terça-feira, 28 de julho de 2015

Arte no pensamento - Françoise Dastur

ARTE NO PENSAMENTO*

Françoise Dastur**


Introdução

            Considera-se habitualmente que a tradição ocidental de pensamento encontra a sua origem na oposição entre muthos e lógos, que coincidiu com o nascimento da filosofia em Platão, e está na origem do racionalismo moderno. Com efeito, Platão é quem, ao mesmo tempo, dá à palavra philosophia o seu sentido forte de amor pela sabedoria e de busca da verdade, e quem expulsa os poetas da sua Cidade ideal, por enxergar neles produtores de simulacros, imitações muito distantes da verdade e, conseqüentemente, enganosas. O gesto platônico consagra a separação da imaginação e da razão, da arte e do pensamento. Isso explica por que, durante muito tempo, na tradição ocidental, a arte ficou mantida em posição subordinada, com relação à filosofia e às ciências.
A bem da verdade, vemos surgir, na época das Luzes, uma nova disciplina, a estética, onde a arte retoma seu lugar dentro da filosofia, como atesta a primeira parte da terceira Crítica de Kant. Entretanto, esta ciência da sensibilidade, que é a estética, continua sendo uma teoria do sujeito autônomo, na qual a arte permanece desprovida de qualquer valor de conhecimento.
Apenas com o primeiro romantismo alemão, e em especial com Schelling, um de seus integrantes, é que vemos surgir a idéia de uma identidade e, assim, de uma igualdade de status, entre a arte e a filosofia. O que assim está sendo, primordialmente, preparado, com a reavaliação da arte iniciada por Hegel, dentro do que ele, no entanto, ainda chama de “Estética”, é uma crítica da subjetivação da arte, que podemos ver se desenvolvendo na esteira do movimento fenomenológico inaugurado por Husserl, de início com Heidegger, que define a arte enquanto implementação da verdade e, a seguir, com Gadamer, que fundamenta toda a sua interpretação da obra de arte na crítica da consciência estética. É nesta mesma perspectiva que devemos situar a fenomenologia da arte de Merleau-Ponty, da qual se pode dizer que põe fim à antiga antinomia platônica entre arte e filosofia. 


I. Arte e imitação na antiguidade grega (Platão e Aristóteles)

O que cabe esclarecer, em primeiro lugar, são os motivos que estão na origem da condenação platônica da poesia, pois isto nos dá a oportunidade de elucidar o próprio sentido dessa palavra. Poiêsis não significa apenas fazer, no sentido de fabricar e produzir, mas também a criação poética no sentido específico: no próprio termo grego há um duplo sentido significativo, à medida que ele reúne semanticamente uma eminente espécie da produção com a produção em sentido geral. Podemos ver aí o sinal de uma preeminência da arte da palavra sobre todas as demais artes da Grécia, pois é esta arte, e nenhuma outra, que leva o nome de “criação”: fazer algo existir, pelo único poder das palavras, decerto constitui, para os gregos, o modelo eminente de toda “produção” como tal. Mas esse eminente significado da poiêsis também coincide com aquilo que Platão chama de mimêsis e que costuma ser traduzido por “imitação”: a produção no sentido eminente (produção apenas através da palavra) também é produção de simples imitações, de meras aparências, de imagens, com o auxílio, é verdade, do material mais dúctil que seja, já que se trata do que Aristóteles chama justamente de phônê sêmantikê, o som que significa, isto é, o próprio idioma.
Ora, para Platão, a mimêsis é a essência de toda arte, e não apenas daquilo que mais tarde chamariam de belas-artes: todo artesão já é, de certa forma, um imitador[1], já que, para fabricar quer uma cama, quer uma mesa, ele deve dirigir o seu olhar para a idéia de cama ou de mesa, pois, como afirma em a República, “nenhum artesão jamais produz a própria idéia”[2]. Quanto ao artesão capaz de produzir sozinho o que nenhum outro seria capaz de fazer, esse artesão que produz tudo sem exceção, esse sofista por excelência, que é o pintor ou o poeta, ele realmente existe, embora a sua produção seja de um tipo especial: ele não fabrica, mas faz aparecer as coisas à semelhança daquele que pro-duz, em um espelho, a totalidade das coisas, apenas apresentando-a de todos os lados[3]. O poeta aqui é assimilado ao pintor, ao produtor de imagens-entes, de simulacros. Mas esse produtor capaz de produzir o todo, na verdade, produz apenas o nada, pois a imagem do espelho é a imagem de uma imagem, é mimêsis mimêseos. Decerto, o homem não possui o poder de produzir no original, de fazer aquilo que é, mas apenas de produzir cópias. Na hierarquia dos produtores, o mimêtes distingue-se do dêmiourgos aquele que trabalha para o público, o dêmos — pelo fato de ser “o autor de uma produção distante da natureza em três graus”[4].
Afinal, qual a essência da mimêsis? É menos a reprodução, no sentido da imitação naturalista da realidade, do que um modo subordinado de produção. De fato, para Platão “a imitação é muito afastada da verdade”[5], ela está distante da idéia, com a qual apenas o filósofo quer lidar. Logo, a condenação da poesia, a subordinação da arte à verdade, ocorrem em nome da “idéia” que apenas um puro olhar teórico é capaz de enxergar, que só um lógos independente das imagens pode expressar com legitimidade. A filosofia começa onde, como ensina Platão em o Sofista, se deixa de “contar histórias” (mython tina diêgeisthai).[6]
Como explicar o severo juízo de Platão sobre a poesia? O próprio Platão, genial escritor dos diálogos, é poeta: não reza certa tradição que ele se entregava à poesia antes de conhecer Sócrates? Aliás, em outros diálogos, ele nos apresenta uma imagem bem diferente do poeta, não a de um corruptor de jovens espíritos, mas, ao contrário, a de um ser inspirado pelos deuses, como no pequeno diálogo intitulado Ion, nome de um rapsodo com quem conversa Sócrates. Da mesma forma, em o Ménon, Platão afirma que os adivinhos e os poetas muitas vezes dizem a verdade, porém sem nada conhecer daquilo que falam (99 b). E em o Fedro, Sócrates faz o elogio do delírio, da mania, que é o efeito de um favor divino, e sem o qual não há boa poesia (245 a). Resta que Platão desacredita a arte, e em especial a poesia, com relação à filosofia: o poeta, enquanto inspirado pelos deuses, não sabe o que faz e logo permanece no não-saber. Portanto, a distância entre poesia, arte e filosofia continua intransponível.
A história é outra com Aristóteles, que dedicou um tratado à Poética e, dessa forma, outorga um espaço à poesia na própria filosofia. Em vez de, como Platão, enxergar na poesia o resultado de uma inspiração oriunda dos deuses e um não-saber, Aristóteles se propõe, ao contrário, mostrar que a poesia atende a regras, que ela é o produto de uma technè, um saber fazer. Por isso, ele não hesita em afirmar que “a poesia é mais filosófica e de um tipo mais elevado que a história, pois a poesia conta mais o geral, e a história, o específico”.[7] A poesia, em vez de contar as coisas tal como efetivamente aconteceram, dando espaço ao acidental, as retrata, ao contrário, como poderiam ter acontecido, isto é, em relação com a sua essência. Diferentemente da história, que só diz respeito ao acontecimento, a poesia participa, como a filosofia, da generalidade da essência. Ela continua, no entanto, como em Platão, definida pela mimêsis [8], mas mimêsis possui nele um sentido cognitivo.[9] Não significa mais o ser menor da cópia, com relação ao original, mas antes a apresentação em imagens da própria essência das coisas. Aristóteles afirma, com efeito, em a Poética: “Nos agrada a visão das imagens, porque aprendemos ao olhá-las e deduzimos o que representa cada coisa; por exemplo, que esta figura é tal pessoa”[10]. O prazer desse reconhecimento não está na comparação da cópia em relação ao original, mas na compreensão dentro e pela imagem daquilo que ela deve representar. Da mesma forma, quando, em a Física, é dito que a arte “imita a natureza” ou “executa aquilo que a natureza não consegue realizar”[11], não se trata de duas afirmações diferentes, mas antes da expressão de um único e mesmo processo: imitar a natureza não é reproduzir a sua imagem, pois desse modo a arte mergulharia na futilidade denunciada por Pascal quando exclama: “Que futilidade a pintura que atrai a admiração pela semelhança das coisas das quais não se admiram os originais!”[12]; mas é o acabar, o rematar, isto é, levá-la ao parecer tirando-a da reserva na qual se compraz[13]. O que começa a emergir, quando lemos a Poética de Aristóteles à luz de sua Física, é o fato da arte poética pertencer a um outro modo de imaginação, distinto da imaginação meramente reprodutiva, não estando mais a mimêsis identificada com a simples reprodução, mas sim compreendida como um processo original de fenomenalização.
O espaço dado à Poética na definição sistemática que Aristóteles faz das disciplinas filosóficas permanece, no entanto, menor. Para Aristóteles, há com efeito uma classificação tripartida da ciência, da qual a lógica forma o órganon, o instrumento preliminar, entre ciência teorética (matemática, física, teologia), ciência prática e ciência poiética. A verdadeira ciência é a ciência teorética, contemplação da verdade e ciência desinteressada, que constitui a filosofia em sentido estrito. A ciência prática considera as ações do homem que não produzem qualquer obra externa ao agente e que têm como fim apenas a ação interna, a eupraxia. Confunde-se com a ética e a política. Mais que ciência, ela é phronèsis, prudência, saber não do imutável, mas do variável. Quanto à poética, ela é a ciência da produção, e pretende realizar uma obra externa ao agente, é essencialmente technè, saber fazer, arte no sentido amplo do termo. A esfera da poiesis é o campo onde técnicos, artesãos e artistas, produzem obras úteis ou não úteis, objetos ou mímicas de objetos. A reunião, no mesmo termo, de dois modos de arte, as artes úteis e o que nós, modernos, chamamos de belas-artes, já coloca um problema. O artesão, de acordo com Platão, não é um homem livre, já que deve conformar-se a um modelo que só o usuário decide, ao passo que o artista é, em princípio, um homem livre, que não participa da ordem econômica, mas sim da ordem política e ética, logo, da vida prática. A parte da Poética aristotélica que trata da arte, no sentido que hoje damos a esta palavra, não pertence à ciência teórica, isto é, à parte mais eminente da filosofia. É o que explica que a condenação platônica da arte reapareça várias vezes na cultura ocidental, especialmente durante a idade clássica, quando a imaginação foi condenada como uma “mestra de erro e falsidade”, conforme a famosa citação de Pascal.[14]



II. Arte e imaginação no idealismo alemão (Kant, Schiller, Hölderlin, Schelling)

É preciso esperar Kant e o idealismo alemão para que a imaginação seja reabilitada enquanto faculdade propriamente produtiva. Para Kant, é sumamente importante, conforme expôs nos cursos de antropologia que ministrou durante muitos anos na Universidade de Königsberg e que resolveu publicar em 1798, não confundir a imaginação enquanto invenção e a imaginação enquanto imitação. Logo é preciso diferenciar, dentro da facultas imaginandi, da faculdade imaginativa em geral, definida como faculdade das intuições fora da presença do objeto, uma imaginação produtiva que, enquanto faculdade de apresentação originária do objeto, ou exhibitio originaria, antecede a experiência, e uma imaginação reprodutiva que, enquanto faculdade de apresentação derivada ou exhibitio derivativa, lembra ao espírito uma intuição empírica que ele já teve anteriormente. É interessante observar que Kant relaciona à primeira forma de apresentação, isto é, à apresentação originária, as intuições puras do espaço e do tempo, sugerindo desse modo que a sensibilidade pura, isto é, essa faculdade que nos coloca em presença do fenômeno, é obra da imaginação produtiva.[15] Porém, esta é mais facilmente identificável na atividade artística do que no domínio do conhecimento.
            É justamente em a Crítica da faculdade de julgar, publicada alguns anos antes da Antropologia do ponto de vista pragmático, em 1791, que Kant, ao se situar no campo da estética, foi levado a dar um papel primordial à imaginação. Trata-se, para ele, de definir o Belo distinguindo-o do agradável, que constitui a matéria de uma satisfação, por certo imediata, porém apenas empírica, do útil, que se sustenta em uma finalidade externa ao objeto considerado, e até mesmo do perfeito, que implica a subordinação do objeto a um conceito já determinado de antemão. Mas se afastarmos o deleite que o objeto proporciona à sensibilidade, a utilidade, que pode apresentar para a vontade, e a perfeição, que permite seu conhecimento, o quê pode sobrar do objeto? Sobra o que Kant chama de sua forma, isto é, o seu próprio parecer, ao qual só temos acesso através do desinteresse. Esse conceito de forma (Form) não é apenas o oposto do conceito de matéria ou de conteúdo, assume também o significado mais específico de figura (Gestalt), que remete àquilo que, no objeto, constitui a sua estrutura organizadora, e de jogo (Spiel), jogo das figuras no espaço ou das sensações no tempo, que designa o próprio movimento do surgimento da coisa, o seu caráter meramente fenomenal.[16] O poder que, no homem, lhe permite acessar a fenomenalidade pura é precisamente a imaginação, cuja liberdade, “desenvolvendo-se, de algum modo, na contemplação da figura”[17], não está aqui limitada por algum fim e, assim, pode se abrir à livre beleza daquelas composições “que não representam nada, objeto algum, sob um conceito determinado”[18], e que são, para Kant, o próprio exemplo do Belo. A imaginação parece mesmo designar aqui um poder originário no homem, ao mesmo tempo receptivo e espontâneo, o de abrir para a dimensão não objetiva, a partir da qual algo pode se tornar objeto de conhecimento ou de desejo.
            Encontramos a mesma idéia no tocante não mais à teoria do Belo, mas sim à da arte. A verdadeira obra de arte, isto é, a obra de gênio, que consiste para Kant em uma faculdade produtiva inata, que é um dom natural no homem[19], escapa do mero juízo do gosto e não é suscetível de uma abordagem apenas conceitual. Pois a essência do gênio, o que Kant chama de “o princípio vivificante da alma” (Gemüt)[20], que constitui o foco unificador das diversas faculdades do homem, as move, as incentiva a entrar em um jogo recíproco e lhes dá o seu impulso, é o poder de representar idéias estéticas. Ora, Kant entende por idéia estética “uma representação da imaginação que dá muito o que pensar, sem que qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, lhe possa ser adequado”[21]. A faculdade aqui em jogo, ressalva Kant expressamente, é a imaginação produtiva que possui a potência para proporcionar uma forma sensível ao inteligível e que, dessa maneira, dá ao mesmo tempo o que pensar e o que ver. Enquanto “faculdade produtiva de conhecer”, ela se situa acima do entendimento que se revela incapaz de expressar através de conceitos toda a riqueza que lhe propicia uma imaginação realmente livre de seu jugo. Já na primeira edição da Crítica da razão pura (1781), Kant reconhecia à imaginação pura o papel capital de mediadora entre o entendimento e a sensibilidade, entre o conceito e a intuição, logo vendo nela uma faculdade que torna possível o conhecimento[22]. A imaginação na sua função transcendental é, de certo, ao mesmo tempo, receptividade e espontaneidade, no sentido que ela permite, desse modo, a apreensão dos fenômenos. Pois, imaginar, no sentido transcendental, isto é, enquanto o que constitui a condição de possibilidade de toda relação com os fenômenos, não consiste em formar uma ou outra imagem concreta, mas sim em abrir o campo de toda visibilidade. O mesmo acontece com a imaginação, que está na nascente da obra de arte e encarna o gênio que, na criação artística, projeta livremente sua obra, embora sujeitando-se às regras da natureza.
            Encontramos, pois, em Kant, a idéia de uma imaginação produtiva, através da qual o espírito por inteiro do homem se reúne em prol de uma livre criação artística que só é realmente genial por ser um dom da natureza, assim fugindo da jurisdição do entendimento. Schiller ainda acentuará a primazia admitida por Kant, da imaginação com relação ao entendimento, ao mostrar que é na e pela arte que o fenômeno aparece e que a natureza se revela. Pois, desde 1791, Schiller confessa ao seu amigo Kröner o entusiasmo que sente pela Crítica da faculdade de julgar, que acaba de ser publicada, e lhe anuncia o projeto de escrever um diálogo filosófico sobre o Belo, ao qual daria o título de Kallias. Tal projeto nunca foi levado a cabo, mas podemos dele ter uma idéia, através da correspondência que ambos mantiveram. É nas Kalliasbriefe (1793), as cartas nas quais Schiller expõe suas pesquisas a respeito do Belo, tomando como fio condutor a terceira Crítica kantiana, que ele é levado a colocar a imaginação no primeiro plano da sua filosofia da arte, enfatizando a objetividade do Belo, em oposição ao seu caráter meramente subjetivo em Kant. Para Schiller trata-se de pensar a objetividade sensível do Belo, de devolver, de certa forma, o belo à natureza, mas também de mostrar que é pela e na arte que a natureza se revela. Ele é então levado a retomar a teoria kantiana do gênio, pela qual o Belo fugia da subjetividade para aparecer como um dom da natureza. Indo mais longe que Kant, Schiller opera, assim, a reconciliação da sensibilidade e da racionalidade, da verdade e da arte. Para Schiller, a beleza da forma, que é obra da imaginação, é “livre exposição da verdade”, não da verdade lógica do entendimento, mas sim de uma verdade que transcende a abstração e que é a da própria vida[23]. O Belo não é nem objetivo, no sentido em que seria o correlato do conceito de entendimento, nem subjetivo, no sentido em que remeteria apenas ao acordo das faculdades; ele é o próprio ser, cuja aparição sob forma de imagem não é falso-semblante, mas antes o próprio ato da vida se pro-duzindo livremente.
            Nas suas Cartas sobre a educação estética do homem, publicadas em 1795, onde expõe “o resultado das suas investigações a respeito do Belo e da arte”,[24] Schiller trata de esclarecer os estreitos laços que unem a questão da arte à do destino do homem. Para ele, trata-se de questionar o dualismo kantiano da natureza e da liberdade, reivindicando uma outra antropologia, mais completa que a de Kant, que não dá o merecido espaço à sensibilidade[25]. No entanto, a época atual oferece o espetáculo de uma acirrada oposição entre desnaturação e natureza, entre perversão e selvageria[26], quando a Grécia, que Schiller invoca, apresenta, ao contrário, um modelo de concórdia com a natureza, a ser resgatada[27]. Desse modo, ele opõe ao homem grego, que tira a sua forma “da natureza que tudo reúne”, o homem moderno, que recebe a sua do “entendimento que tudo dissocia”[28]: pois, enquanto que a época moderna se caracteriza pelo abuso do entendimento e pela hostilidade para com a imaginação e os sentidos, os Gregos “filosofavam e imaginavam ao mesmo tempo”, isto é, criavam formas”[29], visto que pensamento e poesia eram parentes próximos, e a produção do Belo não era diferente da revelação do Verdadeiro. O paradoxo que Schiller revela é que essa mesma dissociação que caracteriza a modernidade é resultado da cultura e da arte: logo, também existe uma arte que nega a natureza e não apenas uma arte que une a ela. Por isso, trata-se para Schiller “de restabelecer na nossa natureza a totalidade que a arte destruiu, de restaurá-la através de uma arte superior”[30]. Esta arte, superior aos artifícios da cultura, é a “bela arte” que reabre, para nós modernos, fontes que permaneceram puras e límpidas, apesar da corrupção da civilização[31], e que abre novamente um caminho rumo à natureza. Para tanto, o artista deve se preservar das perversões de seu tempo, deve abandonar ao entendimento a esfera da realidade e a ela opor o ideal, que não é vã quimera, mas, ao contrário, o verdadeiro ser. Aí novamente, o artista deve ser capaz, através da sua imaginação produtiva, de transcender a experiência: “Quem que não se arrisca acima da realidade jamais irá conquistar a verdade”[32].
            Cabe, no entanto, a Hölderlin reconhecer à imaginação o seu verdadeiro estatuto. Kant acabou por minimizar o seu papel em proveito do entendimento, na segunda edição da Crítica da razão pura, publicada em 1787, e no § 57 da Crítica da faculdade de julgar, onde ele redefine a idéia estética, alinhando-a à idéia racional. Ao afirmar que os dois tipos de idéias possuem o seu princípio na razão, Kant parece desacreditar a primazia que antes reconhecia à imaginação produtiva. Quanto a Schiller, que não chegou a superar o dualismo kantiano da natureza e da liberdade, mas apenas o substituir por um novo dualismo, o da realidade e do ideal, ele procura, na última parte das Cartas sobre a educação estética do homem, desenvolver uma concepção racional da Beleza que propicie a reconciliação dialética dos opostos: “A natureza reúne tudo, o entendimento dissocia por toda parte; a razão de novo reúne”[33]. Mas ele se expõe ao perigo de ver na imaginação não mais um processo ontológico, mas uma mera “atividade” do sujeito, e de assim voltar para o ponto de vista subjetivo, que criticara com tanta veemência em Kant.
            Hölderlin, grande admirador de Schiller, vê, como este, em a Bildung, na formação da imagem, um processo ao mesmo tempo ontológico e humano. Como ele demonstra, em especial em um ensaio escrito no inverno de 1796-97, ao qual posteriormente deram o título de Über Religion (“Sobre a religião”)[34], a imagem é a figura concreta que contém o infinito e o entrega: é a doação imediata do infinito, enquanto que o conceito apenas o apresenta de forma mediata, através da remissão para outros conceitos e seu jogo dialético. A imagem permite a identidade imediata do tudo e do particular, pois, nas mitologias, a realidade surge sob o aspecto do livre jogo de figuras divinas que são, ao mesmo tempo, individualizadas e, no entanto, referidas à totalidade da qual cada uma apresenta um dos aspectos. É essa a única forma adequada de representar a realidade. Logo, não há outra experiência do infinito, a não ser no seu tornar-se imagem. Porém, a imagem só hospeda o infinito por um tempo, não para sempre, nem em geral, apenas agora e em particular. Tal imaginação produtiva não pode se autonomizar e precisa, continuamente, renovar-se na vida real para não correr o risco de hipostasiar as imagens da realidade que são assim produzidas.
            A partir daí, compreende-se em que consiste a verdadeira essência da imagem: ela dá a ver o invisível e o incognoscível, ao contrário da imagem-cópia, que é mera imitação parcial e unilateral do real. É por lidar com a própria essência das coisas que a poesia fala necessariamente por imagens. As imagens poéticas são, decerto, no sentido forte, imaginações, não fantasias ou ilusões, mas sim a colocação em imagem daquilo que nunca aparece como tal. Por isso, o conceito de imagem (Bild) palavra que retorna diversas vezes nos poemas de Hölderlin –, mais ainda que o de metáfora, de símbolo ou de alegoria, que todos supõem a re-presentação “figurada” de algo já dado, no sentido próprio, é capaz de dar conta não apenas do caráter poético da palavra humana, como também do processo ontológico, ele próprio poiesis.
            Ora, é na mesma época que se reúne, em torno dos irmãos Schlegel, o grupo de escritores e filósofos, do qual fazem parte, entre outros, Novalis e Schelling, que será a origem do lançamento da Athenaeum, revista publicada apenas entre 1708 e 1800, mas que causará grande impacto na vida intelectual e literária alemã. O projeto global deste romantismo de Iena é, em oposição ao classicismo, não o de imitar, mas de superar a Antiguidade, de operar a síntese do antigo e do moderno, de acabar com as oposições clássicas e, antes de tudo, com a que opõe, desde Platão, filosofia e poesia, como expressa Friedrich Schlegel, em um de seus fragmentos, também de 1797, que contém o esboço de todo o programa da Athenaeum: “Toda a história da poesia moderna é um comentário, seguido do breve texto da filosofia: toda arte deve se tornar ciência, e toda ciência se tornar arte; poesia e filosofia devem ser reunidas[35]. Nas suas Lições sobre a arte e a literatura, de 1801, Augusto Schlegel menciona Kant e Schelling, que acabara de publicar o Sistema do idealismo transcendental, no qual coloca a arte no topo do seu sistema e afirma que “é para a filosofia o que há de mais elevado”[36], idéia que encontraremos anos mais tarde na sua Filosofia da arte, que reúne conferências ministradas entre 1802 e 1805. Para Schelling, como para Hölderlin, a arte e a natureza estão numa “oposição harmônica”, aproveitando a expressão de Hölderlin, pois ambas representam um mesmo processo de produção, inconsciente na natureza, consciente na arte. O artista não tem de imitar as produções da natureza, mas sim a atividade criativa da natureza: logo, não deve imitar, mas criar. Ora, ao contrário da filosofia, a arte não supõe uma ruptura com a consciência ordinária: ela se dirige a todos os homens. Entretanto, arte e filosofia têm o mesmo objeto, que não é senão o absoluto. Mas a arte o apresenta de maneira real, ao passo que a filosofia o aborda de modo ideal. Assim como em Hölderlin, a imaginação que é a faculdade mestre da arte, pois a imaginação torna imediatamente acessível o que é pensado pela filosofia. E, de novo como em Hölderlin, a imaginação é, antes de tudo, a capacidade de dar uma forma real à idéia. Ora, essas formas reais não são senão aquelas dos deuses, pois, como afirma Schelling, “o que as Idéias são para a filosofia, os deuses são para a arte”[37]. Essa criação de formas divinas se dá na linguagem, no poema, e o conjunto destes poemas constitui a mitologia, onde Schelling vê “a condição primeira e a matéria de toda arte”[38]. Logo, o acesso ao mundo dos deuses não é propiciado nem pelo entendimento, nem pela razão, mas apenas pela imaginação. Mais do que falar em imagem, Schelling prefere falar em “símbolo”, porque esse termo representa um intermediário entre a ausência de significação da simples imagem e a pura significação do conceito[39]. Logo, para Schelling, toda arte verdadeira é simbólica. O que caracteriza o símbolo é que ele faz corpo com aquilo que significa, que é uma significação rica em imagens, ao contrário da alegoria, que remete a outra coisa, como o sinal. Ora, a mitologia é a origem da poesia como da filosofia, já que a filosofia, enquanto pensamento das idéias, supõe, em seu fundamento, as criações da mitologia da qual extrai a significação.
            Pode-se considerar que esta época, do primeiro romantismo, levou a cabo o projeto que esteve na origem de todo o pós-kantismo, ou seja, o cumprimento do platonismo, mas, no entanto, não no sentido pretendido por Fichte e Hegel, isto é, a acessão da filosofia ao estatuto de ciência e o abandono do seu nome grego de simples amor pelo saber[40], mas com Hölderlin e Schelling, no sentido oposto, de um retorno ao que foi a própria origem do filosofar e da dominação da lógica que ele promoveu: o muthos, e a imaginação criativa que ele implica.



III. Arte e verdade na perspectiva fenomenológica (Husserl, Heidegger, Gadamer, Merleau-Ponty)


Enquanto a filosofia ficou exclusivamente regida pelo ideal da cientificidade, como ainda é o caso em Hegel, a arte foi relegada à posição subordinada em relação a esta. Mas tal situação começou a mudar a partir do momento em que coube à filosofia não mais oferecer uma explicação do mundo, mas apenas “reaprender a vê-lo”, de acordo com a bela fórmula de Merleau-Ponty, no prefácio da Fenomenologia da percepção. Por certo, não encontramos no fundador da fenomenologia, que foi matemático e lógico antes de se tornar filósofo, qualquer análise sistemática da arte. Resta que Husserl, ao menos uma vez, em uma carta a Hofmannsthal[41], afirmou o estreito parentesco do olhar fenomenológico com o olhar estético. O que une essas atitudes, embora divergentes, já que uma é busca do gozo, quando a outra quer o conhecimento, é a estrita exclusão, que caracteriza ambas, de qualquer posicionamento existencial, quer proceda do intelecto, do sentimento ou da vontade. Pois, insiste Husserl, trata-se para a arte de alcançar a “pureza” estética, afastando-se ao máximo da “verdade natural” e do realismo, bem como se trata para a fenomenologia de questionar qualquer ser e qualquer conhecimento preexistentes, para elucidar o seu sentido imanente. Mas se a epokhè deve ser implementada para resolver este enigma que é o conhecimento, que sem isso permaneceria no mistério da inexplicável concordância do fora e do dentro, do espírito e do mundo, e se essa implementação requer uma verdadeira ascese e uma saída progressiva da atitude natural, a arte, pelo contrário, nos a apresenta de saída como acabada. A obra de arte, decerto, possui essa virtude, de nos “transportar” no estado de abstenção com relação a qualquer posição de existência, até mesmo de nos “coagir” para a exclusão. Pela sua única existência, ela nos arranca da atitude natural e da posição de ser que esta continuamente acarreta, para nos colocar em presença do puro fenômeno. O fenômeno puro – a “própria coisa” para a qual a fenomenologia nos conclama a voltar – não se confunde, de modo algum, com os dados imediatos da preocupação ou com os conteúdos da experiência prática cotidiana, mas, ao contrário, só se revela na sua “exclusão” ou “neutralização”, e, como ressalta Heidegger no início de Sein und Zeit, é mesmo porque os fenômenos não estão dados de início, que precisamos de uma fenomenologia[42]. Pois a tarefa da fenomenologia “não é coisa tão trivial, como se bastasse ver, abrir os olhos”[43]: ao contrário, trata-se de exercitar a visão a se ater estritamente ao que aparece, sem passagem ao além, sem intuito transcendente para o além-mundo da coisa-em-si, que sempre pressupõem, por serem submetidas à dominação do entendimento objetivante, a “teoria” e a “prática”, ao contrário da filosofia e da arte.
            Que a arte tem a virtude de nos colocar diretamente em relação com a verdade, o que a filosofia se dá como tarefa alcançar, é o que Heidegger também procurará mostrar na análise que empreende em 1935 e 1936, em várias versões de uma conferência sobre “A origem da obra de arte”. A concepção heideggeriana da arte rompe radicalmente com a estética em geral, que entende a arte e a beleza de maneira subjetiva, e participa, de acordo com ele, da metafísica moderna da subjetividade. A obra de arte não pode ser entendida de maneira metafísica, como a unidade de uma matéria sensível e de um significado espiritual. Também não é simples imitação de um objeto preexistente, mas sim a revelação de uma verdade que permanece oculta no cotidiano, como mostra o exemplo dado por Heidegger de um quadro de Van Gogh, representando um par de sapatos, que faz aparecer, na sua verdade, o duro mundo do camponês que os calçou[44]. O que caracteriza a obra de arte e, conseqüentemente, a distingue radicalmente de uma coisa ou de um simples produto é que ela tem a capacidade de fazer a verdade aparecer. Não se pode mais considerar a arte como uma imitação da natureza, mas ao contrário como aquilo em que o mundo se abre de maneira primordial. É o que Heidegger evidencia através do exemplo de uma obra de arte não figurativa, um templo grego[45], o qual não sendo à imagem de nada, simplesmente instala um mundo dentro do qual a existência humana se torna possível.
       Mas essa abertura de um mundo é, ao mesmo tempo, o surgimento de uma terra. Heidegger explica que o que distingue a obra do utensílio é que esse último se utiliza do material que o constitui, de modo que ele desaparece na utilidade, ao passo que no caso da obra, o material não desaparece, mas ao contrário se mostra pela primeira vez. Ora, o que é assim pro-duzido, no sentido de trazer para o aberto, não é o que chamamos de “material”, e que necessariamente concebemos como aquilo que está na espera de uma forma, mas, ao contrário, aquilo que resiste a qualquer tentativa de penetração e permanece impermeável a qualquer abertura, bem como a qualquer compreensão: a terra enquanto se encerra, por essência, em si mesma[46]. A instalação do mundo e a pro-dução da terra são inseparáveis uma da outra, bem como a clareira e a ocultação (Lichtung und Verbergung), e o conflito que se trava na obra de arte entre mundo e terra depende daquele que tem lugar na essência da verdade, entendida não mais como adequação, mas como desvelamento. A arte é assim definida como pôr-se em obra da verdade[47]. Mas a diferença entre o conflito do mundo e da terra, enquanto essência da arte, e o conflito original entre clareira e ocultação, enquanto essência da verdade, pressupõe que, ao lado da arte, existam outras maneiras para a verdade advir. Heidegger cita várias: a instauração do Estado, “a proximidade daquilo que não é mais apenas um ente, mas o mais ente os entes”, “o sacrifício essencial”, o questionamento do pensamento[48]: a arte, a política, o pensamento, o sacrifício, a religião – mas não a ciência, que é “sempre a exploração de uma região já aberta da verdade”[49] – são maneiras originais para a verdade advir. Mas porque a verdade tem de se estabelecer a si própria (sich einrichten) dentro do que é, para se tornar verdade – a verdade não existe em si anteriormente ao seu pôr-se em obra – há na essência da verdade uma atração em direção à obra, de sorte que a arte é uma possibilidade insigne para a verdade advir. Há um privilégio relativo da arte sobre as demais maneiras, também originais, de a verdade advir.
No fim da versão de 1935 da mesma conferência, Heidegger declara que a meditação sobre a arte começou com Platão e Aristóteles e que desde então “toda teoria da arte e toda estética são sujeitas a uma notável fatalidade[50]. Por ter sido compreendida, desde o início, como algo fabricado, a obra de arte sempre foi considerada quer como alegoria, no sentido em que haveria nela outra coisa (allo agoreuei) além de um material posto em forma, quer como símbolo, no sentido em que algo teria sido acrescentado (symballei) à coisa fabricada[51]. Conceber a obra de arte como produto alegórico ou simbólico significa compreendê-la como sendo constituída de duas partes diferentes: a matéria e a forma, ou a forma sensível e a idéia. À medida que a arte é compreendida dessa forma, ela é definida como (re)presentação do supra-sensível no sensível, e a lógica aqui empregada é a da soma. Aliás, na metafísica, o ser humano também é entendido através do mesmo modelo, como alma ou espírito acrescentado a um corpo, e o mesmo ocorre com a linguagem, compreendida como a adjunção de um significado a um material fonético. A idéia diretriz de uma tal concepção metafísica é que o elemento “espiritual” pode ser (re)presentado no elemento material. A idéia de uma possível (re)presentação do que não é material ou sensível não caracteriza apenas a estética do Belo, também está também presente na estética do sublime, pelo fato que o sublime ainda é definido negativamente, com relação a uma possível apresentação daquilo que não é apresentável (darstellbar)[52]. Para Heidegger, todos os tipos de estética são, conseqüentemente, incapazes de compreender o que uma obra de arte realmente é, já que a obra não (re)presenta nada, não é nem uma representação de outra coisa, nem a apresentação do inapresentável. Ela não tem relação com a presença dada, mas, ao contrário, com o devir ou o advir da verdade, com a vinda à presença de todas as coisas. É por isso que Heidegger enfatiza o seu caráter inicial: a obra de arte é um começo (Anfang), uma instauração (Stiftung), uma criação (Schaffen).
Encontramos a mesma crítica da estética em Gadamer, que trata de mostrar, na sua obra maior, Verdade e método, publicada em 1960, que a experiência artística constitui a experiência de uma verdade que supera fundamentalmente o domínio do conhecimento metódico, cujo modelo é extraído das ciências da natureza. De acordo com Gadamer, o kantismo é que assinou o declínio da tradição humanista, ao reduzir o senso comum e o gosto a uma função meramente estética e subjetiva e ao desabonar qualquer conhecimento teórico além daquele que nos proporcionam as ciências da natureza[53]. O cerne da primeira parte de Verdade e método consiste em uma “crítica da abstração da consciência estética”[54], e esse título deixa nitidamente entender que para Gadamer a criação da estética é apenas uma abstração que precisa ser des-construída, no sentido heideggeriano do termo, a fim de conquistar uma compreensão mais adequada da experiência artística. Dá-se como meta estabelecer, contra a subjetivação da estética que reina sobre o pensamento moderno desde Kant, que a arte deve ser pensada como uma mimêsis e como uma experiência de reconhecimento da verdade. Para Gadamer, a arte não é reprodução de um real preexistente, mas sim Darstellung, apresentação verídica daquilo que é. Ora, é essencial, para vincular arte e verdade, fazer a diferença entre a cópia (Abbild) e a imagem (Bild). A cópia visa a sua própria eliminação, enquanto mera reprodução de um original. Quanto à imagem, ela não é um meio no intuito de um fim e não se limita a desviar a atenção dela mesma para o original. É nesse sentido que Gadamer declara que a não-distinção entre representação e representado permanece como um traço essencial da experiência da imagem. É mesmo para garantir o ser daquilo que nela está representado, que a imagem afirma o seu próprio ser. Logo, a relação entre imagem e original não é mais de mão única, como no caso da cópia, já que só há verdadeiramente imagem se o original se apresentar “em pessoa” só na imagem. Pois tal apresentação lhe outorga, por assim dizer, um acréscimo de ser. Gadamer vê, neste significado ontológico da imagem, o motivo fundamental da recusa, pelos Padres da Igreja, da proibição judaica da representação do divino em imagem: pois, para essa recusa, basearam-se na idéia neoplatônica de emanação, que rompe os limites da ontologia grega da substância e fundamenta, sobre a idéia de uma superabundância do emanado que não diminui, o ser daquilo de onde emana o status ontológico positivo da imagem, que permitiu o desenvolvimento das artes plásticas no Ocidente. À imagem é então reconhecida a função ontológica de “suplência”, isto é, da representação (Repräsentation) no sentido de Vertretung, substituição. Nesta perspectiva, a imagem possui uma autonomia que recai, por conseqüência, no próprio modelo. Pois é somente através da imagem que o modelo torna-se realmente o original. Existe aí um paradoxo: é somente à imagem que o modelo deve o fato de chegar à figuração e, entretanto, a imagem não é senão a manifestação do modelo. É o que a imagem religiosa, mais ainda do que a imagem profana, valoriza plenamente. Decerto, é somente através da palavra ou da imagem que a manifestação do divino toma corpo, ao contrário das imagens dos personagens profanos, por exemplo, a imagem do soberano e a dos heróis. Logo, a significação da imagem religiosa é exemplar, pois manifesta de maneira incontestável que a imagem não é uma cópia, mas sim que está vinculada, de maneira ontológica, ao ser que ela leva para a imagem[55]. Parece então que, do ponto de vista ontológico, e em oposição à perspectiva subjetivista da estética moderna, a arte está numa relação essencial com o fenômeno religioso ou cultual. Vemos então que a imagem é um processo ontológico que não pode ser compreendido se fizermos dela o objeto de uma consciência estética e que somente se esclarece na sua estrutura ontológica a partir do conceito de Darstellung, de representação. E isso também vale, como salienta Gadamer, para as formas de arte que remetem a um modelo determinado, que não são menos imagens verdadeiras, no sentido definido acima. Foi tomando como fio condutor a exigência, interna à obra de arte, da Darstellung, que Gadamer foi levado a reabilitar determinadas expressões artísticas, consideradas em posição marginal, na estética moderna, tais como o retrato, o poema dedicatório e, no teatro, a alusão aos fatos e personagens da época. No retrato, por exemplo, a referência ao modelo não deve ser entendida como re-produção ou re-presentação, mas sim como primeira apresentação daquilo que não se oferece ao olhar corriqueiro, ou seja, o ser ou a essência do modelo. Aliás, foi nesse sentido que Heidegger pôde definir a obra de arte como das seiende Sein (o ser ente), na medida em que a arte leva o ser a aparecer no ente, que ela é “pôr-se em obra da verdade”[56].
É numa estreita proximidade às concepções heideggerianas da arte que permanece Merleau-Ponty quando, no seu último texto, O olho e o espírito, que só seria publicado após o seu falecimento, em 1961, procura mostrar que a arte e, em especial a pintura, é a única atividade suscetível de nos recolocar sobre o solo do mundo sensível, deste mundo da vida do qual a ciência, enquanto pensamento do objeto em geral, nos afastou desde o início. Somente através da arte que é possível abrir-se à estranheza das coisas, que só se revela quando escapam de nossa apreensão. O artista experimenta esta inversão dos papéis entre nós e as coisas, o que explica, como observa Merleau-Ponty, depois de Valery, o fato de tantos pintores terem dito que as coisas é que olham para eles[57]. É este olhar das coisas sobre nós que as torna “outras”, que faz com que não possam mais se inscrever, a título de instrumentos, no horizonte das nossas preocupações, nem aparecer como o simples correlato dos nossos objetivos práticos, e é dessa “alteridade” da coisa, emergindo do objeto familiar, que o pintor tenta se apossar, obcecado pela súbita e inapreensível proximidade de um mundo não mais submetido a seus cálculos. Não pinta ele, como proclama André Marchand citando Merleau-Ponty[58], “para surgir”, “submerso”, “soterrado” interiormente pela potência do visível? É ainda Merleau-Ponty quem diz da visão do pintor que ela é um “nascimento continuado”[59], e toda a força da análise que Heidegger dedica à obra de arte vem de que essa não é mais encarada como algo em segundo lugar, com relação às coisas preexistentes reais, mas, ao contrário, como aquilo que, sozinho, faz um mundo advir: “Tudo aqui é invertido”, escreve Heidegger na primeira versão de A origem da obra de arte, “é o templo, no seu porte, que, pela primeira vez, dá às coisas o rosto através do qual se tornarão visíveis, no futuro e, por um tempo, assim permanecerão”[60].
Pois a visão “pura” do artista, que só se sacia com o “mundo das aparências” fazendo a economia do “mundo em-si” da crença ingênua, é o “recurso que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir, de dentro, à fissão do Ser” do qual fala Merleau-Ponty.[61] De um tal olhar pré-humano, a pintura de Cézanne decerto proporciona um impressionante vislumbre, por deixar suspensos os hábitos – “humanos, demasiado humanos” – através dos quais enxergamos todas as coisas, para revelar “a ordem nascente” da natureza, este “mundo sem familiaridade” que se situa “aquém de qualquer humanidade constituída”[62], e sobre o fundamento mudo do qual se edificam toda cultura e todo saber regional do ente. Se Cézanne não pinta nada senão a “deflagração do ser”[63] – esta “maravilha entre as maravilhas: Que o ente é[64] – que a filosofia, na sua dimensão completamente original, que a distingue de qualquer ciência positiva[65], tem como tarefa de pensar, porque estranhar então que o pensador e o artista se juntem na mesma epokhè, na mesma abstenção com relação à doxa, e compartilhem do mesmo “mundo invertido” que o jovem Hegel reservava ao esoterismo filosófico[66]?





* Artigo publicado em: Arte no pensamento. Org. Fernando Pessoa. Vila Velha: Museu Vale, 2006.
** Professora Emérita da Université de Nice – Sophia Antipolis.
[1]Para a análise da mimêsis aqui apresentada, ver M. Heidegger, Nietzsche tomo I, “La volonté de puissance en tant qu’art”, Gallimard, 1971, p. 156 sq. e E. Fink, Le jeu comme symbole du monde, capítulo II, (L’interprétation métaphysique du jeu), Ed. de Minuit, 1966, p. 89 sq.
[2] Platon, A República, livro X, 596 c.
[3]Ibid., livro X, 596 d-e.
[4]Ibid, livro X, 597 e.
[5] Ibid, livro X, 598 b.
[6] Platão, Sofista, 242 c.
[7]Aristóteles. Poética, 1451 b. Observemos que Aristóteles entende por poesia menos a poesia lírica de Píndaro ou Safo do que a epopéia, a comédia e, principalmente, a tragédia, pois não existe poein sem invenção nem composição de uma fábula, de um mythos: “O poeta deve ser artesão de fábulas antes que artesão de versos, já que é poeta através da imitação e que imita as ações” (1451 b).
[8]Ibid, 1447 a.
[9] Cf. H.-G. Gadamer Vérité et méthode. Paris: Seuil, 1996, p. 131.
[10] Ibid, 1448 b.
[11] Aristóteles. Física B 8, 199 a.
[12] B. Pascal. Pensamentos, 40.
[13] Ver a esse respeito a interpretação “fenomenológica” da mimêsis de E. Martineau, “Mimesis dans la Poétique”. In: Revue de Métaphysique et de Morale, 1976.
[14]B. Pascal. Pensamentos, 82
[15]E. Kant. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 1970, § 28, p. 47.
[16] E. Kant. Critique de la faculté de juger. Paris: Vrin, 1974, § 14, p. 68 (a seguir denominado CFJ). Inspiro-me aqui da observação-análise de J. Taminiaux em La Nostalgie de la Grèce à l’aube de l'idéalisme allemand, Nijhoff, La Haye, 1967.
[17] Ibid, § 16, p. 71.
[18] Ibid.
[19] Ibid, § 46, p. 138.
[20] Ibid, § 49, p. 143. A palavra Gemüt permanece intraduzível em francês: significa literalmente o conjunto dos "humores" (o Mut alemão possui a mesma raiz que o inglês mood) e remete ao lado “afetivo” da mente.
[21] Ibid.
[22] E. Kant, Critique de la raison pure, p. 730 (A 124): “Possuímos uma imaginação, enquanto faculdade fundamental da alma humana, que serve, a priori, de princípio para qualquer conhecimento”.
[23] Schiller. Kallias, carta de 28 de fevereiro 1793, III, p. 112-113.
[24] F. Schiller. Lettres sur l'éducation esthétique de l'homme. Paris: Aubier, 1943, p. 65 (primeira carta).
[25] Ibid, p. 89 (quarta carta).
[26] Ibid, p. 99 (quinta carta).
[27] Ibid, p. 103 (sexta carta).
[28] Ibid, p. 105 (sexta carta).
[29] Ibid, p. 103 (sexta carta).
[30] Ibid, p. 119 (sexta carta).
[31] Ibid, p. 133 (nona carta).
[32] Ibid, p. 155 (décima carta).
[33] Ibid, p. 235 (décima oitava carta).
[34] Hölderlin. Oeuvre. Paris: Pléiade, Gallimard, 1967, p. 690-691.
[35] F. Schlegel. Fragment critique 115, citado por Ph. Lacoue-Labarthe et J.-L. Nancy, L’absolu litttéraire, Paris: Seuil, 1978, p. 95.
[36] F. W. Schelling, Système de l’idéalisme transcendantal, Peters, Bruxelles, 1978, p. 56.
[37] F. W. Schelling. Philosophie de l’art. Millon, Grenoble, 1999, p. 84.
[38] Ibid, p. 97.
[39] Ibid, p. 103.
[40] Cf. J. G. Fichte, “Sur le concept de la doctrine de la science (1794) ”, in : Essais philosophiques choisis (1794-1797). Paris: Vrin, 1984, p. 36: “[a filosofia], se tivesse se tornado uma ciência, abandonaria, não sem motivo, um nome que levou até aqui por modéstia nada excessiva, o nome de uma predileção, de um amor por algo, de um diletantismo”; G. W. F. Hegel, Préface à la phénoménologie de l’esprit, Paris, Aubier-Montaigne, 1966, p. 21: “Contribuir a aproximar a filosofia da forma da ciência – para que possa remover seu nome de amor do saber e se tornar saber efetivo – isso é o que me propus”.
[41] Ver a carta de Husserl a Hofmannsthal, de 12 de janeiro de 1907, La part de l’œil, “Art et phénoménologie, n° 7, Bruxelles, 1991, p. 13.
[42] M. Heidegger. Sein und Zeit. Tübingen: Niemeyer, 1963, p. 36.
[43] E. Husserl. L’idée de la phénoménologie. Paris: PUF, 1985, p. 114.
[44] M. Heidegger. L’origine de l’œuvre d’art. Chemins qui ne mènent nulle part. Paris: Gallimard, 1962, p. 33.
[45] Ibid, p. 44.
[46] Ibid, p. 51.
[47] Ibid, p. 80.
[48] Chemins., Op. cit., p. 69 (trad. mod.)
[49] Ibid.
[50] Cf. M. Heidegger. De l'origine de l'œuvre d'art, première version inédite (1935), texto alemão, inédito e tradução francesa, de E. Martineau, Paris, Authentica, 1987, p. 53. Essa publicação não obteve o acordo de Klostermann, editora alemã das obras completas de Heidegger e, portanto, não está disponível nas livrarias. Existe um esboço, do mesmo ano, antecedendo a conferência de novembro de 1935.
[51] Ibid.
[52] O próprio Kant define o sublime pela impossibilidade da natureza promover uma representação (Darstellung) das idéias (Cf. Critique de la faculté de juger, § 29, Observação geral, sobre a exposição dos juízos estéticos reflexivos).
[53] H.-G. Gadamer. Vérité et méthode. Paris : Seuil, 1996, p. 58 (47).
[54] Ibid, p. 106 (94).
[55] Vérité et Méthode. Op. cit., p. 161 (147-148). Cf. F. Dastur, Esthétique et herméneutique selon Gadamer. A la naissance des choses. Op. cit., p. 85 sq.
[56] Cf. M. Heidegger. Introduction à la métaphysique. Paris: PUF, 1958, p. 173.
[57] M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1964, p. 31.
[58] Ibid, p. 31. A André Marchand que pensa que “o pintor deve ser trespassado pelo universo e não querer trespassá-lo” (ibid.), reforça Henri Matisse, para quem “o artista incorpora, assimila, por etapas, o mundo externo, até que o objeto que ele está desenhando se torne como uma parte dele mesmo”, levando-o a esta afirmação: “O desenho é a possessão. A cada traço deve corresponder um outro, que faça contrapeso, da mesma forma que abraçamos, que possuímos com os dois braços. A vontade de possessão é mais ou menos forte conforme os seres, há quem deseje brandamente” (op. cit., p. 322). Não se pode descrever melhor esta relação de abraço do mundo, da qual fala Merleau-Ponty, nem sugerir melhor o duplo sentido, ativo e passivo, de toda “possessão”.
[59] Ibid, p. 32.
[60] M. Heidegger. De l’origine de l’œuvre d’art, Première version (1935). Trad. Emmanuel Martineau, Edição bilingüe, Authentica 1987, p. 27.
[61] M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit. Paris: Gallimard 1964, p. 81.
[62] M. Merleau-Ponty. “Le doute de Cézanne”, in : Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966, p. 25 et 28.
[63] L’œil et l’esprit. Op. cit., p. 65
[64] M. Heidegger. “Qu’est-ce que la métaphysique? ”, in: Questions I. Paris: Gallimard, 1968, p. 78.
[65] L’idée de la phénoménologie. Op. cit., p. 48.
[66] G. W. F. Hegel. L’essence de la critique philosophique (1802). Paris: Vrin, 1986, p. 94-95: “A filosofia é, por natureza, algo esotérico que não é feito para o vulgar, nem para ser colocado ao alcance do vulgar; só é filosofia na medida em que está precisamente oposta ao entendimento e, por isso mesmo, mais ainda, ao senso comum humano, sob o qual entendemos a limitação no tempo e no espaço de uma raça de homens; com relação a esse senso comum, o mundo da filosofia é, em si e para si, um mundo invertido” (tradução alterada).

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