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domingo, 18 de junho de 2017

Entrevista de Paulo Herkenhoff a Folha de São Paulo





Um dos críticos de arte e pensadores mais relevantes do país, Paulo Herkenhoff vem liderando ao longo dos últimos anos uma batalha pela igualdade racial - não só nas ruas, mas também nas coleções dos grandes museus.


Na visão dele, a crise política e econômica que corrói o Brasil abala as instituições, mas ao mesmo tempo vem abrindo caminho para que "críticos, historiadores e curadores sérios" abandonem o mainstream e passem a estudar e valorizar trabalhos de nomes antes às margens, em grande parte de negros.

Em mais de três décadas de trabalho, Herkenhoff foi um dos curadores do MoMA, em Nova York, esteve à frente do Museu de Arte Moderna do Rio e do Museu Nacional de Belas Artes, foi diretor artístico de uma das mais celebradas edições da Bienal de São Paulo, em 1998, e comandou o MAR, o Museu de Arte do Rio, até o ano passado, quando pediu para deixar o cargo.

O estopim para a decisão foi um convite de outra liderança do museu ao sul-africano Brett Bailey para que encenasse ali sua polêmica peça de teatro em que atores negros são confinados, lembrando os zoológicos humanos criados para entreter a sociedade europeia do século XVIII.

"Ele foi impedido de fazer a peça por militantes do movimento negro", diz Herkenhoff. "É um diretor de teatro branco que discute racismo com negros dentro de gaiolas. Achei muito violento e racista, degradante a situação. Tinham posto ele lá à minha revelia, contra minha vontade." 

Mesmo depois de deixar a direção do museu, o crítico continua sendo um consultor da coleção, numa tentativa de construir ali um dos maiores acervos de arte afro-brasileira contemporânea.
Ele também escreve um livro sobre a história dos negros nas artes visuais do país, analisando desde a obra de escravos até nomes em ascensão na atualidade. Alguns deles podem ser vistos agora na mostra com obras da coleção do Itaú Cultural, que Herkenhoff organizou na Oca. 

Na montagem, ele defendeu que a esquerda faça um mea-culpa e analisou a presença de negros e índios nas artes visuais, em especial a polêmica performance na atual Bienal de Veneza, para onde Ernesto Neto levou índios que ocuparam uma oca de crochê.
Leia a seguir os principais trechos da conversa.

NEGROS NA ARTE 

Falar de afrodescendentes com muita desenvoltura para mim é um pouco complicado porque não sou negro. Meu companheiro é negro, e volta e meia vejo lembranças de situações de racismo vividas por ele. As contradições da sociedade brasileira têm um de seus sintomas mais graves e profundos na situação dos negros. Ninguém precisa me dizer que há um racismo claro na sociedade brasileira. Vivemos um neoescravismo.

Mas há uma tomada de consciência dos artistas. Essa geração hoje é muito afirmativa da crítica que quer fazer, e essa crítica passa por questões e políticas do poder e pelo fortalecimento das religiões afro nesse momento profundo de intolerância. Estão construindo um discurso alegórico, às vezes mais direto, criando modelos de convivência. 

Nunca vou achar que a arte muda a sociedade, mas pode mudar como as pessoas se aproximam da sociedade para além da arte, porque, no fundo, esses artistas fazem uma arte além da arte. É o direito de ser negro, afrodescendente pleno, igual como cidadão. Nesses termos, isso é diferente de uma obra cuja finalidade está em si mesma.

MODA E OPORTUNISMO

Se houver [oportunismo na inclusão desses artistas nas coleções], isso é algo que também está respondendo a pressões da sociedade. Há instituições sérias que, de repente, acordam. Claro que há interesses políticos, mas são instituições sérias, curadores, historiadores e críticos que abrem mão do mainstream. Essa é uma linha de prioridade, que tem se expandido nos últimos tempos.

SITUAÇÃO DO MASP 

Estou no conselho do Masp, e acho o Masp hoje um museu excepcional. Ele está buscando a sua história. Mas, como é uma história de 50 anos revista em quatro ou cinco, parece que está pensando só no próprio passado, mas isso no futuro vai mudar. O que não é respeitável vai ser esquecido, e o que fica é o melhor. Há uma vontade de estabelecer novas dinâmicas, e o Masp está assumindo riscos.

POLÍTICA CULTURAL 

Nós temos de ter a volta de um governo democrático honesto. O PT evita fazer um mea-culpa, mas tem de fazer. Não pode ser uma esquerda que rouba, mas faz. Isso é fundamental. Acho que é preciso uma revisão ética para não deixar dúvidas de que há novos valores para o país. 

Não é questão de voto. É uma questão de voto por falta de escolha. Quais são as lideranças efetivas de direita, esquerda e de centro que estão surgindo? É trágico. Precisamos de esquerdas que possam fazer uma revisão.

Na minha visão, a grande figura do século 21 no Ministério da Cultura foi o Juca Ferreira. Não havia narcisismo. O que era o Marcelo Calero como ministro? Ele não tinha nenhuma vontade museológica. Só preenchia os dotes físicos do secretariado do [ex-prefeito] Eduardo Paes, no Rio. Era bem-apessoado, como todos os "Dudu boys", os secretários do Paes, que eram jovens e bem-apessoados.

Na situação atual o Marcelo Araújo [ex-secretário de Estado da Cultura paulista e atual presidente do Instituto Brasileiro de Museus] é a melhor pessoa para ser ministro.

ÍNDIOS NA ARTE 

Nos anos 1960, o Brasil tomou mais consciência do genocídio dos povos indígenas. E alguns setores da sociedade foram muito ativos, entre eles os artistas, como Claudia Andujar e Cildo Meireles.
Um segredo aí para a gente entender o que é razoável [na representação dos índios na arte] é a noção de gueto do Cildo. Ele diz que numa situação de isolamento e enclausuramento a energia circula com mais densidade, como se fosse um buraco negro. E os exemplos que ele cita são o Harlem no período entre as grandes guerras e os índios brasileiros na selva.

Quando, no século 19, levam índios americanos para a Bienal de Veneza, havia ali ainda um entendimento de que os índios são uma extensão da história natural. Hoje acho que existe outro grau de consciência dos índios.

Quando o Ernesto Neto, que é um leitor assíduo do [antropólogo] Eduardo Viveiros de Castro antes que isso virasse moda, leva índios para lá, ele está buscando criar uma possibilidade de um diálogo.

Entendo que os índios hoje têm uma relação com sua própria história e uma relação com a sociedade nacional e global. Eles estão repovoando a selva. Não querem comprar carne no supermercado, querem viver sua experiência.

Eu acho que a intenção do Ernesto é muito mais criar um território para uma cultura indígena específica. Ele levou uma etnia específica a Veneza. Dizer que eles estavam dentro de jaulas ali é fazer uma leitura mecanicista.
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Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal “Folha de S. Paulo” em 05/06/17.
Contra "neoescravismo", crítico Paulo Herkenhoff quer negros em museus

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