Fernando Mendes Pessoa*
Resumo: O propósito deste texto é mostrar como
Heidegger, em seu projeto de superação da metafísica moderna, recoloca a
questão do sentido do ser através de uma repetição da compreensão da identidade
entre ser e pensar indicada por Parmênides. Essa demonstração visa esclarecer o
projeto heideggeriano de desconstrução da noção vigente de verdade como
adequação através da interpretação da verdade como descobrimento.
Palavras-chave:
Pensar, Ser, Essência Existência, Verdade.
A
desfiguração do pensar e o abuso do pensamento desfigurado só poderão ser
superados por um pensar autêntico e originário, e por nada mais. Uma nova
instauração desse último exige, antes de tudo, o regresso à questão sobre a
referência essencial do pensar com o ser. O que equivale a desdobrar e
desenvolver a questão do ser como tal.
Heidegger,
Introdução à metafísica.
A tarefa do pensamento de Heidegger consiste em recolocar a questão do
sentido do ser. Tal tarefa nasce da necessidade histórica de questionar o que é
mais digno de ser pensado; a recolocação da questão ontológica provém da
própria indigência promovida pelo esquecimento
do ser. A tradição filosófica, caracterizada como pensamento metafísico,
não só deixou sem resposta a questão inaugurada pelos gregos antigos, como
também esqueceu o sentido de seu questionamento: o que fomentou as pesquisas de
Platão e Aristóteles acabou sendo caracterizado por Nietzsche como “um grande
erro”, “a última fumaça da realidade evaporante”[2].
Ao constatar este esquecimento, Heidegger assume a tarefa histórica de, no
acabamento da metafísica, recolocar a questão do sentido do ser – tarefa que,
apresentada em Ser e tempo (1927),
atravessa, orienta e perfaz todo o caminho de seu pensamento.
Heidegger afirma que o esquecimento do ser corresponde à decadência no
ente: “O esquecimento da verdade do ser em favor da avalanche do ente, não
pensado em sua essência, é o sentido da ‘decadência’ mencionada em Ser e tempo.”[3]
Podemos compreender formalmente essa afirmação esclarecendo que a diferença
entre ser (Sein) e ente (Seiende) corresponde à diferença entre o
infinitivo e o particípio presente do verbo ser. Ente indica o que se efetua,
tudo que é real e efetivo; ente é a realização do ser, o que é. Distinto do efetivo que, assim,
aparece como real, o ser, enquanto infinitivo verbal, se dá na possibilidade de
o ente aparecer – ele é o seu princípio original. Como princípio dos entes,
origem de tudo que é, o ser não é um fundamento por detrás (aquém ou além) dos
entes; o ser se dá como o viger do
aparecer que permanece latente em tudo que aparece; o ser é a possibilidade do
aparecer, que se oculta em todo ente que aparece – como vigor do possível, o
ser se encobre no que se realiza. O esquecimento da verdade do ser em favor da
avalanche do ente ocorre, primeiramente, por essa tendência constitutiva de o
aparecimento do real encobrir a vigência de sua possibilidade. Essa tendência
essencial foi exacerbada historicamente pelo fato de o homem moderno, ao
instituir a certeza como única medida da verdade, passar a só interpretar como
verdadeiro o que é efetivamente real, desconsiderando o horizonte, o âmbito ou
a abertura, de sua possibilidade. A partir de, por um lado, a compreensão da
diferença entre ser e ente e, por outro, a constatação de que o homem moderno,
decaído no ente, esqueceu o ser, Heidegger propõe recolocar a questão
ontológica, a fim de nos fazer despertar para a compreensão do sentido de ser:
“Diante da apatridade que lhe afeta a essência, o destino vindouro do homem se
apresenta ao pensamento da história do ser no fato de o homem ter de encontrar
a verdade do ser e pôr-se a caminho para esse encontro.”[4]
A verdade do ser foi esquecida devido ao homem moderno só considerar a
certeza dos entes. Tal fato ocorre, como indicado acima, primeiramente, pela
nossa própria tendência de interpretar a realidade só a partir do que se tornou
real, desconsiderando a sua possibilidade e, também, devido ao predomínio da
interpretação moderna da verdade como certeza de uma adequação correta entre
juízo e coisa. Dentre os diversos fatores que fomentaram e conduziram a
destinação desse esquecimento, buscaremos compreender o que Heidegger
caracterizou como a separação entre pensamento e ser promovida pela
interpretação moderna de essência e verdade. O propósito deste texto é mostrar
como Heidegger, em seu projeto de superação da metafísica moderna, recoloca a
questão do sentido do ser através de uma repetição da compreensão da identidade
entre pensar e ser indicada por Parmênides. Essa demonstração visa esclarecer o
projeto heideggeriano de desconstrução da noção vigente de verdade como
adequação, através da interpretação da verdade como descobrimento.
A tarefa de recolocar a questão da verdade do ser foi encaminhada pelo
pensamento de Heidegger através da demonstração de que a interpretação da
verdade como certeza, adequação correta entre juízo e coisa, é derivada do
fenômeno, até então impensado, de descobrimento do ser. Recorrendo à tradução
hermenêutica do termo grego antigo alétheia
pelo alemão Unverborgenheit
(descobrimento), Heidegger propõe mostrar a relação de identidade do pensamento
com o ser:
“Se traduzo obstinadamente o nome Alétheia
por descobrimento, faço-o não por amor à etimologia, mas pelo carinho que
alimento para com a questão mesma que deve ser pensada, se quisermos pensar
aquilo que se denomina ser e pensar de maneira adequada à questão. O
descobrimento é como que o elemento único no qual tanto o ser como o pensar e
seu comum-pertencer podem dar-se. A Alétheia
é, certamente, nomeada no começo da filosofia, mas não é propriamente pensada
como tal pela filosofia nas eras posteriores.”[5]
A tarefa do pensamento de Heidegger, o seu propósito de recolocar a
questão do sentido do ser, provém do que ele chamou de Sache, a questão ou o assunto mais digno de ser pensado – a saber,
o descobrimento como o elemento no qual tanto o ser quanto o pensar podem
mutuamente se dar em seu comum-pertencimento. Nomeado no começo da filosofia,
mas sem ser posteriormente pensado como tal, o fenômeno da verdade como alétheia acabou sendo entulhado pela
interpretação da verdade como certeza; esse processo corresponde ao que foi
indicado como o esquecimento do ser em favor da avalanche do ente.
A fim de recolocar a questão do ser no horizonte da diferença ontológica,
Heidegger propõe questionar a essência da verdade a partir da questão da
verdade da essência. Para o nosso propósito de mostrar a sua compreensão da
relação do pensamento com o ser a partir da essência da verdade, devemos,
portanto, demonstrar essa tese apresentada pela primeira vez na observação
final do texto Sobre a essência da
verdade: “A questão da essência da verdade se origina da questão da verdade
da essência” [6].
Heidegger indica que, a partir da confusão entre ser e ente, o pensamento
metafísico, movido pela necessidade de obter a certeza de seu conhecimento,
passou a compreender o ser como realidade, coisa, res: “O ser recebe o
sentido de realidade. A determinação
fundamental do ser torna-se substancialidade. (...) Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em conseqüência, o conceito
de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica.”[7]
Por o homem moderno só legitimar o que pode ser apreendido pela certeza do
conhecimento, a realidade passou a ter uma primazia sobre a possibilidade,
promovendo uma interpretação da essência como substância. Referindo-se a
Descartes (Principia I, n. 51),
Heidegger, no início do §20 de Ser e
tempo, define a substância como o ente que é sem necessitar de nenhum outro
ente: “O ser de uma substância caracteriza-se por uma não necessidade”.
Substância é o ens perfectissimum, um
princípio que, sendo por si e em si, independe de produção e de conservação,
pois não nasce e nem perece, mantendo-se inalterado e sempre igual a si mesmo
em toda divisão, figuração e movimento. A partir dessas características, a
essência, interpretada como substância, passa a ser compreendida através do
caráter de permanência constante[8] – Propriamente só é o que sempre permanece[9].
Devido a este seu caráter de permanência constante, a essência passou a
ser caracterizada nesses dois aspectos complementares: pela permanência, na
separação entre ser e vir a ser; e, pela constância, na separação entre ser e
aparecer. O caráter de permanência da substância separa o ser do vir a ser
conforme a formulação lapidar de Nietzsche: o
que é não vem a ser; o que vem a ser não é... Diante da permanência do ser,
o vir a ser foi associado ao não ser através da distinção verdade versus falsidade: enquanto a essência
verdadeira de algo consiste no que nele há de permanente, o falso perece no vir
a ser. Do mesmo modo, o caráter de constância da substância separou o ser do
aparecer de acordo com a máxima: parece
mas não é... Por sua própria inconstância, a aparência foi também associada
ao não ser através da distinção verdade versus
falsidade. O caráter de permanência constante da substância promove as
separações entre ser e vir a ser e ser e aparecer, através da diferenciação
entre verdade e falsidade: enquanto a verdade do que é permanece sempre
constante, a falsidade do que não é vem a ser no que parece. Heidegger indica
que foram essas separações entre ser e vir a ser e ser e aparecer, compostas
com a distinção entre verdade e falsidade, que promoveram a cisão entre o que é
(o ti estin: a qüididade) e o fato de
ser (o hoti estin); o que, por sua
vez, foi a proveniência da ruptura entre a essência (o ontos on) e a existência (o phainomenon)[10].
Foi este processo promovido pela decisão ontológica de interpretar a essência
como substância que também instaurou a cisão entre pensar e ser: o pensamento
passa a ter uma substância própria, a res
cogitans, distinta e autônoma.
“Descartes distingue o ‘ego cogito’,
como res cogitans, da ‘res corporea’.
Essa distinção determinará ontologicamente a distinção posterior entre
‘natureza’ e ‘espírito’.”[11]
Heidegger compreende que Descartes promoveu uma cisão entre homem e mundo, à
medida que compreendeu o pensamento como um fundamento, a substância do eu: ego cogito – ergo – ego sum: penso,
conseqüentemente, sou. Como substância do eu, o pensamento passou a ter uma
autonomia de tudo que não é ele mesmo, tornando-se uma coisa ideal, a res cogitans, essencialmente diferente
de todas as outras coisas corpóreas, que passaram a ser constituídas por uma
outra substância, a res extensa. Com
a distinção essencial do ‘ego cogito’
da ‘res corporea’, diante da
realidade cindida em duas substâncias, em res
cogitans e res extensa, a verdade
passa a ser a certeza de uma concordância do juízo com a coisa, uma adequação
correta entre o pensamento ideal e a extensão real: “A definição nominal da
verdade, a saber, que consiste na concordância do conhecimento com o seu
objeto, é aqui concedida e pressuposta...”– como podemos constatar nessa
advertência escrita por Kant em sua Crítica
da razão pura[12].
Como conseqüência de todas essas separações promovidas pela primazia da
realidade na problemática ontológica, pela essência interpretada como
substância, a questão da verdade foi reduzida ao problema da síntese entre o
conhecimento ideal e a coisa real. A fim de desconstruir essa compreensão de
essência e verdade, Heidegger pergunta no §44 de Ser e tempo: Como se deve
apreender ontologicamente a relação entre o ente ideal e o real simplesmente
dado? – pois, se a realidade encontra-se cindida em duas substâncias, em
seu modo de ser, a concordância é real, ideal ou nenhuma delas? Isto é: a
verdade como concordância é subjetiva (ideal), objetiva (real) ou, além dessas
duas, haveria na realidade uma terceira substância? – “Ou será que o descaminho
da questão consiste em seu ponto de partida, ou seja, na separação
ontologicamente não esclarecida entre real e ideal?”[13]
Desde Ser e tempo, toda a
tarefa do pensamento de Heidegger consistiu em recolocar a questão do sentido
do ser no horizonte da diferença ontológica, a fim de mostrar que, como o ser
não é um ente, antes de se constituírem como duas substâncias, as essências de
homem e mundo se dão na existência; e que, portanto, antes de estarem separados
ontologicamente em dois fundamentos autônomos, homem e mundo têm origem no
comum-pertencimento do acontecimento existencial. A esse acontecimento
original, Heidegger chamou de Da-sein,
a fim de indicar a instância (Da)
onde o ser (Sein) aparece e vem a
ser, a presença do que se apresenta, a existência. Com essa palavra, Dasein (presença), Heidegger quer
indicar que, antes de estarem ontologicamente separados em sujeito e objeto, o
homem e o mundo se constituem na unidade do acontecimento existencial, no Da do Dasein – o que ele, em Ser e
tempo, chamou de “ser-no-mundo”[14]
e, posteriormente, caracterizou como “clareira do ser”: “o homem se
essencializa, de tal sorte que ele é o ‘lugar’ (Da), isto é, a clareira do ser. Esse ‘ser’ do lugar, e só ele,
possui o caráter fundamental de ec-sistência, isto é da in-sistência ec-stática
na verdade do ser”[15].
Ao contrário do sub da
substância, que indica o que está abaixo, sob, no interior do ente, o ex da existência diz o que se constitui
fora, exposto na presença do que se apresenta, lançado no jogo do acontecimento
de ser. Como existência, a essência do homem não é uma substância real, um ente
simplesmente dado; por existir, o homem se essencializa na possibilidade da
clareira do ser, isto é, na insistência ecstática na verdade do ser. A
in-sistência ec-stática indica a dinâmica de estar simultaneamente aberto e
fechado; aberto ao possível vir a ser do que aparece e fechado no que se
efetuou como real, o aparecido. Existencialmente jogado na diferença ontológica,
o homem se dá, sempre e ao mesmo tempo, lançado ecstáticamente no poder ser e
situado na realidade do que é: Ek-sistente,
a presença é insistente[16]:
aberto ao ser, o homem se fecha no ente. Insistir ecstaticamente na verdade do
ser indica a nossa condição de ser no aparecimento do que vem a ser, de termos
a nossa essência lançada no pre de
nossa presença, na clareira de ser.
Por essa nossa essência existencial, Heidegger indica que somos no mundo.
Antes de uma composição posterior de duas partes, a interioridade de um sujeito
dentro da extensão, ser-no-mundo indica o comum pertencimento, o nexo original
de homem e mundo no acontecimento existencial do pre de nossa presença. Somos no aparecimento de nosso vir a ser,
jogados no aí do aqui e agora de nossa situação; por existirmos, somos um ente
aberto ao ser. Existir é compreender que o ente é, consiste em estar na
clareira de ser no mundo. Por insistir ecstaticamente na verdade do ser, a
presença já sempre se compreendeu a si mesma em seu mundo, a partir do sentido
da conjuntura presente, da compreensão do nexo do que se apresenta no contexto
de sua situação. Antes de qualquer síntese entre duas substâncias, Heidegger
indica que a verdade é esse acontecimento de ser, o descobrimento do sentido dos
entes.
A compreensão existencial do ser-no-mundo traz consigo uma outra
interpretação da essência, distinta daquela que, calcada no primado da
realidade sobre a possibilidade, encaminhou a metafísica ao esquecimento do
ser. Ao interpretar a essência como existência, Heidegger recorda de um sentido
dinâmico de essência, o seu modo verbal, esquecido na antiga palavra alemã Wesen:
A palavra
“essência” não significa mais o que uma coisa é. Escutamos a palavra alemã Wesen, essência, como um verbo, wesend, ou seja, como vigorar, no
sentido de vigorar na presença e na ausência. Wesen, vigorar, diz währen, perdurar, weilen, demorar. A expressão es west, está em
vigor, significa mais do que está durando, demorando. Está em vigor diz que
algo persiste, perdura e assim nos toca, nos en-caminha e nos intima. Pensada
desse modo, a essência designa o vigor, o que persiste e perdura, o que nos
concerne em tudo que nos toca, porque é o que tudo en-caminha e movimenta.[17]
Como o que persiste, perdura e nos
perfaz, a essência, pensada em seu sentido verbal, indica o vigor da
existência, a manifestação de sua própria verdade. Essa verdade da essência nos
concerne em tudo que somos; ela é o vigor que encaminha e movimenta a nossa
compreensão de ser – a verdade da essência é o que nos intima a compreender a
questão da essência da verdade. Considerando este assunto em sua observação
final à conferência Sobre a essência da
verdade, visando o esclarecimento de como a questão da diferença ontológica
é o fundamento de sua compreensão da verdade como descobrimento, Heidegger
afirma que:
A questão da
essência da verdade se origina da questão da verdade da essência. Aquela
questão entende essência, primeiramente, no sentido de qüididade (quidditas) ou de realidade (realitas) e entende a verdade como uma
característica do conhecimento. A questão da verdade da essência entende
essência em sentido verbal e pensa, nesta palavra, (...) o ser (Seyn) como a diferença que impera entre
ser (Sein) e ente (Seiendem).[18]
Antes de conceber a essência como uma qüididade ou realidade, um ente que
simplesmente é e está sendo, e assim entender a sua verdade como uma
característica do conhecimento, a certeza de uma síntese correta, Heidegger
propõe desde Ser e tempo a tarefa de
compreender o ser no horizonte da diferença ontológica para, assim, pensar o
sentido verbal da essência da verdade. O ser não é um ente, por isso antes de a
sua verdade ser uma determinação proposicional da substância, a certeza de um
juízo ou categoria adequada à realidade, ela consiste na descoberta do sentido
do que é e está sendo.
Verdade é descoberta – e isso em dois modos: primordialmente, verdade
indica o descobrimento dos entes, o aparecimento da realidade, do que se
mostra, o fato de o ente ser: a presença
é e está ‘na verdade’[19];
bem como verdade indica também um acontecimento especial de ser-no-mundo, o
descobrimento do ser que Heidegger caracterizou, em Ser e tempo, como decisão (Entschlossenheit)
e, posteriormente, como acontecimento apropriante (Ereignis). Embora não explicitamente formulado deste modo,
encontramos em seus escritos esses “dois níveis” do acontecimento da verdade
como descobrimento; cabe compreendermos como, ao contrário de dois níveis, Heidegger
quer assim indicar que a vigência existencial de nossa essência perfaz o que
somos tanto na realidade ordinária do que é habitual, quanto em sua modificação
na possibilidade extraordinária de nosso acontecimento existencial.
Existir é ser na compreensão de ser. Por compreendermos o ser, a nossa
essência nunca se apresenta como uma substância, um ente pronto e já
determinado. Como existência, estamos abertos à nossa possibilidade de ser,
sempre diante de nosso poder ser no mundo. Existir é descobrir o que aparece, e
o que aparece é o ente. À medida que faz o ente aparecer, o descobrimento simultaneamente
se encobre no que é descoberto: o ser se oculta no ente que aparece. Por esse
encobrimento constitutivo do descobrimento, Heidegger indica que, de imediato e
na maioria das vezes, a presença tem a tendência de se fixar numa compreensão habitual
dos entes, desviando-se de seu acontecimento existencial. Fixando-se numa
realidade já constituída de si e do mundo, a presença decai da possibilidade
aberta em sua compreensão de ser. Pela vigência mesma da verdade como
descobrimento, a presença tem uma tendência constitutiva ao que foi
caracterizado como decadência: o esquecimento do ser em favor da avalanche do
ente.
Em sua constituição ontológica, a
presença é e está na ‘não-verdade’ porque é, em sua essência, de-cadente.[20] A
não-verdade consiste no encobrimento constitutivo da verdade como
descobrimento, fenômeno que caracteriza a possibilidade de algo ou se ocultar e,
assim, não aparecer, ou de aparecer como aquilo que ele não é, da aparência
como falsidade. Semelhante às antigas compreensões gregas de krýptesthai e pseudos, Heidegger caracteriza a não verdade do encobrimento como
recusar (Versagen) e como dissimular
(Verstellen)[21].
Por esse duplo modo de a verdade se encobrir, o descobrimento da clareira do
ser, o que constitui a essência existencial da presença, precisa também
tornar-se um acontecimento efetivo, apropriar-se numa experiência de
compreensão não apenas dos entes, mas, antes, do ser.
A compreensão do ser constitui a origem da existência, o princípio
fundamental da presença; por sua vez, ser é sempre compreensão de ser. Como
clareira da existência, vigência do descobrimento de ser-no-mundo, o ser não é
um ente simplesmente dado. O ser perfaz a essência (Wesen) da presença. Ao contrário de duas substâncias separadas e
autônomas, a presença é a instância de acontecimento do ser, o Da-sein: o ser consiste na propriedade
da presença.
O comum-pertencer de homem e ser ao modo da recíproca provocação nos
faz ver, de uma proximidade desconcertante, o fato e a maneira como o homem está
entregue como propriedade ao ser e como o ser é apropriado ao homem. Trata-se
de simplesmente experimentar este ser próprio de, no qual homem e ser estão
reciprocamente apropriados, experimentar que quer dizer penetrar naquilo que
designamos acontecimento-apropriação.[22]
Como de imediato e na maioria das vezes a presença se encontra decaída no
ente, há nela a tendência de esquecer o ser e, desviando-se de sua clareira,
ficar apegada à certeza dos entes. Por isso Heidegger nos fala também da
verdade como uma modificação existencial da decadência, um acontecimento que,
apropriando a presença em seu ser, promove a experiência do nexo fundamental
entre ser e compreensão de ser. Como clareira de ser no mundo, a verdade é o
acontecimento apropriante da presença, a descoberta do que o ente é a partir e através da compreensão
aberta pela identidade entre pensar e ser – pois
o mesmo é pensar e ser.
Bibliografia citada:
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ:
Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.
__________. Caminhos
de Floresta. Trad. Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002
__________. Conferências
e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural,
1979. (Col. Os Pensadores)
__________. Introdução
à metafísica. Trad.
Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro e Editora
Universidade de Brasília, 1978.
__________. Ser
e tempo. Trad. Marcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
__________. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967
[1] Texto
publicado em: Acerca do poema de
Parmênides. Organização de Fernando Santoro, Henrique Cairos e Tatiana
Ribeiro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2009, pp. 131 – 138.
* Professor Titular
da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2]
Nietzsche, F. Crepúsculo dos Ídolos
VIII. Cf. Heidegger, M. Introdução à
metafísica, p. 63.
[3]
Heidegger, M. Sobre o humanismo, p.
53.
[4] Idem, Sobre o humanismo, p. 67.
[5] Idem, O
fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 79.
[6] Die Frage nach dem Wesen der Wahrheit
entspringt aus der Frage nach der Wahrheit des Wesens.
[7] Cf.
Idem, Ser e tempo § 43, p. 267.
[8] Cf.
Idem, Ser e tempo § 19, 137
(Charakter des ständigen Verbleibs).
[9] Idem, Ser e tempo § 21, p. 142.
[10] Cf.
Idem, Introdução à metafísica, pp.
200-208.
[11] Idem, Ser e tempo, § 19, p. 135.
[12] Kant, Crítica da razão pura, A 82 (tradução de
Valério Rohden). Passagem citada por Heidegger em Ser e tempo § 44-a, p. 282.
[13] Idem, Ser e tempo § 44, p. 284.
[14] “O que
se constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o ‘pre’ de sua presença.” – Idem, Ser e tempo § 28, p. 186.
[15] Idem, Sobre o humanismo, p. 43.
[16] Idem, Sobre
a essência da verdade § 6. In: Conferências
e escritos filosóficos, p. 142.
[17] Idem, A
essência da linguagem. In: A caminho
da linguagem, p. 158.
[18] Idem, Sobre
a essência da verdade. In: Conferências
e escritos filosóficos, p. 145.
[19] Idem, Ser e tempo § 44b, p. 289.
[20] Idem, Ser e tempo § 44b, p. 290.
[21] Cf.
Idem, A origem da obra de arte. In: Caminhos
de Floresta, pp. 53-54.
[22] Idem, O
princípio da identidade. In: Conferências
e escritos filosóficos, p. 184.
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