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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Trecho de "Ecce Homo" - Prefácio







PREFÁCIO 


1 

Na previsão de que em breve terei de surgir perante a humanidade com a mais difícil exigência que se lhe fez, parece-me indispensável dizer quem eu sou. No fundo, todos o deviam saber: não deixei, com efeito, de dar testemunho de mim. Mas a incongruência entre a grandeza da minha tarefa e a pequenez dos meus contemporâneos expressou-se no facto de que não me ouviram, nem também me viram. Vivo do meu próprio crédito, ou será talvez apenas um preconceito supor que vivo?... Basta-me dirigir a palavra a qualquer pessoa «culta» que venha no Verão à Alta Engadine para me convencer de que não vivo... Nestas circunstâncias, há um dever contra o qual, no fundo, se revoltam os meus hábitos, e mais ainda o orgulho dos meus instintos, isto é, o dever de clamar: Escutai-me! Pois, sou este assim. Sobretudo, não me confundam com outro! 


2 

Não sou, por exemplo, um espantalho, um monstro moral – sou antes uma natureza contrária à espécie de homens que, até agora, se veneraram como virtuosos. Aqui só para nós, parece-me que isto se ajusta precisamente ao meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dionísio, prefiro ser um sátiro a ser um santo. Leia-se, porém, apenas este escrito. Coube-me talvez, e porventura este escrito não terá outro sentido, expressar este contraste de um modo sereno e humanitário. A última coisa que eu prometeria seria «melhorar» a humanidade. Não serão por mim erigidos novos ídolos; os antigos podem elucidar-nos sobre o que assenta em pés de barro! Derrubar ídolos (a minha palavra para «ideais») – eis o que já constitui o meu ofício. Subtraiu-se à realidade o seu valor, o seu sentido, a sua veracidade, na medida em que se inventou um mundo ideal... O «mundo verdadeiro» e o «mundo aparente» – em vernáculo: o mundo fictício e a realidade... A mentira do ideal foi, até agora, o anátema sobre a realidade, a própria humanidade foi por ela falsificada e viciada até aos seus mais profundos instintos – até à adoração dos valores contrários àqueles com que lhe estaria garantida a prosperidade, o futuro, o sublime direito ao futuro. 


3 

– Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar das alturas, uma atmosfera forte. É preciso estar preparado para as alturas, de outro modo o perigo de aí enregelar não é pequeno. Próximo está o gelo, atroz é a solidão – mas como todas as coisas repousam tranquilas na luz! Como livremente se respira! Quantas coisas se sentem abaixo de si! – A filosofia, como até aqui a entendi e vivi, é a vida voluntária no meio do gelo e nas altas montanhas – a procura de tudo o que é estranho e problemático na existência, de tudo o que até agora foi banido pela moral. Graças à longa experiência que uma tal peregrinação no reino do interdito me proporcionou, aprendi a examinar as causas, a partir das quais até agora se moralizou e idealizou, de um modo muito diverso do que era de desejar: a história oculta dos filósofos, a psicologia dos seus grandes nomes, veio para mim à luz do dia. – Quanta é a verdade que um espírito suporta, quanta é a verdade a que ele se aventura? – Eis o que sempre foi para mim o genuíno critério dos valores. O erro (– a fé no ideal –) não é cegueira, o erro é cobardia... Toda a realização, todo o passo em frente no conhecimento resulta da coragem, da dureza contra si mesmo, da integridade para consigo... Não refuto os ideais, calço simplesmente luvas diante deles... Nitimur in vetitum [‘aspiramos ao proibido’]: neste sinal há-de, um dia, a minha filosofia vencer, pois a verdade foi, até agora, sempre fundamentalmente apenas proibida.  


4 

– Entre os meus escritos, o meu Zaratustra aguenta-se por si. Com ele, fiz à humanidade a maior dádiva que até agora lhe foi feita. Este livro, com uma voz que se eleva por cima dos milênios, não é apenas o maior livro que existe, o genuíno livro da atmosfera das alturas – a realidade integral do homem encontra-se abaixo dele a uma distância imensa – é também o mais profundo, nascido da mais íntima riqueza da verdade, o poço inesgotável a que nenhum alcatruz desce sem vir à superfície cheio de ouro e de bondade. Aqui, não fala um «profeta», um daqueles híbridos horríveis de enfermidade e vontade de poder, que se chamam fundadores de religiões. É preciso, antes de mais nada, ouvir corretamente o som que sai desta boca, som alciônico, para não ofender desditosamente o sentido da sua sabedoria. «As palavras mais secretas é que suscitam a tempestade; os pensamentos que chegam com passo de pomba dirigem o mundo». 

Os figos caem das árvores, são bons e doces: e, ao caírem, rasga-se-lhes a pele rosada. Sou o vento norte para os figos maduros. 

Assim, semelhantes a figos, caem entre vós, amigos meus, estas doutrinas: bebei o seu sumo e tomai a sua doce polpa! É outono em redor, puro é o céu e límpida a tarde. 

Aqui, não fala um fanático, aqui não se «prega», aqui nenhuma se exige: de uma infinita plenitude de luz e de uma profundidade ditosa cai gota a gota, palavra a palavra – uma suave lentidão é o ritmo destes discursos. Coisas assim acontecem apenas aos eleitos; é um privilégio sem igual ser aqui ouvinte; ninguém dispõe, sem mais, de ouvidos para Zaratustra. . . Não será, apesar de tudo, Zaratustra um sedutor?... Que diz ele, todavia, quando pela primeira vez retorna à sua solidão? Justamente o contrário do que num caso semelhante diria qualquer «sábio», «santo», «salvador do mundo» e outro décadent... Não só fala de outro modo, é também diferente... 

Agora vou sozinho, discípulos meus! Também agora vos ides e sozinhos! Assim o quero. 

Afastai-vos de mim e resisti a Zaratustra! Melhor ainda: tende dele vergonha! Talvez vos tenha ludibriado. 

O homem de conhecimento não deve apenas amar os seus inimigos, deve também poder odiar os seus amigos. 

Retribui mal a um mestre quem sempre permanece apenas discípulo. E porque não ousais desfazer a minha grinalda? 

Venerais-me: mas que acontecerá, se um dia a vossa veneração esmorecer? Tende cuidado, não vos mate uma estátua! 

Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que interessa Zaratustra?! Sois meus crentes, mas que interessam todos os crentes!? 

Não vos tínheis ainda procurado: e eis que me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso vale tão pouco toda a fé. 

Agora, intimo-vos a perder-me e a encontrar-vos; e só quando todos me tiverdes renegado, é que retornarei para o meio de vós... 

Friedrich Nietzsche

Para baixar o PDF completo, acesse: Ecce Homo 

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