Páginas

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Texto de Heidegger: O problema de um pensamento e de uma linguagem não-objetivantes na teologia atual


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM RELAÇÃO A PONTOS DE VISTA CAPITAIS PARA O COLÓQUIO TEOLÓGICO SOBRE “O PROBLEMA DE UM PENSAMENTO E DE UMA LINGUAGEM NÃO-OBJETIVANTES NA TEOLOGIA ATUAL”[1]

M. HEIDEGGER.
Freiburg I. Br., 11 de março de 1964.

O que é, nesse problema, a coisa digna de questão? Tanto quanto vejo, são três os temas que precisam ser pensados.

1.         Antes de tudo cabe determinar o quê que a teologia, enquanto um modo do pensamento e da linguagem, tem a discutir. É a fé cristã e isso que nesta fé constitui o seu fidedigno (sein Geglaubtes). Somente se se ganha clareza quanto a isso, pode ser perguntado como o pensar e o falar precisam ser considerados, de modo que correspondam ao sentido e à reclamação da fé e de modo ainda que, assim, seja evitado que se introduza na fé representações que lhe são estranhas.

2.         Antes de se encaminhar uma discussão a respeito do pensar e do falar ñao-objetivantes, faz-se absolutamente necessário considerar o que é entendido como o pensamento e a linguagem objetivantes. Com isso levanta-se a questão se todo pensamento como pensamento, se toda linguagem como linguagem já são ou não objetivantes.

Se se mostra que o pensamento e linguagem de modo algum já são objetivantes em si mesmos, então isso conduz a um terceiro tema.

3.         Cabe decidir em que medida o problema de uma linguagem e de um pensamento não-objetivantes constitui-se realmente num autêntico problema. Cabe pois decidir, se com isso não é questionado algo que apenas incidentalmente pensa a coisa em questão e assim desvia do tema da teologia, confundindo-o inutilmente. Nesse caso, o colóquio que ora se realiza teria a tarefa de tornar claro para si mesmo que ele, com seu problema, se encontra num caminho que leva a lugar nenhum (auf einem Holzweg). Isso seria, assim o parece, um resultado apenas negativo do encontro. Mas isso é apenas uma aparência, pois, na verdade, teria como conseqüência inevitável que a teologia enfim e decisivamente ganharia clareza a propósito da necessidade de sua tarefa capital – não articular as categorias de seu pensamento e o modo de sua linguagem desde empréstimos tomados à filosofia e às ciências, mas pensar e falar especificamente (sachgerecht) a partir da fé para a fé. Se esta fé, segundo sua própria convicção diz respeito ou vem ao encontro do homem como homem em sua essência, então o autêntico pensar e falar teológicos não precisam de nenhum dispositivo prévio e especial para atingir os homens e neles encontrar ressonância, atendimento.


Os três temas mencionados só poderiam ser discutidos com precisão em particular. Falando desde a filosofia, só posso dar algumas indicações, alguns acenos, para o segundo tema. A discussão do primeiro, o qual precisa sub-estar a todo o colóquio, caso ele não queira vagar ao léu, é tarefa da teologia.

O terceiro tema contém as conseqüências teológicas advindas do tratamento satisfatório do primeiro e do segundo temas.

Agora, tento dar alguns acenos para a consideração do segundo tema e isso apenas sob a forma de algumas perguntas. No entanto, deve ser evitada a suspeita de que se trata da apresentação de teses dogmáticas provenientes da filosofia de Heidegger. Não há isso.


Algumas considerações quanto ao segundo tema

Antes de toda e qualquer discussão a propósito da pergunta por um pensamento e uma linguagem não-objetivantes na teologia, faz-se necessária a reflexão (Besinnung) sobre o que se entende, na colocação do problema para o colóquio teológico, sob um pensamento e uma linguagem objetivantes. Esta reflexão impõe a pergunta:

Serão o pensamento e a linguagem objetivantes um modo particular do pensamento e da linguagem, ou todo pensamento como pensamento e toda linguagem como linguagem precisam ser necessariamente objetivantes?

A decisão quanto a esta pergunta só se faz possível se previamente são esclarecidas e respondidas as seguintes questões:

a)    O que quer dizer objetivar?
b)    O que quer dizer pensar?
c)    O que quer dizer falar?
d)    Todo pensar é em si um falar e todo falar é em si um pensar?
e)    Em que sentido o pensamento e a linguagem são objetivantes, em que sentido eles não o são?

É da natureza da própria coisa o fato destas questões se interpenetrarem no movimento da discussão de cada uma delas. No entanto, todo o peso destas perguntas subjaz ao colóquio. Simultaneamente, estas perguntas configuram (mais ou menos claramente e suficientemente desdobradas) o centro ainda velado do empenho que provoca e promove a atual ‘filosofia’, a partir de suas extremas contraposições (Carnap – Heidegger). Estas posições são hoje denominadas: a concepção técnico-cientificistas da linguagem e a experiência especulativo-hermenêutica da linguagem. Ambas as posições são determinadas por tarefas abissalmente distintas. A primeira posição quer submeter todo pensar e todo falar, também o pensar e o falar da filosofia, à constructibilidade de um sistema lógico-técnico de sinais, isto é, fixar todo pensar e todo falar como instrumento da ciência. A outra posição cresceu desde a pergunta pelo que seja a própria questão (Sache) a experimentar para o pensar da filosofia e com isso (diese Sache), isto é, o ser como ser, há que ser dito. Em ambas as posições não se trata, no entanto, de dominós separados de uma filosofia da linguagem (tal como uma filosofia da natureza ou da arte), mas, antes, a linguagem é reconhecida como o âmbito (Bereich) no interior do qual se mantém e se move o pensar da filosofia e toda espécie de pensar e de dizer. Segundo a tradição ocidental, a essência do homem é assim determinada: o ser vivo que ‘tem a linguagem’ (zõon lógon échon). O homem também como ser ativo (als handelndes wesen) só é tal como aquele que ‘tem a linguagem’. Na medida, pois, em que a essência do homem nesta tradição é assim determinada, o que está em questão com a confrontação destas duas posições é nada menos do que a pergunta pela existência do homem e sua determinação.

De que modo e até que ponto a teologia pode e precisa meter-se e comprometer-se nesta discussão-confrontação – isso é coisa que cabe a ela decidir.

Que aqui, porém, seja feita uma observação preliminar aos breves esclarecimentos das perguntas: a) e e), observação esta que trás à baila aquilo que possivelmente deu lugar à colocação deste ‘problema de um pensamento e de uma linguagem não-objetivantes na teologia atual’. Há uma opinião do dominante e não provada, segundo a qual todo pensar é um representar (vorstellen) e todo falar é uma enunciação (verlautbarung) e que enquanto tais já são ‘objetivantes’. Seguir passo a passo e em particularidades a proveniência desta opinião é aqui impossível. Determinante para a dominação desta opinião é a distinção, desde há muito estabelecida e não esclarecida, entre o racional e o irracional, distinção seta que, por seu lado, é posta a partir da instância de um pensamento racional em si mesmo não esclarecido. Recentemente as doutrinas de Nietzsche, de Bérgson e da ‘filosofia da vida’ foram determinantes para a afirmação do caráter objetivante de todo pensamento e de toda linguagem. Na medida em que nós no falar (expressa ou inexpressamente) sempre dizemos ‘é’; na medida em que ser significa presença e na medida ainda em que esta modernamente é interpretada como objetividade (als gegenstaendlichkeit und objetktivitate) – assim sendo, o pensar como ob-jetivar (vor-stellen) e o falar como enunciação (verlautbaraung) trazem consigo inevitavelmente uma fixação do ‘fluxo da vida’, em si mesmo sempre fluente, e com isso uma falsificação do mesmo. Por outro lado, uma tal fixação ou estabelecimento do permanente, ainda que ela falsifique, é inevitável para a manutenção e estabelecimento da vida humana. Como comprovação para esta opinião vigente e que aparece sob diferentes modulações, basta o seguinte texto de Nietzsche, tomado de ‘vontade de poder’, 715 (1887/8): ‘os meios de expressão da linguagem são inutilizáveis pra expressar o devir’; pertence à nossa inevitável necessidade de conservação o estabelecer (setzen) insistentemente um mundo grosseiro de permanência, de ‘coisas’, etc. – isto é; de objetos.

Os seguintes acenos às perguntas de a) e e) querem ser compreendidos e pensados também como perguntas. Pois mistério da linguagem, isso em que toda a meditação (besinnung) precisa se concentrar, permanece o fenômeno mais digno de ser pensado e perguntado, sobretudo quando se revela (wenn die Einsicht erwacht) que a linguagem não é nenhuma obra do homem: a linguagem fala (die sprache spricht). O homem só fala na medida em que ele (corresponde) participa da linguagem (der sprache entspricht). Estas frases ao são o produto de uma ‘mística’ fantástica. A linguagem é um fenômeno originário, cujo próprio não se prova através de fatos, mas só se faz ver desde uma imparcial experiência da linguagem. O homem pode inventar artificialmente fonemas (lautgebilde) e sinais, mas isso ele só o pode fazer em relação a uma linguagem já falada e somente a partir desta. Também com relação ao fenômeno originário o pensamento permanece crítico. Pensar criticamente significante: insistentemente distinguir (krínein) entre isso que exige uma nova prova para sua justificação e isso que reclama para sua comprovação o simples ver e tomar. É sempre mais fácil introduzir uma prova no primeiro caso do que, no segundo, se abandonar, assim penetrando, ao ver que acolhe (sich auf das hinnehmende erbliken einzulassen).


Para a) – o que quer dizer objetivar?

Objetivar quer dizer: fazer ou tornar algo objeto, colocá-lo como objeto e somente assim representá-lo (vorstellen). E o que quer dizer objetivo? Na Idade Média obiectu’ significa: isso que é lançado ou projetado de encontro ao perceber, à imaginação, ao julgar, ao aspirar e contemplar e assim de encontro é mantido, conservado. Por outro lado, subiectum significa o hypokeímenon, o que a partir de si mesmo (e não trazido de encontro através de uma representação) está posto estendido aí (das von sich aus vorliegende), o presente, por exemplo, as coisas. Em comparação com a significação hoje corrente e dominante, a significação das palavras subiectum e obiectum é precisamente a contrária: subiectum é o existente por si (objetivo); obiectum o somente (subjetivo) representado (vorgestellte).

Na seqüência da reformulação (umbildung) do conceito de subiectum através de Descartes[2], o conceito de objeto ganha também uma significação transformada. Para Kant objeto quer dizer: o objeto (gegenstand) existente da experiência científico-natural. Todo objeto (objekt) é um gegenstrand (objeto), mas nem todo gegenstand (objeto) – por exemplo, a coisa em si – é um objeto (objekt) possível. O imperativo categórico, os costumes (das sittliche sollen), o dever (die pflicht) não são de modo algum objetos (objekte) da experiência científico-natural. Quando se reflete sobre eles, se eles são pensados na ação, eles não são por isso ou através disso objetivados (objektiviert).

A experiência cotidiana das coisas em sentido lato não é nem objetivante e nem tampouco uma objetivação (vergegenstaendlichung)[3]. Se nós, por exemplo, sentamo-nos no jardim e nos aprazemos com a floração das rosas, não fazemos da rosa um objetivo (objekt) e nem mesmo algo tematicamente representado, isto é, um gegenstand. Mesmo se eu, num dizer silencioso e recolhido, estou entregue ao vermelho luminoso da rosa e medito ou sopeso (nachsinne) o ser-vermelho da rosa, então, este ser-vermelho não é nem um objeto (objekt), nem uma coisa, nem ‘algo posto aí em contraposição’ (gegenstand) tal como a rosa que flora. Esta está no jardim, talvez que ela oscile, para cá e para lá, ao sabor do vento. Ao contrário, o ser-vermelho da rosa não está no jardim e nem tampouco ele pode balançar, para cá e para lá, no vento. Não obstante, eu o penso e falo (sage) dele, na medida em que eu o nomeio. Há, pois, um pensar e um dizer que, de maneira nenhuma, nem objetiva, isto é, faz coisa, e nem torna objeto de representação temática (... das in keiner weise objektiviert noch vergegenstaendlicht).

Na verdade, posso considerar a estátua de Apolo no museu de Olímpia como um objeto de representação científico-natural; posso avaliar o mármore fisicamente quanto a seu peso; posso investigar este mármore segundo suas propriedades químicas. Mas este pensar e falar objetivantes não vê o Apolo tal como ele se mostra em sua beleza e como nesta beleza ele se manifesta como o olhar do deus.


Para b) o que quer dizer pensar?

Atentemos para isso que acabou de ser exposto e então torna-se claro que o pensamento e a linguagem ñao se esgotam na representação e na expressão teórico-científco-naturais. Antes, pensar é a disposição (verhalten, comportamento, empenho) que faz com que se dê para si, nisso que a cada vez se mostra e como se mostra, aquilo o que ela tem a dizer do que aparece. Pensar não é necessariamente uma representação (ein vorstellen) de algo como objeto. Só o pensamento e a linguagem científico-naturais são objetivantes. Fosse todo pensamento enquanto tal já objetivante, e então ao configurar (gestalten) d s obras de artes permaneceria sem sentido, pois elas jamais poderiam se mostrar a homem nenhum, porque o homem então, concomitantemente, faria disso que aparece um objeto e assim ficaria vedado o aparecer à obra de arte.

A afirmação segundo a qual todo pensamento enquanto pensamento é objetivante é sem fundamento. Trata-se de uma desatenção e mesmo de uma subestimação ou menosprezo do fenômeno e denuncia falta de crítica.



Para c) o que quer dizer falar?

Constituir-se-á a linguagem no fato que ela transpõe ou converte o pensado em fonemas (laute), os quais são percebidos como sons e ruídos objetivamente constatáveis? Ou a enunciação de uma fala (na conversa, no diálogo) já não será algo completamente distinto de uma determinada seqüência acústica de sons objetiváveis, os quais são carregados de uma significação, e através dos quais se fala sobre objetos? Falar, em seu mais próprio, não será um dizer (ein sagen), um mostrar diversificado disso que se deixa dizer no ouvir, isto é, na atenção obediente ao que aparece? Se se observa cuidadosamente a isso, pode-se ainda firmar acriticamente que a linguagem enquanto linguagem já seja sempre objetivante? Se a um homem enfermo se traz uma palavra de conforto e se assim lhe tocamos, em fala ou em dizer, no seu mais próprio, - fazemos então deste homem um objeto, isto é, tornamo-lo um objeto? A linguagem será apenas um instrumento que usamos para o retrabalhamento e a elaboração de objetos? Estará a linguagem à disposição do poder e do apoderamento do homem? Será a linguagem tão-somente uma obra do homem? Ou será a linguagem que ‘tem’ o homem, na medida em que ele pertence à linguagem, a qual antes e primeiramente lhe abre o mundo e com isso simultaneamente abre-lhe sua morada no mundo?


Para d) será todo pensar um falar e todo falar um pensar?

Através das perguntas até aqui discutidas, somos levados à suposição de que há esta copertinência (identidade) de pensar e dizer. Já desde há muito é esta identidade confirmada, na medida em que o logos e o légein significam simultaneamente: discursar (reden) e pensar. Mas esta identidade jamais foi suficientemente discutida e experimentada nela própria (sachgerencht). Um obstáculo crucial oculta-se no fato que a interpretação grega da linguagem (a sabre, a interpretação gramática) oriento-se em direção à enunciação (aussagen) sobre as coisas. Mais tarde, através da metafísica moderna, as coisas tornaram-se objetos. Assim instaurou-se a opinião errônea, segundo a qual pensar e falar (pensamento e linguagem) se referem a objetos e somente a objetos.

Por outro lado, se se vê frente a isso a estruturação orientadora, segundo a qual o pensamento faz-se sempre como um ‘deixar-se dizer’ disso que se mostra e, em seguindo a medida deste mostrar-se, um co-responder (dizer) frente a isso mesmo que assim se mostra – então, tornar-se-á claro em que medida também a poesia é um dizer pensante, o que, na verdade, não se deixa determinar em seu modo de ser próprio através da advertência lógica da predicação sobre objetos (die herkoemmliche logik der aussage ueber objekte).

Precisamente o olhar sobre a copertinência de pensamento e linguagem revela a insustentabilidade e a arbitrariedade da tese, segundo a qual pensamento e linguagem, enquanto tais, são necessariamente objetivantes.


Para e) em que sentido pensamento e linguagem são objetivantes e em que sentido não o são?

É no campo da representação técnico-científico-natura que pensamento e linguagem são objetivantes, isto é, que põem algo dado como objeto. Neste campo eles são necessariamente objetivantes, porque este modo de conhecer precisa colocar previamente seu tema como algo com o que se pode contar, como objeto (gegenstand) causalmente elucidável, isto é, como objeto (objekt) no sentido definido por Kant.

Fora deste campo o pensamento e a linguagem não são, de modo algum, objetivantes.

Mas hoje há e mesmo cresce o perigo de que o modo de pensar técnico-científico se alastre por todos os domínios da vida. Através disso fortalece-se a falsa aparência de que todo pensamento e toda linguagem sejam objetivantes. Esta tese, que afirma tal coisa dogmática e infundadamente, fomenta e apóia, por seu lado, a tendência fatalista de representar tudo exclusivamente de maneira técnico-científica como objeto de possível controle ou comando (steuerung) e manipulação. A própria linguagem e sua determinação é atingida simultaneamente por este processo da desembestada objetivação técnica. A linguagem é deformada e falsificada como um instrumento da comunicação e da informação calculista e contábil. Ela é tratada como um objeto manipulável, ao qual o modo do pensar precisa se igualar. Mas o dize da linguagem não é necessariamente a expressão de proposições (saetzen) sobre objetos. Em seu mais próprio, a linguagem é um dizer a partir disso que (von dem, was...) se abre e assim fala ao homem de diversos modos, na medida em que o homem não se fecha a isso que se mostra. Tal fechamento pode se dar na medida em que, através da dominação do pensamento objetivista, o homem só a este se restringe.

Que o pensamento e a linguagem somente num sentido derivado e limitado sejam objetivantes é algo que não se deixa deduzir cientificamente através de provas. A essência (wesen) própria do pensamento e da linguagem só se fez visível desde um olhar despojado (vorurteilsfreien, isto é, livre de preconceitos) dos fenômenos.

É um erro pensr que ser somente possa vir de encontro a isso que só possa se medido (errechnen) e provado objetivante, por via técnico-científica, como objeto).

Esta opinião errônea esquece uma palavra já há muito dita e subescrita por Aristóteles: ésti gár apaideusía tò me fignóskein tínon dei zeï zeteïn apódeixen kaí tínon ou deï’ – ‘é uma deformação (apaideusía, unersogenheit) não ver em relação a que é preciso buscar provas e em relação a que isso não é necessário’ (Aristóteles, Met. IV, 4, 1006a, 6).

Uma vez feitas estas considerações, cabe dizer o seguinte quanto ao terceiro tema – isto é, quanto à decisão sobre a questão em que medida o tema do colóquio é um genuíno problema: tendo por fundamento a reflexões referentes ao segundo tema, a colocação do problema do colóquio precisa expressar-se mais claramente. Numa formulação intencionalmente radicalizada, é preciso que esta colocação assim soe: ‘o problema de um pensamento e de uma linguagem não-técnico-científica-natural na teologia atual’.

A partir desta formulação adequada (sachgerechten umformung), é fácil ver-se que: a questão colocada não será um autêntico problema tanto quanto a colocação do problema se oriente em direção a um pressuposto, cujo absurdo se torne evidente a qualquer um. A teologia não é ciência natural.

Mas atrás da mencionada colocação do problema oculta-se a tarefa positiva da teologia: no seu próprio domínio da fé cristã, definir (eroertern) a partir desta essência própria o que ela tem que pensar e como ela tem que falar. Nesta tarefa está simultaneamente incluída a pergunta, se a teologia pode ainda ser uma ciência, porque ela, presumivelmente, de modo nenhum o pode ser, isto é, não tem o direito de sê-lo.


Adendo às considerações

A poesia pode servir como exemplo de um pensamento e de uma linguagem (sagens) por excelência não-objetivantes.

Em ‘Sonetos a Orfeu’, I, 3, Rilke diz poeticamente o que determina o pensamento e a linguagem poéticos. ‘Canto é existência’ (gesang ist dasein) (Cf. Holzwege, pág. 292, sgs.; Cf. Trad. Fr. Chemins Qui ne Mènent Nulle Part, Gallimard, pág. 258, sgs.). Canto, o dizer cantante do poeta, é ‘não cobiça’, ‘não aliciamento’ a favor disso que, através de empenho e desempenho humano, por fim é alcançado como resultado.

O dizer poetante é ‘existência’. Esta palavra ‘existência’ (dasein) é aqui empregada no sentido tradicional da metafísica. Significa: presença.
O dizer poetante é ‘ser ou estar presente junto de...’ (Anwesenbei...) e para Deus. Presença (anwesenheit) quer dizer: simples disponibilidade que nada quer, que não conta com nenhum resultado. Ser ou estar junto de...: puro ‘deixar-se-dizer’ a presença da divindade (reines sichsagenlassen die gegenwart des gottes).

Em tal dizer não é posto e representado algo como contra-posição temática (gegenstand) e como objeto (objekt). Aqui não há nada que uma representação assegurante ou apropriante (ein zureifendes oder umgreifendes vorstellen) e poderia opor, contrapor.

‘Um sopro por nada’ (ein hauch um nichts). ‘Sopro’ (hauch, bafejo, hálito) fala do inspirar e do expirar, do ‘deixar-se-dizer’, o qual responde à aquiescência. Não se faz necessário prosseguir com a discussão para tornar-se claro que à pergunta pelo pensar e dizer convenientes (sachgerechten) subjaz a pergunta pelo ser do ente que sempre e antecipadamente já se mostra.

Ser como presença (anwesenheit) pode mostrar-se em diferentes modos da presença (praesenz). O que é presente ou o que se presentifica (anwesendes) não precisa ser empiricamente percebido como objeto (objekt). – (Cf. Heidegger, Nietzsche II, partes VIII e IX; Cf. op. cit., trad. Fr. Gallimard, págs. 319-387).




Um Deus pode! No entanto, dize-me como
Um homem há de segui-lo pela estreita lira?
O sentido lhe á bifurcação. No cruzamento de dois
Caminhos do coração, nenhum templo se ergue para Apolo.

Cantar, como tu ensinas, não é cobiça
Nem conquista de algo que por fim se alcança.
Cantar é existir. Para um Deus, muito fácil.
Mas nós, quando é que existimos? E quando ele

Faz voltar para nós a terra e as estrelas?
Jovem, amar ainda não é nada, –
Embora a voz te force a boca – aprende

A esquecer que en-cantaste. Isso se apaga.
 Na verdade, cantar é um outro sopro.
Um sopro pelo nada. Um vibrar em Deus. Um vento.

(Rilke, Sonetos a Orfeu, I, 3 – Trad. E. Carneiro Leão)



[1] Carta de M. Heidegger, datada de 11.03.1964, endereçada a este colóquio, que realizou-se na Drew-University, Madson, USA, entre 09 e 11 de abril de 1964. Texto publicado em Phaenomenoloie and Theologia, Vittorio Klostermann, Frankfurt, 1970. Publicado em Sofia, volume X, nº 13 e 14, Mito e arte. Tradução de Gilvan Fogel.
[2] Cf. Holzwege, pág. 98, sgs. – Cf. Chemins qui ne mènent nulle part, Gallimard, p. 69-100 (L’époque des conceptions du monde).
[3] Isto é, um objetvar tematizante na e como representação (nota do tradutor).

Nenhum comentário:

Postar um comentário