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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Entre pensar e ser, Heidegger e Parmênides



Fernando Mendes Pessoa*


Resumo: O propósito deste texto é mostrar como Heidegger, em seu projeto de superação da metafísica moderna, recoloca a questão do sentido do ser através de uma repetição da compreensão da identidade entre ser e pensar indicada por Parmênides. Essa demonstração visa esclarecer o projeto heideggeriano de desconstrução da noção vigente de verdade como adequação através da interpretação da verdade como descobrimento.
Palavras-chave: Pensar, Ser, Essência Existência, Verdade.



A desfiguração do pensar e o abuso do pensamento desfigurado só poderão ser superados por um pensar autêntico e originário, e por nada mais. Uma nova instauração desse último exige, antes de tudo, o regresso à questão sobre a referência essencial do pensar com o ser. O que equivale a desdobrar e desenvolver a questão do ser como tal.
Heidegger, Introdução à metafísica.


A tarefa do pensamento de Heidegger consiste em recolocar a questão do sentido do ser. Tal tarefa nasce da necessidade histórica de questionar o que é mais digno de ser pensado; a recolocação da questão ontológica provém da própria indigência promovida pelo esquecimento do ser. A tradição filosófica, caracterizada como pensamento metafísico, não só deixou sem resposta a questão inaugurada pelos gregos antigos, como também esqueceu o sentido de seu questionamento: o que fomentou as pesquisas de Platão e Aristóteles acabou sendo caracterizado por Nietzsche como “um grande erro”, “a última fumaça da realidade evaporante”[2]. Ao constatar este esquecimento, Heidegger assume a tarefa histórica de, no acabamento da metafísica, recolocar a questão do sentido do ser – tarefa que, apresentada em Ser e tempo (1927), atravessa, orienta e perfaz todo o caminho de seu pensamento.
Heidegger afirma que o esquecimento do ser corresponde à decadência no ente: “O esquecimento da verdade do ser em favor da avalanche do ente, não pensado em sua essência, é o sentido da ‘decadência’ mencionada em Ser e tempo.”[3] Podemos compreender formalmente essa afirmação esclarecendo que a diferença entre ser (Sein) e ente (Seiende) corresponde à diferença entre o infinitivo e o particípio presente do verbo ser. Ente indica o que se efetua, tudo que é real e efetivo; ente é a realização do ser, o que é. Distinto do efetivo que, assim, aparece como real, o ser, enquanto infinitivo verbal, se dá na possibilidade de o ente aparecer – ele é o seu princípio original. Como princípio dos entes, origem de tudo que é, o ser não é um fundamento por detrás (aquém ou além) dos entes; o ser se dá como o viger do aparecer que permanece latente em tudo que aparece; o ser é a possibilidade do aparecer, que se oculta em todo ente que aparece – como vigor do possível, o ser se encobre no que se realiza. O esquecimento da verdade do ser em favor da avalanche do ente ocorre, primeiramente, por essa tendência constitutiva de o aparecimento do real encobrir a vigência de sua possibilidade. Essa tendência essencial foi exacerbada historicamente pelo fato de o homem moderno, ao instituir a certeza como única medida da verdade, passar a só interpretar como verdadeiro o que é efetivamente real, desconsiderando o horizonte, o âmbito ou a abertura, de sua possibilidade. A partir de, por um lado, a compreensão da diferença entre ser e ente e, por outro, a constatação de que o homem moderno, decaído no ente, esqueceu o ser, Heidegger propõe recolocar a questão ontológica, a fim de nos fazer despertar para a compreensão do sentido de ser: “Diante da apatridade que lhe afeta a essência, o destino vindouro do homem se apresenta ao pensamento da história do ser no fato de o homem ter de encontrar a verdade do ser e pôr-se a caminho para esse encontro.”[4]


A verdade do ser foi esquecida devido ao homem moderno só considerar a certeza dos entes. Tal fato ocorre, como indicado acima, primeiramente, pela nossa própria tendência de interpretar a realidade só a partir do que se tornou real, desconsiderando a sua possibilidade e, também, devido ao predomínio da interpretação moderna da verdade como certeza de uma adequação correta entre juízo e coisa. Dentre os diversos fatores que fomentaram e conduziram a destinação desse esquecimento, buscaremos compreender o que Heidegger caracterizou como a separação entre pensamento e ser promovida pela interpretação moderna de essência e verdade. O propósito deste texto é mostrar como Heidegger, em seu projeto de superação da metafísica moderna, recoloca a questão do sentido do ser através de uma repetição da compreensão da identidade entre pensar e ser indicada por Parmênides. Essa demonstração visa esclarecer o projeto heideggeriano de desconstrução da noção vigente de verdade como adequação, através da interpretação da verdade como descobrimento.


A tarefa de recolocar a questão da verdade do ser foi encaminhada pelo pensamento de Heidegger através da demonstração de que a interpretação da verdade como certeza, adequação correta entre juízo e coisa, é derivada do fenômeno, até então impensado, de descobrimento do ser. Recorrendo à tradução hermenêutica do termo grego antigo alétheia pelo alemão Unverborgenheit (descobrimento), Heidegger propõe mostrar a relação de identidade do pensamento com o ser:
“Se traduzo obstinadamente o nome Alétheia por descobrimento, faço-o não por amor à etimologia, mas pelo carinho que alimento para com a questão mesma que deve ser pensada, se quisermos pensar aquilo que se denomina ser e pensar de maneira adequada à questão. O descobrimento é como que o elemento único no qual tanto o ser como o pensar e seu comum-pertencer podem dar-se. A Alétheia é, certamente, nomeada no começo da filosofia, mas não é propriamente pensada como tal pela filosofia nas eras posteriores.”[5]

A tarefa do pensamento de Heidegger, o seu propósito de recolocar a questão do sentido do ser, provém do que ele chamou de Sache, a questão ou o assunto mais digno de ser pensado – a saber, o descobrimento como o elemento no qual tanto o ser quanto o pensar podem mutuamente se dar em seu comum-pertencimento. Nomeado no começo da filosofia, mas sem ser posteriormente pensado como tal, o fenômeno da verdade como alétheia acabou sendo entulhado pela interpretação da verdade como certeza; esse processo corresponde ao que foi indicado como o esquecimento do ser em favor da avalanche do ente.


A fim de recolocar a questão do ser no horizonte da diferença ontológica, Heidegger propõe questionar a essência da verdade a partir da questão da verdade da essência. Para o nosso propósito de mostrar a sua compreensão da relação do pensamento com o ser a partir da essência da verdade, devemos, portanto, demonstrar essa tese apresentada pela primeira vez na observação final do texto Sobre a essência da verdade: “A questão da essência da verdade se origina da questão da verdade da essência” [6].
Heidegger indica que, a partir da confusão entre ser e ente, o pensamento metafísico, movido pela necessidade de obter a certeza de seu conhecimento, passou a compreender o ser como realidade, coisa, res: “O ser recebe o sentido de realidade. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. (...) Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em conseqüência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica.”[7] Por o homem moderno só legitimar o que pode ser apreendido pela certeza do conhecimento, a realidade passou a ter uma primazia sobre a possibilidade, promovendo uma interpretação da essência como substância. Referindo-se a Descartes (Principia I, n. 51), Heidegger, no início do §20 de Ser e tempo, define a substância como o ente que é sem necessitar de nenhum outro ente: “O ser de uma substância caracteriza-se por uma não necessidade”. Substância é o ens perfectissimum, um princípio que, sendo por si e em si, independe de produção e de conservação, pois não nasce e nem perece, mantendo-se inalterado e sempre igual a si mesmo em toda divisão, figuração e movimento. A partir dessas características, a essência, interpretada como substância, passa a ser compreendida através do caráter de permanência constante[8]Propriamente só é o que sempre permanece[9].
Devido a este seu caráter de permanência constante, a essência passou a ser caracterizada nesses dois aspectos complementares: pela permanência, na separação entre ser e vir a ser; e, pela constância, na separação entre ser e aparecer. O caráter de permanência da substância separa o ser do vir a ser conforme a formulação lapidar de Nietzsche: o que é não vem a ser; o que vem a ser não é... Diante da permanência do ser, o vir a ser foi associado ao não ser através da distinção verdade versus falsidade: enquanto a essência verdadeira de algo consiste no que nele há de permanente, o falso perece no vir a ser. Do mesmo modo, o caráter de constância da substância separou o ser do aparecer de acordo com a máxima: parece mas não é... Por sua própria inconstância, a aparência foi também associada ao não ser através da distinção verdade versus falsidade. O caráter de permanência constante da substância promove as separações entre ser e vir a ser e ser e aparecer, através da diferenciação entre verdade e falsidade: enquanto a verdade do que é permanece sempre constante, a falsidade do que não é vem a ser no que parece. Heidegger indica que foram essas separações entre ser e vir a ser e ser e aparecer, compostas com a distinção entre verdade e falsidade, que promoveram a cisão entre o que é (o ti estin: a qüididade) e o fato de ser (o hoti estin); o que, por sua vez, foi a proveniência da ruptura entre a essência (o ontos on) e a existência (o phainomenon)[10]. Foi este processo promovido pela decisão ontológica de interpretar a essência como substância que também instaurou a cisão entre pensar e ser: o pensamento passa a ter uma substância própria, a res cogitans, distinta e autônoma.


“Descartes distingue o ‘ego cogito’, como res cogitans, da ‘res corporea’. Essa distinção determinará ontologicamente a distinção posterior entre ‘natureza’ e ‘espírito’.”[11] Heidegger compreende que Descartes promoveu uma cisão entre homem e mundo, à medida que compreendeu o pensamento como um fundamento, a substância do eu: ego cogitoergoego sum: penso, conseqüentemente, sou. Como substância do eu, o pensamento passou a ter uma autonomia de tudo que não é ele mesmo, tornando-se uma coisa ideal, a res cogitans, essencialmente diferente de todas as outras coisas corpóreas, que passaram a ser constituídas por uma outra substância, a res extensa. Com a distinção essencial do ‘ego cogito’ da ‘res corporea’, diante da realidade cindida em duas substâncias, em res cogitans e res extensa, a verdade passa a ser a certeza de uma concordância do juízo com a coisa, uma adequação correta entre o pensamento ideal e a extensão real: “A definição nominal da verdade, a saber, que consiste na concordância do conhecimento com o seu objeto, é aqui concedida e pressuposta...”– como podemos constatar nessa advertência escrita por Kant em sua Crítica da razão pura[12].
Como conseqüência de todas essas separações promovidas pela primazia da realidade na problemática ontológica, pela essência interpretada como substância, a questão da verdade foi reduzida ao problema da síntese entre o conhecimento ideal e a coisa real. A fim de desconstruir essa compreensão de essência e verdade, Heidegger pergunta no §44 de Ser e tempo: Como se deve apreender ontologicamente a relação entre o ente ideal e o real simplesmente dado? – pois, se a realidade encontra-se cindida em duas substâncias, em seu modo de ser, a concordância é real, ideal ou nenhuma delas? Isto é: a verdade como concordância é subjetiva (ideal), objetiva (real) ou, além dessas duas, haveria na realidade uma terceira substância? – “Ou será que o descaminho da questão consiste em seu ponto de partida, ou seja, na separação ontologicamente não esclarecida entre real e ideal?”[13]
Desde Ser e tempo, toda a tarefa do pensamento de Heidegger consistiu em recolocar a questão do sentido do ser no horizonte da diferença ontológica, a fim de mostrar que, como o ser não é um ente, antes de se constituírem como duas substâncias, as essências de homem e mundo se dão na existência; e que, portanto, antes de estarem separados ontologicamente em dois fundamentos autônomos, homem e mundo têm origem no comum-pertencimento do acontecimento existencial. A esse acontecimento original, Heidegger chamou de Da-sein, a fim de indicar a instância (Da) onde o ser (Sein) aparece e vem a ser, a presença do que se apresenta, a existência. Com essa palavra, Dasein (presença), Heidegger quer indicar que, antes de estarem ontologicamente separados em sujeito e objeto, o homem e o mundo se constituem na unidade do acontecimento existencial, no Da do Dasein – o que ele, em Ser e tempo, chamou de “ser-no-mundo”[14] e, posteriormente, caracterizou como “clareira do ser”: “o homem se essencializa, de tal sorte que ele é o ‘lugar’ (Da), isto é, a clareira do ser. Esse ‘ser’ do lugar, e só ele, possui o caráter fundamental de ec-sistência, isto é da in-sistência ec-stática na verdade do ser”[15].
Ao contrário do sub da substância, que indica o que está abaixo, sob, no interior do ente, o ex da existência diz o que se constitui fora, exposto na presença do que se apresenta, lançado no jogo do acontecimento de ser. Como existência, a essência do homem não é uma substância real, um ente simplesmente dado; por existir, o homem se essencializa na possibilidade da clareira do ser, isto é, na insistência ecstática na verdade do ser. A in-sistência ec-stática indica a dinâmica de estar simultaneamente aberto e fechado; aberto ao possível vir a ser do que aparece e fechado no que se efetuou como real, o aparecido. Existencialmente jogado na diferença ontológica, o homem se dá, sempre e ao mesmo tempo, lançado ecstáticamente no poder ser e situado na realidade do que é: Ek-sistente, a presença é insistente[16]: aberto ao ser, o homem se fecha no ente. Insistir ecstaticamente na verdade do ser indica a nossa condição de ser no aparecimento do que vem a ser, de termos a nossa essência lançada no pre de nossa presença, na clareira de ser.
Por essa nossa essência existencial, Heidegger indica que somos no mundo. Antes de uma composição posterior de duas partes, a interioridade de um sujeito dentro da extensão, ser-no-mundo indica o comum pertencimento, o nexo original de homem e mundo no acontecimento existencial do pre de nossa presença. Somos no aparecimento de nosso vir a ser, jogados no aí do aqui e agora de nossa situação; por existirmos, somos um ente aberto ao ser. Existir é compreender que o ente é, consiste em estar na clareira de ser no mundo. Por insistir ecstaticamente na verdade do ser, a presença já sempre se compreendeu a si mesma em seu mundo, a partir do sentido da conjuntura presente, da compreensão do nexo do que se apresenta no contexto de sua situação. Antes de qualquer síntese entre duas substâncias, Heidegger indica que a verdade é esse acontecimento de ser, o descobrimento do sentido dos entes.


A compreensão existencial do ser-no-mundo traz consigo uma outra interpretação da essência, distinta daquela que, calcada no primado da realidade sobre a possibilidade, encaminhou a metafísica ao esquecimento do ser. Ao interpretar a essência como existência, Heidegger recorda de um sentido dinâmico de essência, o seu modo verbal, esquecido na antiga palavra alemã Wesen:
A palavra “essência” não significa mais o que uma coisa é. Escutamos a palavra alemã Wesen, essência, como um verbo, wesend, ou seja, como vigorar, no sentido de vigorar na presença e na ausência. Wesen, vigorar, diz währen, perdurar, weilen, demorar. A expressão es west, está em vigor, significa mais do que está durando, demorando. Está em vigor diz que algo persiste, perdura e assim nos toca, nos en-caminha e nos intima. Pensada desse modo, a essência designa o vigor, o que persiste e perdura, o que nos concerne em tudo que nos toca, porque é o que tudo en-caminha e movimenta.[17]

            Como o que persiste, perdura e nos perfaz, a essência, pensada em seu sentido verbal, indica o vigor da existência, a manifestação de sua própria verdade. Essa verdade da essência nos concerne em tudo que somos; ela é o vigor que encaminha e movimenta a nossa compreensão de ser – a verdade da essência é o que nos intima a compreender a questão da essência da verdade. Considerando este assunto em sua observação final à conferência Sobre a essência da verdade, visando o esclarecimento de como a questão da diferença ontológica é o fundamento de sua compreensão da verdade como descobrimento, Heidegger afirma que:
A questão da essência da verdade se origina da questão da verdade da essência. Aquela questão entende essência, primeiramente, no sentido de qüididade (quidditas) ou de realidade (realitas) e entende a verdade como uma característica do conhecimento. A questão da verdade da essência entende essência em sentido verbal e pensa, nesta palavra, (...) o ser (Seyn) como a diferença que impera entre ser (Sein) e ente (Seiendem).[18]

Antes de conceber a essência como uma qüididade ou realidade, um ente que simplesmente é e está sendo, e assim entender a sua verdade como uma característica do conhecimento, a certeza de uma síntese correta, Heidegger propõe desde Ser e tempo a tarefa de compreender o ser no horizonte da diferença ontológica para, assim, pensar o sentido verbal da essência da verdade. O ser não é um ente, por isso antes de a sua verdade ser uma determinação proposicional da substância, a certeza de um juízo ou categoria adequada à realidade, ela consiste na descoberta do sentido do que é e está sendo.
Verdade é descoberta – e isso em dois modos: primordialmente, verdade indica o descobrimento dos entes, o aparecimento da realidade, do que se mostra, o fato de o ente ser: a presença é e está na verdade[19]; bem como verdade indica também um acontecimento especial de ser-no-mundo, o descobrimento do ser que Heidegger caracterizou, em Ser e tempo, como decisão (Entschlossenheit) e, posteriormente, como acontecimento apropriante (Ereignis). Embora não explicitamente formulado deste modo, encontramos em seus escritos esses “dois níveis” do acontecimento da verdade como descobrimento; cabe compreendermos como, ao contrário de dois níveis, Heidegger quer assim indicar que a vigência existencial de nossa essência perfaz o que somos tanto na realidade ordinária do que é habitual, quanto em sua modificação na possibilidade extraordinária de nosso acontecimento existencial.


Existir é ser na compreensão de ser. Por compreendermos o ser, a nossa essência nunca se apresenta como uma substância, um ente pronto e já determinado. Como existência, estamos abertos à nossa possibilidade de ser, sempre diante de nosso poder ser no mundo. Existir é descobrir o que aparece, e o que aparece é o ente. À medida que faz o ente aparecer, o descobrimento simultaneamente se encobre no que é descoberto: o ser se oculta no ente que aparece. Por esse encobrimento constitutivo do descobrimento, Heidegger indica que, de imediato e na maioria das vezes, a presença tem a tendência de se fixar numa compreensão habitual dos entes, desviando-se de seu acontecimento existencial. Fixando-se numa realidade já constituída de si e do mundo, a presença decai da possibilidade aberta em sua compreensão de ser. Pela vigência mesma da verdade como descobrimento, a presença tem uma tendência constitutiva ao que foi caracterizado como decadência: o esquecimento do ser em favor da avalanche do ente.
Em sua constituição ontológica, a presença é e está na ‘não-verdade’ porque é, em sua essência, de-cadente.[20] A não-verdade consiste no encobrimento constitutivo da verdade como descobrimento, fenômeno que caracteriza a possibilidade de algo ou se ocultar e, assim, não aparecer, ou de aparecer como aquilo que ele não é, da aparência como falsidade. Semelhante às antigas compreensões gregas de krýptesthai e pseudos, Heidegger caracteriza a não verdade do encobrimento como recusar (Versagen) e como dissimular (Verstellen)[21]. Por esse duplo modo de a verdade se encobrir, o descobrimento da clareira do ser, o que constitui a essência existencial da presença, precisa também tornar-se um acontecimento efetivo, apropriar-se numa experiência de compreensão não apenas dos entes, mas, antes, do ser.
A compreensão do ser constitui a origem da existência, o princípio fundamental da presença; por sua vez, ser é sempre compreensão de ser. Como clareira da existência, vigência do descobrimento de ser-no-mundo, o ser não é um ente simplesmente dado. O ser perfaz a essência (Wesen) da presença. Ao contrário de duas substâncias separadas e autônomas, a presença é a instância de acontecimento do ser, o Da-sein: o ser consiste na propriedade da presença.
O comum-pertencer de homem e ser ao modo da recíproca provocação nos faz ver, de uma proximidade desconcertante, o fato e a maneira como o homem está entregue como propriedade ao ser e como o ser é apropriado ao homem. Trata-se de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão reciprocamente apropriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que designamos acontecimento-apropriação.[22]

Como de imediato e na maioria das vezes a presença se encontra decaída no ente, há nela a tendência de esquecer o ser e, desviando-se de sua clareira, ficar apegada à certeza dos entes. Por isso Heidegger nos fala também da verdade como uma modificação existencial da decadência, um acontecimento que, apropriando a presença em seu ser, promove a experiência do nexo fundamental entre ser e compreensão de ser. Como clareira de ser no mundo, a verdade é o acontecimento apropriante da presença, a descoberta do que o ente é a partir e através da compreensão aberta pela identidade entre pensar e ser – pois o mesmo é pensar e ser.












Bibliografia citada:

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.

__________. Caminhos de Floresta. Trad. Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002

__________. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores)

__________. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro e Editora Universidade de Brasília, 1978.

__________. Ser e tempo. Trad. Marcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.

__________. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967












[1] Texto publicado em: Acerca do poema de Parmênides. Organização de Fernando Santoro, Henrique Cairos e Tatiana Ribeiro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2009, pp. 131 – 138.
* Professor Titular da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2] Nietzsche, F. Crepúsculo dos Ídolos VIII. Cf. Heidegger, M. Introdução à metafísica, p. 63.
[3] Heidegger, M. Sobre o humanismo, p. 53.
[4] Idem, Sobre o humanismo, p. 67.
[5] Idem, O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 79.
[6] Die Frage nach dem Wesen der Wahrheit entspringt aus der Frage nach der Wahrheit des Wesens.
[7] Cf. Idem, Ser e tempo § 43, p. 267.
[8] Cf. Idem, Ser e tempo § 19, 137 (Charakter des ständigen Verbleibs).
[9] Idem, Ser e tempo § 21, p. 142.
[10] Cf. Idem, Introdução à metafísica, pp. 200-208.
[11] Idem, Ser e tempo, § 19, p. 135.
[12] Kant, Crítica da razão pura, A 82 (tradução de Valério Rohden). Passagem citada por Heidegger em Ser e tempo § 44-a, p. 282.
[13] Idem, Ser e tempo § 44, p. 284.
[14] “O que se constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o ‘pre’ de sua presença.” – Idem, Ser e tempo § 28, p. 186.
[15] Idem, Sobre o humanismo, p. 43.
[16] Idem, Sobre a essência da verdade § 6. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 142.
[17] Idem, A essência da linguagem. In: A caminho da linguagem, p. 158.
[18] Idem, Sobre a essência da verdade. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 145.
[19] Idem, Ser e tempo § 44b, p. 289.
[20] Idem, Ser e tempo § 44b, p. 290.
[21] Cf. Idem, A origem da obra de arte. In: Caminhos de Floresta, pp. 53-54.
[22] Idem, O princípio da identidade. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 184.

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