, vida – a força do devir. 

Nisso e por isso o conhecimento foi caracterizado ele próprio como um afeto – justo o afeto ou a força (o verbo) de transporte ou de transmigração para a força, o sangue. Em outros termos: o esforço ou o exercício de dizer a dinâmica da experiência de experiência ou a fala da gênese de gênese, o que constitui pensamento e conhecimento em suas “horas” maiores ou plenas. 

Assim, enquanto e como participação vital e esta compreendida na estrutura da criação, que por sua vez precisa ser o jogo da estória (de acontecer, suceder, dar-se e fazer-se de real) – ou seja, a real dinâmica de herdar e de transmitir, de receber e de legar ou entregar – assim, se conhecer não é controle metodológico, inventário, domínio e manipulação de regras, de “conceitos”, também não é, por outro lado, ajuntar, acumular, inventariar e capitalizar informações – dados. Conhecer como criação, isto é, como produção de estória ou pura e simplesmente como estória, é sobretudo não mais precisar de dados, de informações, de “cultura” e de “pesquisa”. Tal conhecer começa quando já se perdeu, já se desaprendeu isso – o que significa, claro, que também isso foi usado e apropriado como ponto de partida. 

Desaprender o dado e o feito para assim, desde um saber “coisa” nenhuma, desde um “ter” coisa alguma, encontrar o lugar, o tempo de realização da aprendizagem do aprender – instância e hora da poética de todo e qualquer real possível. Este conhecer é exercí- cio, então atividade e estória de aprender a aprender. É esta uma outra formulação, um outro nome para dizer que é preciso desaprender-perder-esquecer o dado e o feito para poder vir a ser partícipe da força de transformação, de transfiguração – da criação, da estória. Não acumulação, não conservação, mas ex-posição e na exposição uso e gasto e no gasto e no uso transformação, transfiguração, procriação, poética. É esta a lei da superabundância, do transbordamento vital. 

Numa tal experiência de criação, a preocupação, o importante, portanto aquilo que pesa e que decide, não é guardar; a meta não é conservar e acumular, mas, enquanto e como auto-exposição, continuar, isto é, promover à medida que procria. E é assim que é guardada, resguardada – conservada! – a vida, encarnada nisso que aqui e agora se “conhece”. 

Este conhecer, porque não é norteado pela conservação e pelo acúmulo, é perda – aquiescimento na perda, no abandono. Digamos: ele esquece. Esquece, no tempo certo, o que é para esquecer, perder – a saber, o dado – e que é o caminho para poder, no tempo certo, retomar e recordar o que é preciso, no tempo certo, recordar e retomar, ou seja, o caminho do por-fazer. Este conhecer é a celebração de uma memória fundadora, orientadora, originária. Tal memória o é de “coisa” nenhuma, de nenhum dado, por isso não atávica. Ao contrário, é memória ou lembrança de coisa nenhuma, de nenhum dado ou feito, mas tão-só de um modo de ser, que se revela como insistente precisar se fazer. Memória, recordação de caminho, de caminhar – o método. É assim que este conhecer, constituindo-se no próprio ritmo ou cadência da participação vital, da criação, esquece e recorda – no tempo certo ele larga, abandona,  perde e, no tempo certo, readquire (redime-se!), retoma, revitaliza-se. Assim ele é devir, estória de kairós – o tempo da decisão, hora e ritmo da vida. Desde a participação e na escuta que é esta participação, portanto, no crescimento de corpo e de vida, este conhecer sabe o quão e quando, no tempo certo, esquecer (perder, desaprender) e o quão e quando, no tempo certo, lembrar (recordar, retomar). Assim ele se faz medida de satisfação, do fazer o suficiente – a alegria do pouco, do limite, do necessário. Com isso e assim ele é, ele está sempre satisfeito. O cumprimento deste “saber” determina o ritmo do devir, a estória, o dar-se e acontecer do conhecer como o movimento ou o devir de interpretação (incorporação, apropriação). De onde vem este “saber”, este conhecer desta medida e do jogo desta medida? Sim, do que se chama participação vital – escuta e obediência a isso –, mas que pode e precisa também ser denominado kairós ou o tempo da decisão, do mando e da obediência, que é o tempo da sabedoria de perda, de despedida e de recordação, de reencontro. Na vida, enquanto jogo de lembrança e de esquecimento, é kairós que determina o quão e o quando de esquecimento e de lembrança. É ele portanto a medida. Enquanto escuta ou participação vital, este kairós é um instinto, isto é, a evidência, o impor-se de um “sentimento” – portanto, nada “objetivo”, mas também nada “subjetivo”, por tratar-se da constituição de afeto, que, no salto e desde o salto (círculo), é transcendência. 


VII 

Concluindo: “Quem escreve com sangue não quer ser lido, mas aprendido de cor” (Za/ZA , Do ler e do escrever). 


Abstract: Starting from a posthumous fragment, the author tries to explain the reasons why Nietzsche denies the theory of knowledge as a discipline to the profit of a new notion of knowledge. In order to fulfill this task, he underlines the imbrication between the traditional conception of knowledge and the Cartesian presuppositions, and then resorts to the elucidation of concepts like perspective and affect, which exist, in Nietzsche’s view, in all act of knowledge. 

Keywords: knowledge – perspective – affects 


Notas 

1 Hegel. Phänomenologie des Geistes, p. 64. 

2 Kant, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft, A 58; B 82/3. 

3 Cf. Ortega y Gasset, “La idea de principio en Leibniz”, pp. 203-208. 

4 “Entelécheia” – cf. Leibniz, Monadologia, § 18. 

5 Cf. KSA XII, 9[8], fragmento citado no início do texto. 

6 Cf. Kierkegaard, Conceito de angústia, cap. I § 5. 

7 Carneiro Leão, Os pensadores originários. 

8 Cf. Za/ZA, Do conhecimento imaculado. 

9 KSA XII, 9 (60). 

10 KSA XIII, 16 (40). Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar cadernos Nietzsche 13, 2002 | 117 


Referências Bibliográficas 

1. CARNEIRO LEÃO, E. (org). Os pensadores originários. Petrópolis, Vozes, 1993. 

2. HEGEL. G. W. Phänomenologie des Geistes. Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1988. 

3. KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992. 

4. KIERKEGAARD, S., Conceito de Angústia. São Paulo, Hemus, 1968. 

5. LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Paris, Delagrave, 1925. 

6. NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes. Berlim/Nova York, Water de Gruyter, 1988. 6. ORTEGA Y GASSET, J. “La Idea de Principio en Leibniz”. In: Revista de Occidente, Madri, 1967, Vol. 1, pp. 203-208. Convenção para a citação das obras de Nietzsche cadernos Nietzsche 13, 2002 | 119 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Os cadernos

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