ARTE NO PENSAMENTO*
Françoise Dastur**
Introdução
Considera-se habitualmente
que a tradição ocidental de pensamento encontra a sua origem na oposição entre muthos e lógos, que coincidiu com
o nascimento da filosofia em Platão, e está na origem do racionalismo moderno.
Com efeito, Platão é quem, ao mesmo tempo, dá à palavra philosophia o seu sentido forte de amor pela sabedoria e de busca
da verdade, e quem expulsa os poetas da sua Cidade ideal, por enxergar neles
produtores de simulacros, imitações muito distantes da verdade e,
conseqüentemente, enganosas. O gesto platônico consagra a separação da
imaginação e da razão, da arte e do pensamento. Isso explica por que, durante
muito tempo, na tradição ocidental, a arte ficou mantida em posição subordinada,
com relação à filosofia e às ciências.
A bem da verdade, vemos surgir, na
época das Luzes, uma nova disciplina, a estética, onde a arte retoma seu lugar
dentro da filosofia, como atesta a primeira parte da terceira Crítica de Kant. Entretanto, esta ciência
da sensibilidade, que é a estética, continua sendo uma teoria do sujeito
autônomo, na qual a arte permanece desprovida de qualquer valor de
conhecimento.
Apenas com o primeiro romantismo
alemão, e em especial com Schelling, um de seus integrantes, é que vemos surgir
a idéia de uma identidade e, assim, de uma igualdade de status, entre a arte e a filosofia. O que assim está sendo,
primordialmente, preparado, com a reavaliação da arte iniciada por Hegel,
dentro do que ele, no entanto, ainda chama de “Estética”, é uma crítica da
subjetivação da arte, que podemos ver se desenvolvendo na esteira do movimento
fenomenológico inaugurado por Husserl, de início com Heidegger, que define a
arte enquanto implementação da verdade e, a seguir, com Gadamer, que fundamenta
toda a sua interpretação da obra de arte na crítica da consciência estética. É
nesta mesma perspectiva que devemos situar a fenomenologia da arte de
Merleau-Ponty, da qual se pode dizer que põe fim à antiga antinomia platônica
entre arte e filosofia.
I.
Arte e imitação na antiguidade grega (Platão e Aristóteles)
O que cabe esclarecer, em primeiro
lugar, são os motivos que estão na origem da condenação platônica da poesia,
pois isto nos dá a oportunidade de elucidar o próprio sentido dessa palavra. Poiêsis não significa apenas fazer, no
sentido de fabricar e produzir, mas também a criação poética no sentido
específico: no próprio termo grego há um duplo sentido significativo, à medida
que ele reúne semanticamente uma eminente espécie da produção com a produção em
sentido geral. Podemos ver aí o sinal de uma preeminência da arte da palavra
sobre todas as demais artes da Grécia, pois é esta arte, e nenhuma outra, que
leva o nome de “criação”: fazer algo existir, pelo único poder das palavras,
decerto constitui, para os gregos, o modelo eminente de toda “produção” como
tal. Mas esse eminente significado da poiêsis
também coincide com aquilo que Platão chama de mimêsis e que costuma ser traduzido por “imitação”: a produção no
sentido eminente (produção apenas através da palavra) também é produção de
simples imitações, de meras aparências, de imagens, com o auxílio, é verdade,
do material mais dúctil que seja, já que se trata do que Aristóteles chama
justamente de phônê sêmantikê, o som
que significa, isto é, o próprio idioma.
Ora, para Platão, a mimêsis é a essência de toda arte, e não
apenas daquilo que mais tarde chamariam de belas-artes: todo artesão já é, de
certa forma, um imitador[1], já
que, para fabricar quer uma cama, quer uma mesa, ele deve dirigir o seu olhar
para a idéia de cama ou de mesa, pois, como afirma em a República, “nenhum artesão jamais produz a própria idéia”[2].
Quanto ao artesão capaz de produzir sozinho o que nenhum outro seria capaz de
fazer, esse artesão que produz tudo sem exceção, esse sofista por excelência,
que é o pintor ou o poeta, ele realmente existe, embora a sua produção seja de
um tipo especial: ele não fabrica, mas faz aparecer as coisas à semelhança
daquele que pro-duz, em um espelho, a totalidade das coisas, apenas apresentando-a
de todos os lados[3].
O poeta aqui é assimilado ao pintor, ao produtor de imagens-entes, de
simulacros. Mas esse produtor capaz de produzir o todo, na verdade, produz
apenas o nada, pois a imagem do espelho é a imagem de uma imagem, é mimêsis mimêseos. Decerto, o homem não
possui o poder de produzir no original, de fazer aquilo que é, mas apenas de
produzir cópias. Na hierarquia dos produtores, o mimêtes distingue-se do dêmiourgos
— aquele que trabalha para o público,
o dêmos — pelo fato de ser “o autor
de uma produção distante da natureza em três graus”[4].
Afinal,
qual a essência da mimêsis? É menos a
reprodução, no sentido da imitação naturalista da realidade, do que um modo subordinado de produção. De fato, para
Platão “a imitação é muito afastada da verdade”[5], ela
está distante da idéia, com a qual apenas o filósofo quer lidar. Logo, a
condenação da poesia, a subordinação da arte à verdade, ocorrem em nome da
“idéia” que apenas um puro olhar teórico é capaz de enxergar, que só um lógos independente das imagens pode
expressar com legitimidade. A filosofia começa onde, como ensina Platão em o Sofista , se deixa de “contar histórias” (mython tina
diêgeisthai).[6]
Como
explicar o severo juízo de Platão sobre a poesia? O próprio Platão, genial
escritor dos diálogos, é poeta: não reza certa tradição que ele se entregava à
poesia antes de conhecer Sócrates? Aliás, em outros diálogos, ele nos apresenta
uma imagem bem diferente do poeta, não a de um corruptor de jovens espíritos,
mas, ao contrário, a de um ser inspirado pelos deuses, como no pequeno diálogo
intitulado Ion, nome de um rapsodo
com quem conversa Sócrates. Da mesma forma, em o Ménon , Platão afirma que os adivinhos e os
poetas muitas vezes dizem a verdade, porém sem nada conhecer daquilo que falam
(99 b). E em o Fedro, Sócrates faz o
elogio do delírio, da mania, que é o
efeito de um favor divino, e sem o qual não há boa poesia (245 a ). Resta que Platão
desacredita a arte, e em especial a poesia, com relação à filosofia: o poeta,
enquanto inspirado pelos deuses, não sabe o que faz e logo permanece no
não-saber. Portanto, a distância entre poesia, arte e filosofia continua
intransponível.
A
história é outra com Aristóteles, que dedicou um tratado à Poética e, dessa forma, outorga um espaço à poesia na própria
filosofia. Em vez de, como Platão, enxergar na poesia o resultado de uma
inspiração oriunda dos deuses e um não-saber, Aristóteles se propõe, ao
contrário, mostrar que a poesia atende a regras, que ela é o produto de uma technè, um saber fazer. Por isso,
ele não hesita em afirmar que “a poesia é mais filosófica e de um tipo mais
elevado que a história, pois a poesia conta mais o geral, e a história, o
específico”.[7] A
poesia, em vez de contar as coisas tal como efetivamente aconteceram, dando
espaço ao acidental, as retrata, ao contrário, como poderiam ter acontecido,
isto é, em relação com a sua essência. Diferentemente da história, que só diz respeito ao acontecimento,
a poesia participa, como a filosofia, da generalidade da essência. Ela
continua, no entanto, como em Platão, definida pela mimêsis [8], mas mimêsis possui nele um sentido cognitivo.[9] Não
significa mais o ser menor da cópia, com relação ao original, mas antes a
apresentação em imagens da própria essência das coisas. Aristóteles afirma, com
efeito, em a Poética : “Nos agrada a
visão das imagens, porque aprendemos ao olhá-las e deduzimos o que representa
cada coisa; por exemplo, que esta figura é tal pessoa”[10]. O
prazer desse reconhecimento não está na comparação da cópia em relação ao
original, mas na compreensão dentro e
pela imagem daquilo que ela deve
representar. Da mesma forma, quando, em a Física , é dito que a arte “imita a natureza”
ou “executa aquilo que a natureza não consegue realizar”[11], não se
trata de duas afirmações diferentes, mas antes da expressão de um único e mesmo
processo: imitar a natureza não é reproduzir a sua imagem, pois desse modo a
arte mergulharia na futilidade denunciada por Pascal quando exclama: “Que
futilidade a pintura que atrai a admiração pela semelhança das coisas das quais
não se admiram os originais!”[12]; mas é o
acabar, o rematar, isto é, levá-la ao parecer tirando-a da reserva na qual se
compraz[13]. O que
começa a emergir, quando lemos a Poética
de Aristóteles à luz de sua Física, é
o fato da arte poética pertencer a um outro modo de imaginação, distinto da
imaginação meramente reprodutiva, não estando mais a mimêsis identificada com a simples reprodução, mas sim compreendida
como um processo original de fenomenalização.
O espaço
dado à Poética na definição sistemática
que Aristóteles faz das disciplinas filosóficas permanece, no entanto, menor.
Para Aristóteles, há com efeito uma classificação tripartida da ciência, da
qual a lógica forma o órganon, o
instrumento preliminar, entre ciência teorética (matemática, física, teologia),
ciência prática e ciência poiética. A verdadeira ciência é a ciência teorética,
contemplação da verdade e ciência desinteressada, que constitui a filosofia em sentido estrito. A ciência
prática considera as ações do homem que não produzem qualquer obra externa ao
agente e que têm como fim apenas a ação interna, a eupraxia. Confunde-se com a ética e a política. Mais que ciência,
ela é phronèsis, prudência, saber não
do imutável, mas do variável. Quanto à poética, ela é a ciência da produção, e pretende
realizar uma obra externa ao agente, é essencialmente technè, saber fazer,
arte no sentido amplo do termo. A esfera da poiesis
é o campo onde técnicos, artesãos e artistas, produzem obras úteis ou não
úteis, objetos ou mímicas de objetos. A reunião, no mesmo termo, de dois modos
de arte, as artes úteis e o que nós, modernos, chamamos de belas-artes, já
coloca um problema. O artesão, de acordo com Platão, não é um homem livre, já
que deve conformar-se a um modelo que só o usuário decide, ao passo que o
artista é, em princípio, um homem livre, que não participa da ordem econômica,
mas sim da ordem política e ética, logo, da vida prática. A parte da Poética aristotélica que trata da arte,
no sentido que hoje damos a esta palavra, não pertence à ciência teórica, isto
é, à parte mais eminente da filosofia. É o que explica que a condenação
platônica da arte reapareça várias vezes na cultura ocidental, especialmente
durante a idade clássica, quando a imaginação foi condenada como uma “mestra de
erro e falsidade”, conforme a famosa citação de Pascal.[14]
II. Arte e imaginação no idealismo alemão (Kant, Schiller, Hölderlin,
Schelling)
É preciso esperar Kant e o idealismo alemão para que a
imaginação seja reabilitada enquanto faculdade
propriamente produtiva.
Para Kant, é sumamente importante, conforme expôs nos cursos de antropologia
que ministrou durante muitos anos na Universidade de Königsberg e que resolveu
publicar em 1798, não confundir a imaginação enquanto invenção e a imaginação
enquanto imitação. Logo é preciso diferenciar, dentro da facultas imaginandi, da faculdade imaginativa em geral, definida
como faculdade das intuições fora da presença do objeto, uma imaginação
produtiva que, enquanto faculdade de apresentação originária do objeto, ou exhibitio originaria, antecede a
experiência, e uma imaginação reprodutiva que, enquanto faculdade de
apresentação derivada ou exhibitio
derivativa, lembra ao espírito uma intuição empírica que ele já teve
anteriormente. É interessante observar que Kant relaciona à primeira forma de
apresentação, isto é, à apresentação originária, as intuições puras do espaço e
do tempo, sugerindo desse modo que a sensibilidade pura, isto é, essa faculdade
que nos coloca em presença do fenômeno, é obra da imaginação produtiva.[15] Porém,
esta é mais facilmente identificável na atividade artística do que no domínio
do conhecimento.
É
justamente em a Crítica da faculdade de julgar, publicada
alguns anos antes da Antropologia do
ponto de vista pragmático, em 1791, que Kant, ao se situar no campo da
estética, foi levado a dar um papel primordial à imaginação. Trata-se, para
ele, de definir o Belo distinguindo-o do agradável, que constitui a matéria de
uma satisfação, por certo imediata, porém apenas empírica, do útil, que se
sustenta em uma finalidade externa ao objeto considerado, e até mesmo do
perfeito, que implica a subordinação do objeto a um conceito já determinado de
antemão. Mas se afastarmos o deleite que o objeto proporciona à sensibilidade,
a utilidade, que pode apresentar para a vontade, e a perfeição, que permite seu
conhecimento, o quê pode sobrar do objeto? Sobra o que Kant chama de sua forma,
isto é, o seu próprio parecer, ao qual só temos acesso através do desinteresse.
Esse conceito de forma (Form) não é apenas o
oposto do conceito de matéria ou de conteúdo, assume também o significado mais
específico de figura (Gestalt), que remete àquilo
que, no objeto, constitui a sua estrutura organizadora, e de jogo (Spiel),
jogo das figuras no espaço ou das sensações no tempo, que designa o próprio
movimento do surgimento da coisa, o
seu caráter meramente fenomenal.[16] O poder
que, no homem, lhe permite acessar a fenomenalidade pura é precisamente a
imaginação, cuja liberdade, “desenvolvendo-se, de algum modo, na contemplação
da figura”[17], não
está aqui limitada por algum fim e, assim, pode se abrir à livre beleza
daquelas composições “que não representam nada, objeto algum, sob um conceito
determinado”[18], e que
são, para Kant, o próprio exemplo do Belo. A imaginação parece mesmo designar
aqui um poder originário no homem, ao mesmo tempo receptivo e espontâneo, o de
abrir para a dimensão não objetiva, a partir da qual algo pode se tornar objeto
de conhecimento ou de desejo.
Encontramos
a mesma idéia no tocante não mais à teoria do Belo, mas sim à da arte. A
verdadeira obra de arte, isto é, a obra de gênio, que consiste para Kant em uma
faculdade produtiva inata, que é um dom natural no homem[19], escapa do mero juízo do gosto e não é
suscetível de uma abordagem apenas conceitual. Pois a essência do gênio, o que
Kant chama de “o princípio vivificante da alma” (Gemüt)[20], que
constitui o foco unificador das diversas faculdades do homem, as move, as
incentiva a entrar em um jogo recíproco e lhes dá o seu impulso, é o poder de
representar idéias estéticas. Ora, Kant entende por idéia estética “uma
representação da imaginação que dá muito o que pensar, sem que qualquer
pensamento determinado, isto é, conceito, lhe possa ser adequado”[21]. A
faculdade aqui em jogo, ressalva Kant expressamente, é a imaginação produtiva
que possui a potência para proporcionar uma forma sensível ao inteligível e
que, dessa maneira, dá ao mesmo tempo o que pensar e o que ver. Enquanto
“faculdade produtiva de conhecer”, ela se situa acima do entendimento que se
revela incapaz de expressar através de conceitos toda a riqueza que lhe
propicia uma imaginação realmente livre de seu jugo. Já na primeira edição da Crítica da razão pura (1781), Kant
reconhecia à imaginação pura o papel capital de mediadora entre o entendimento
e a sensibilidade, entre o conceito e a intuição, logo vendo nela uma faculdade
que torna possível o conhecimento[22]. A
imaginação na sua função transcendental é, de certo, ao mesmo tempo,
receptividade e espontaneidade, no sentido que ela permite, desse modo, a
apreensão dos fenômenos. Pois, imaginar, no sentido transcendental, isto é,
enquanto o que constitui a condição de possibilidade de toda relação com os
fenômenos, não consiste em formar uma ou outra imagem concreta, mas sim em
abrir o campo de toda visibilidade. O mesmo acontece com a imaginação, que está
na nascente da obra de arte e encarna o gênio que, na criação artística,
projeta livremente sua obra, embora sujeitando-se às regras da natureza.
Encontramos,
pois, em Kant, a idéia de uma imaginação produtiva, através da qual o espírito
por inteiro do homem se reúne em prol de uma livre criação artística que só é
realmente genial por ser um dom da natureza, assim fugindo da jurisdição do
entendimento. Schiller ainda acentuará a primazia admitida por Kant, da imaginação
com relação ao entendimento, ao mostrar que é na e pela arte que o fenômeno
aparece e que a natureza se revela. Pois, desde 1791, Schiller confessa ao seu
amigo Kröner o entusiasmo que sente pela Crítica
da faculdade de julgar, que acaba de ser publicada, e lhe anuncia o projeto
de escrever um diálogo filosófico sobre o Belo, ao qual daria o título de
Kallias. Tal projeto nunca foi levado a cabo, mas podemos dele ter uma idéia,
através da correspondência que ambos mantiveram. É nas Kalliasbriefe (1793), as cartas nas quais Schiller expõe suas
pesquisas a respeito do Belo, tomando como fio condutor a terceira Crítica kantiana, que ele é levado a
colocar a imaginação no primeiro plano da sua filosofia da arte, enfatizando a
objetividade do Belo, em oposição ao seu caráter meramente subjetivo em Kant. Para Schiller
trata-se de pensar a objetividade sensível do Belo, de devolver, de certa
forma, o belo à natureza, mas também de mostrar que é pela e na arte que a
natureza se revela. Ele é então levado a retomar a teoria kantiana do gênio,
pela qual o Belo fugia da subjetividade para aparecer como um dom da natureza.
Indo mais longe que Kant, Schiller opera, assim, a reconciliação da
sensibilidade e da racionalidade, da verdade e da arte. Para Schiller, a beleza
da forma, que é obra da imaginação, é “livre exposição da verdade”, não da
verdade lógica do entendimento, mas sim de uma verdade que transcende a
abstração e que é a da própria vida[23]. O Belo
não é nem objetivo, no sentido em que seria o correlato do conceito de
entendimento, nem subjetivo, no sentido em que remeteria apenas ao acordo das
faculdades; ele é o próprio ser, cuja aparição sob forma de imagem não é
falso-semblante, mas antes o próprio ato da vida se pro-duzindo livremente.
Nas
suas Cartas sobre a educação estética do
homem, publicadas em 1795, onde expõe “o resultado das suas investigações a
respeito do Belo e da arte”,[24] Schiller
trata de esclarecer os estreitos laços que unem a questão da arte à do destino
do homem. Para ele, trata-se de questionar o dualismo kantiano da natureza e da
liberdade, reivindicando uma outra antropologia, mais completa que a de Kant,
que não dá o merecido espaço à sensibilidade[25]. No
entanto, a época atual oferece o espetáculo de uma acirrada oposição entre
desnaturação e natureza, entre perversão e selvageria[26], quando
a Grécia, que Schiller invoca, apresenta, ao contrário, um modelo de concórdia
com a natureza, a ser resgatada[27]. Desse
modo, ele opõe ao homem grego, que tira a sua forma “da natureza que tudo reúne”,
o homem moderno, que recebe a sua do “entendimento que tudo dissocia”[28]: pois,
enquanto que a época moderna se caracteriza pelo abuso do entendimento e pela
hostilidade para com a imaginação e os sentidos, os Gregos “filosofavam e
imaginavam ao mesmo tempo”, isto é, criavam formas”[29], visto
que pensamento e poesia eram parentes próximos, e a produção do Belo não era
diferente da revelação do Verdadeiro. O paradoxo que Schiller revela é que essa
mesma dissociação que caracteriza a modernidade é resultado da cultura e da
arte: logo, também existe uma arte que nega a natureza e não apenas uma arte
que une a ela. Por isso, trata-se para Schiller “de restabelecer na nossa
natureza a totalidade que a arte destruiu, de restaurá-la através de uma arte
superior”[30]. Esta
arte, superior aos artifícios da cultura, é a “bela arte” que reabre, para nós
modernos, fontes que permaneceram puras e límpidas, apesar da corrupção da
civilização[31], e que
abre novamente um caminho rumo à natureza. Para tanto, o artista deve se preservar
das perversões de seu tempo, deve abandonar ao entendimento a esfera da
realidade e a ela opor o ideal, que não é vã quimera, mas, ao contrário, o
verdadeiro ser. Aí novamente, o artista deve ser capaz, através da sua
imaginação produtiva, de transcender a experiência: “Quem que não se arrisca
acima da realidade jamais irá conquistar a verdade”[32].
Cabe, no entanto, a Hölderlin
reconhecer à imaginação o seu verdadeiro estatuto.
Kant acabou por minimizar o seu papel em proveito do entendimento, na segunda
edição da Crítica da razão pura,
publicada em 1787, e no § 57 da Crítica
da faculdade de julgar, onde ele
redefine a idéia estética, alinhando-a à idéia racional. Ao afirmar que os dois
tipos de idéias possuem o seu princípio na razão, Kant parece desacreditar a
primazia que antes reconhecia à imaginação produtiva. Quanto a Schiller, que
não chegou a superar o dualismo kantiano da natureza e da liberdade, mas apenas
o substituir por um novo dualismo, o da realidade e do ideal, ele procura, na
última parte das Cartas sobre a educação
estética do homem, desenvolver uma concepção racional da Beleza que
propicie a reconciliação dialética dos opostos: “A natureza reúne tudo, o
entendimento dissocia por toda parte; a razão de novo reúne”[33]. Mas ele
se expõe ao perigo de ver na imaginação não mais um processo ontológico, mas
uma mera “atividade” do sujeito, e de assim voltar para o ponto de vista
subjetivo, que criticara com tanta veemência em Kant.
Hölderlin, grande
admirador de Schiller, vê, como este, em a Bildung , na formação da imagem, um processo ao
mesmo tempo ontológico e humano. Como ele demonstra, em especial em um ensaio
escrito no inverno de 1796-97, ao qual posteriormente deram o título de Über Religion (“Sobre a religião”)[34], a
imagem é a figura concreta que contém o infinito e o entrega: é a doação
imediata do infinito, enquanto que o conceito apenas o apresenta de forma
mediata, através da remissão para outros conceitos e seu jogo dialético. A
imagem permite a identidade imediata do tudo e do particular, pois, nas
mitologias, a realidade surge sob o aspecto do livre jogo de figuras divinas
que são, ao mesmo tempo, individualizadas e, no entanto, referidas à totalidade
da qual cada uma apresenta um dos aspectos. É essa a única forma adequada de
representar a realidade. Logo, não há
outra experiência do infinito, a não ser no seu tornar-se imagem. Porém, a imagem só hospeda o
infinito por um tempo, não para sempre, nem em geral, apenas agora e em
particular. Tal imaginação produtiva não pode se autonomizar e precisa,
continuamente, renovar-se na vida real para não correr o risco de hipostasiar
as imagens da realidade que são assim produzidas.
A partir daí, compreende-se em que
consiste a verdadeira essência da imagem: ela dá a ver o invisível e o incognoscível,
ao contrário da imagem-cópia, que é mera imitação parcial e unilateral do real.
É por lidar com a própria essência das coisas que a poesia fala necessariamente
por imagens. As imagens poéticas são, decerto, no sentido forte, imaginações, não fantasias ou ilusões,
mas sim a colocação em imagem daquilo que nunca aparece como tal. Por isso, o
conceito de imagem (Bild) – palavra que
retorna diversas vezes nos poemas de Hölderlin –, mais ainda que o de metáfora,
de símbolo ou de alegoria, que todos supõem a re-presentação “figurada”
de algo já dado, no sentido próprio, é capaz de dar conta não apenas do caráter
poético da palavra humana, como também do processo ontológico, ele próprio poiesis.
Ora, é na mesma época que se
reúne, em torno dos irmãos Schlegel, o grupo de escritores e filósofos, do qual
fazem parte, entre outros, Novalis e Schelling, que será a origem do lançamento
da Athenaeum, revista publicada
apenas entre 1708 e 1800, mas que causará grande impacto na vida intelectual e
literária alemã. O projeto global deste romantismo de Iena é, em oposição ao
classicismo, não o de imitar, mas de superar a Antiguidade, de operar a síntese
do antigo e do moderno, de acabar com as oposições clássicas e, antes de tudo,
com a que opõe, desde Platão, filosofia e poesia, como expressa Friedrich
Schlegel, em um de seus fragmentos, também de 1797, que contém o esboço de todo
o programa da Athenaeum: “Toda a história da poesia moderna é um comentário, seguido do breve texto da filosofia:
toda arte deve se tornar ciência, e toda ciência se tornar arte; poesia e
filosofia devem ser reunidas”[35]. Nas
suas Lições sobre a arte e a literatura, de 1801, Augusto Schlegel menciona Kant e
Schelling, que acabara de publicar o
Sistema do idealismo transcendental, no qual coloca a arte no topo do seu
sistema e afirma que “é para a filosofia o que há de mais elevado”[36], idéia
que encontraremos anos mais tarde na sua Filosofia da arte, que
reúne conferências ministradas entre 1802 e 1805. Para Schelling, como para
Hölderlin, a arte e a natureza estão numa “oposição harmônica”, aproveitando a
expressão de Hölderlin, pois ambas representam um mesmo processo de produção,
inconsciente na natureza, consciente na arte. O artista não tem de imitar as
produções da natureza, mas sim a atividade criativa da natureza: logo, não deve
imitar, mas criar. Ora, ao contrário da filosofia, a arte não supõe uma ruptura
com a consciência ordinária: ela se dirige a todos os homens. Entretanto, arte
e filosofia têm o mesmo objeto, que não é senão o absoluto. Mas a arte o
apresenta de maneira real, ao passo que a filosofia o aborda de modo ideal.
Assim como em Hölderlin, a imaginação que é a faculdade mestre da arte, pois a
imaginação torna imediatamente acessível o que é pensado pela filosofia. E, de
novo como em Hölderlin, a imaginação é, antes de tudo, a capacidade de dar uma
forma real à idéia. Ora, essas formas reais não são senão aquelas dos deuses,
pois, como afirma Schelling, “o que as Idéias são para a filosofia, os deuses
são para a arte”[37]. Essa criação de formas divinas se dá na linguagem, no poema, e o
conjunto destes poemas constitui a mitologia, onde Schelling vê “a condição
primeira e a matéria de toda arte”[38]. Logo, o acesso ao mundo dos deuses não é propiciado nem pelo
entendimento, nem pela razão, mas apenas pela imaginação. Mais do que falar em
imagem, Schelling prefere falar em “símbolo”, porque esse termo representa um
intermediário entre a ausência de significação da simples imagem e a pura
significação do conceito[39]. Logo, para Schelling, toda arte verdadeira é simbólica. O que
caracteriza o símbolo é que ele faz corpo com aquilo que significa, que é uma
significação rica em imagens, ao contrário da alegoria, que remete a outra
coisa, como o sinal. Ora, a mitologia é a origem da poesia como da filosofia,
já que a filosofia, enquanto pensamento das idéias, supõe, em seu fundamento,
as criações da mitologia da qual extrai a significação.
Pode-se
considerar que esta época, do primeiro romantismo, levou a cabo o projeto que
esteve na origem de todo o pós-kantismo, ou seja, o cumprimento do platonismo,
mas, no entanto, não no sentido pretendido por Fichte e Hegel, isto é, a
acessão da filosofia ao estatuto de ciência e o abandono do seu nome grego de
simples amor pelo saber[40], mas com
Hölderlin e Schelling, no sentido oposto, de um retorno ao que foi a própria
origem do filosofar e da dominação da lógica que ele promoveu: o muthos, e a imaginação criativa que ele
implica.
III. Arte e verdade na perspectiva fenomenológica
(Husserl, Heidegger, Gadamer, Merleau-Ponty)
Enquanto
a filosofia ficou exclusivamente regida pelo ideal da cientificidade, como
ainda é o caso em Hegel, a arte foi relegada à posição subordinada em relação a esta. Mas tal situação
começou a mudar a partir do momento em que coube à filosofia não mais oferecer
uma explicação do mundo, mas apenas “reaprender a vê-lo”, de acordo com a bela
fórmula de Merleau-Ponty, no prefácio da Fenomenologia
da percepção. Por certo, não encontramos no fundador da fenomenologia, que
foi matemático e lógico antes de se tornar filósofo, qualquer análise
sistemática da arte. Resta que Husserl, ao menos uma vez, em uma carta a
Hofmannsthal[41], afirmou
o estreito parentesco do olhar fenomenológico com o olhar estético. O que une
essas atitudes, embora divergentes, já que uma é busca do gozo, quando a outra
quer o conhecimento, é a estrita exclusão, que caracteriza ambas, de qualquer
posicionamento existencial, quer proceda do intelecto, do sentimento ou da
vontade. Pois, insiste Husserl, trata-se para a arte de alcançar a “pureza”
estética, afastando-se ao máximo da “verdade natural” e do realismo, bem como
se trata para a fenomenologia de questionar qualquer ser e qualquer
conhecimento preexistentes, para elucidar o seu sentido imanente. Mas se a epokhè deve ser implementada para
resolver este enigma que é o conhecimento, que sem isso permaneceria no
mistério da inexplicável concordância do fora e do dentro, do espírito e do
mundo, e se essa implementação requer uma verdadeira ascese e uma saída
progressiva da atitude natural, a arte, pelo contrário, nos a apresenta de saída como já acabada. A obra de arte, decerto, possui essa virtude, de nos
“transportar” no estado de abstenção com relação a qualquer posição de
existência, até mesmo de nos “coagir” para a exclusão. Pela sua única
existência, ela nos arranca da atitude natural e da posição de ser que esta
continuamente acarreta, para nos colocar em presença do puro fenômeno. O
fenômeno puro – a “própria coisa” para a qual a fenomenologia nos conclama
a voltar – não se confunde, de modo algum, com os dados imediatos da
preocupação ou com os conteúdos da experiência prática cotidiana, mas, ao
contrário, só se revela na sua “exclusão” ou “neutralização”, e, como ressalta
Heidegger no início de Sein und Zeit,
é mesmo porque os fenômenos não estão dados de início, que precisamos de uma
fenomenologia[42]. Pois a
tarefa da fenomenologia “não é coisa tão trivial, como se bastasse ver, abrir
os olhos”[43]: ao
contrário, trata-se de exercitar a visão a se ater estritamente ao que
aparece, sem passagem ao além, sem intuito transcendente para o além-mundo da
coisa-em-si, que sempre pressupõem, por serem submetidas à dominação do
entendimento objetivante, a “teoria” e a “prática”, ao contrário da filosofia e
da arte.
Que a arte tem a virtude de nos
colocar diretamente em relação com a verdade, o que a filosofia se dá como
tarefa alcançar, é o que Heidegger também procurará mostrar na análise que
empreende em 1935 e 1936, em várias versões de uma conferência sobre “A origem
da obra de arte”. A concepção heideggeriana da arte rompe radicalmente com a
estética em geral, que entende a arte e a beleza de maneira subjetiva, e
participa, de acordo com ele, da metafísica moderna da subjetividade. A obra de
arte não pode ser entendida de maneira metafísica, como a unidade de uma
matéria sensível e de um significado espiritual. Também não é simples imitação
de um objeto preexistente, mas sim a revelação de uma verdade que permanece
oculta no cotidiano, como mostra o exemplo dado por Heidegger de um quadro de
Van Gogh, representando um par de sapatos, que faz aparecer, na sua verdade, o
duro mundo do camponês que os calçou[44]. O que
caracteriza a obra de arte e, conseqüentemente, a distingue radicalmente de uma
coisa ou de um simples produto é que ela tem a capacidade de fazer a verdade
aparecer. Não se pode mais considerar a arte como uma imitação da natureza, mas
ao contrário como aquilo em que o mundo se abre de maneira primordial. É o que
Heidegger evidencia através do exemplo de uma obra de arte não figurativa, um
templo grego[45], o qual
não sendo à imagem de nada, simplesmente instala um mundo dentro do qual a
existência humana se torna possível.
Mas essa abertura de um mundo é, ao mesmo
tempo, o surgimento de uma terra. Heidegger explica que o que distingue a obra
do utensílio é que esse último se utiliza do material que o constitui, de modo
que ele desaparece na utilidade, ao passo que no caso da obra, o material não
desaparece, mas ao contrário se mostra pela primeira vez. Ora, o que é assim pro-duzido,
no sentido de trazer para o aberto, não é o que chamamos de “material”, e que
necessariamente concebemos como aquilo que está na espera de uma forma, mas, ao
contrário, aquilo que resiste a qualquer tentativa de penetração e permanece
impermeável a qualquer abertura, bem como a qualquer compreensão: a terra
enquanto se encerra, por essência, em si mesma[46]. A
instalação do mundo e a pro-dução da terra são inseparáveis uma da
outra, bem como a clareira e a ocultação (Lichtung und Verbergung), e o conflito que se trava na obra
de arte entre mundo e terra depende daquele que tem lugar na essência da
verdade, entendida não mais como adequação, mas como desvelamento. A arte é
assim definida como pôr-se em obra da verdade[47]. Mas a
diferença entre o conflito do mundo e da terra, enquanto essência da arte, e o
conflito original entre clareira e ocultação, enquanto essência da verdade,
pressupõe que, ao lado da arte, existam outras maneiras para a verdade advir.
Heidegger cita várias: a instauração do Estado, “a proximidade daquilo que não
é mais apenas um ente, mas o mais ente os entes”, “o sacrifício essencial”, o
questionamento do pensamento[48]: a arte,
a política, o pensamento, o sacrifício, a religião – mas não a ciência, que é
“sempre a exploração de uma região já aberta da verdade”[49] – são
maneiras originais para a verdade advir. Mas porque a verdade tem de se
estabelecer a si própria (sich einrichten) dentro do que é, para se tornar
verdade – a verdade não existe em si anteriormente ao seu pôr-se em obra –
há na essência da verdade uma atração em direção à obra, de sorte que a arte é
uma possibilidade insigne para a
verdade advir. Há um privilégio relativo da arte sobre as demais maneiras,
também originais, de a verdade advir.
No fim da
versão de 1935 da mesma conferência, Heidegger declara que a meditação sobre a
arte começou com Platão e Aristóteles e que desde então “toda teoria da arte e
toda estética são sujeitas a uma notável
fatalidade”[50]. Por ter sido compreendida, desde o início, como algo
fabricado, a obra de arte sempre foi considerada quer como alegoria, no sentido
em que haveria nela outra coisa (allo agoreuei) além de um material posto em forma, quer como símbolo, no
sentido em que algo teria sido acrescentado (symballei) à coisa fabricada[51]. Conceber
a obra de arte como produto alegórico ou simbólico significa compreendê-la como
sendo constituída de duas partes diferentes: a matéria e a forma, ou a forma
sensível e a idéia. À medida que a arte é compreendida dessa forma, ela é
definida como (re)presentação do supra-sensível no sensível, e a lógica aqui
empregada é a da soma. Aliás, na metafísica, o ser humano também é entendido
através do mesmo modelo, como alma ou espírito acrescentado a um corpo, e o
mesmo ocorre com a linguagem, compreendida como a adjunção de um significado a
um material fonético. A idéia diretriz de uma tal concepção metafísica é que o
elemento “espiritual” pode ser (re)presentado no elemento material. A idéia de
uma possível (re)presentação do que não é material ou sensível não caracteriza
apenas a estética do Belo, também está também presente na estética do sublime,
pelo fato que o sublime ainda é definido negativamente, com relação a uma
possível apresentação daquilo que não é apresentável (darstellbar)[52]. Para Heidegger, todos os tipos de estética são,
conseqüentemente, incapazes de compreender o que uma obra de arte realmente é,
já que a obra não (re)presenta nada, não é nem uma representação de outra
coisa, nem a apresentação do inapresentável. Ela não tem relação com a presença
dada, mas, ao contrário, com o devir ou o advir da verdade, com a vinda à presença de todas as coisas. É
por isso que Heidegger enfatiza o seu caráter inicial: a obra de arte é um
começo (Anfang), uma instauração (Stiftung),
uma criação (Schaffen).
Encontramos
a mesma crítica da estética em Gadamer, que trata de mostrar, na sua obra
maior, Verdade e método, publicada em
1960, que a experiência artística constitui a experiência de uma verdade que
supera fundamentalmente o domínio do conhecimento metódico, cujo modelo é
extraído das ciências da natureza. De acordo com Gadamer, o kantismo é que
assinou o declínio da tradição humanista, ao reduzir o senso comum e o gosto a
uma função meramente estética e subjetiva e ao desabonar qualquer conhecimento teórico
além daquele que nos proporcionam as ciências da natureza[53]. O cerne
da primeira parte de Verdade e método
consiste em uma “crítica da abstração da consciência estética”[54], e esse
título deixa nitidamente entender que para Gadamer a criação da estética é
apenas uma abstração que precisa ser des-construída,
no sentido heideggeriano do termo, a fim de conquistar uma compreensão mais
adequada da experiência artística. Dá-se como meta estabelecer, contra a
subjetivação da estética que reina sobre o pensamento moderno desde Kant, que a
arte deve ser pensada como uma mimêsis
e como uma experiência de reconhecimento da verdade. Para Gadamer, a arte não é
reprodução de um real preexistente, mas sim Darstellung,
apresentação verídica daquilo que é. Ora, é essencial, para vincular arte e
verdade, fazer a diferença entre a cópia (Abbild) e a imagem (Bild). A cópia visa a sua própria
eliminação, enquanto mera reprodução de um original. Quanto à imagem, ela não é
um meio no intuito de um fim e não se limita a desviar a atenção dela mesma
para o original. É nesse sentido que Gadamer declara que a não-distinção entre
representação e representado permanece como um traço essencial da experiência
da imagem. É mesmo para garantir o ser daquilo que nela está representado, que
a imagem afirma o seu próprio ser. Logo, a relação entre imagem e original não
é mais de mão única, como no caso da cópia, já que só há verdadeiramente imagem
se o original se apresentar “em pessoa” só na
imagem. Pois tal apresentação lhe outorga, por assim dizer, um acréscimo de
ser. Gadamer vê, neste significado ontológico da imagem, o motivo fundamental
da recusa, pelos Padres da Igreja, da proibição judaica da representação do
divino em imagem: pois, para essa recusa, basearam-se na idéia neoplatônica de
emanação, que rompe os limites da ontologia grega da substância e fundamenta,
sobre a idéia de uma superabundância do emanado que não diminui, o ser daquilo
de onde emana o status ontológico positivo
da imagem, que permitiu o desenvolvimento das artes plásticas no Ocidente. À
imagem é então reconhecida a função ontológica de “suplência”, isto é, da
representação (Repräsentation) no sentido de Vertretung, substituição. Nesta
perspectiva, a imagem possui uma autonomia que recai, por conseqüência, no
próprio modelo. Pois é somente através da imagem que o modelo torna-se realmente o original. Existe aí
um paradoxo: é somente à imagem que o modelo deve o fato de chegar à figuração
e, entretanto, a imagem não é senão a manifestação do modelo. É o que a imagem
religiosa, mais ainda do que a imagem profana, valoriza plenamente. Decerto, é
somente através da palavra ou da imagem que a manifestação do divino toma
corpo, ao contrário das imagens dos personagens profanos, por exemplo, a imagem
do soberano e a dos heróis. Logo, a significação da imagem religiosa é exemplar, pois manifesta de maneira
incontestável que a imagem não é uma cópia, mas sim que está vinculada, de
maneira ontológica, ao ser que ela leva para a imagem[55]. Parece
então que, do ponto de vista ontológico,
e em oposição à perspectiva subjetivista da estética moderna, a arte está numa
relação essencial com o fenômeno religioso ou cultual. Vemos então que a imagem
é um processo ontológico que não pode ser compreendido se fizermos dela o
objeto de uma consciência estética e que somente se esclarece na sua estrutura
ontológica a partir do conceito de Darstellung,
de representação. E isso também vale, como salienta Gadamer, para as formas de
arte que remetem a um modelo determinado, que não são menos imagens
verdadeiras, no sentido definido acima. Foi tomando como fio condutor a
exigência, interna à obra de arte, da Darstellung,
que Gadamer foi levado a reabilitar determinadas expressões artísticas,
consideradas em posição marginal, na estética moderna, tais como o retrato, o
poema dedicatório e, no teatro, a alusão aos fatos e personagens da época. No
retrato, por exemplo, a referência ao modelo não deve ser entendida como re-produção ou re-presentação, mas sim como primeira
apresentação daquilo que não se oferece ao olhar corriqueiro, ou seja, o ser ou
a essência do modelo. Aliás, foi nesse sentido que Heidegger pôde definir a
obra de arte como das seiende Sein (o
ser ente), na medida em que a arte leva o ser a aparecer no ente, que ela é
“pôr-se em obra da verdade”[56].
É numa
estreita proximidade às concepções heideggerianas da arte que permanece
Merleau-Ponty quando, no seu último texto,
O olho e o espírito, que só seria publicado após o seu falecimento, em
1961, procura mostrar que a arte e, em especial a pintura, é a única atividade
suscetível de nos recolocar sobre o solo do mundo sensível, deste mundo da vida
do qual a ciência, enquanto pensamento do objeto em geral, nos afastou desde o
início. Somente através da arte que é possível abrir-se à estranheza das
coisas, que só se revela quando escapam de nossa apreensão. O artista
experimenta esta inversão dos papéis entre nós e as coisas, o que explica, como
observa Merleau-Ponty, depois de Valery, o fato de tantos pintores terem dito
que as coisas é que olham para eles[57]. É este
olhar das coisas sobre nós que as torna “outras”, que faz com que não possam
mais se inscrever, a título de instrumentos, no horizonte das nossas
preocupações, nem aparecer como o simples correlato dos nossos objetivos
práticos, e é dessa “alteridade” da coisa, emergindo do objeto familiar, que o
pintor tenta se apossar, obcecado pela súbita e inapreensível proximidade de um
mundo não mais submetido a seus cálculos. Não pinta ele, como proclama André
Marchand citando Merleau-Ponty[58], “para
surgir”, “submerso”, “soterrado” interiormente pela potência do visível? É
ainda Merleau-Ponty quem diz da visão do pintor que ela é um “nascimento
continuado”[59], e toda
a força da análise que Heidegger dedica à obra de arte vem de que essa não é
mais encarada como algo em segundo lugar, com relação às coisas preexistentes
reais, mas, ao contrário, como aquilo que, sozinho, faz um mundo advir: “Tudo
aqui é invertido”, escreve Heidegger na primeira versão de A origem da obra de arte, “é o templo, no seu porte, que, pela
primeira vez, dá às coisas o rosto através do qual se tornarão visíveis, no
futuro e, por um tempo, assim permanecerão”[60].
Pois a
visão “pura” do artista, que só se sacia com o “mundo das aparências” fazendo a
economia do “mundo em-si” da crença ingênua, é o “recurso que me é dado de
estar ausente de mim mesmo, de assistir, de dentro, à fissão do Ser” do qual
fala Merleau-Ponty.[61] De um
tal olhar pré-humano, a pintura de Cézanne decerto proporciona um
impressionante vislumbre, por deixar suspensos os hábitos – “humanos, demasiado
humanos” – através dos quais enxergamos todas as coisas, para revelar “a ordem
nascente” da natureza, este “mundo sem familiaridade” que se situa “aquém de
qualquer humanidade constituída”[62], e sobre
o fundamento mudo do qual se edificam toda cultura e todo saber regional do
ente. Se Cézanne não pinta nada senão a “deflagração do ser”[63] – esta
“maravilha entre as maravilhas: Que o
ente é”[64] – que a
filosofia, na sua dimensão completamente original, que a distingue de qualquer
ciência positiva[65], tem
como tarefa de pensar, porque estranhar então que o pensador e o artista se
juntem na mesma epokhè, na mesma abstenção com relação à doxa, e compartilhem do mesmo “mundo
invertido” que o jovem Hegel reservava ao esoterismo filosófico[66]?
* Artigo publicado em: Arte no pensamento. Org. Fernando Pessoa. Vila Velha: Museu Vale, 2006.
** Professora
Emérita da Université de Nice – Sophia Antipolis.
[1]Para a análise da mimêsis aqui apresentada, ver M. Heidegger, Nietzsche tomo I, “La volonté de puissance en tant qu’art”,
Gallimard, 1971, p. 156 sq. e E. Fink, Le jeu comme symbole du monde, capítulo
II, (L’interprétation métaphysique du jeu), Ed. de Minuit, 1966, p. 89 sq.
[2] Platon, A República, livro X, 596 c.
[3]Ibid., livro X, 596 d-e.
[4]Ibid, livro X, 597 e.
[5] Ibid, livro X, 598 b.
[6] Platão, Sofista,
242 c.
[7]Aristóteles. Poética, 1451 b. Observemos que
Aristóteles entende por poesia menos a poesia lírica de Píndaro ou Safo do que
a epopéia, a comédia e, principalmente, a tragédia, pois não existe poein sem invenção nem composição de uma
fábula, de um mythos: “O poeta deve
ser artesão de fábulas antes que artesão de versos, já que é poeta através da
imitação e que imita as ações” (1451 b).
[8]Ibid, 1447 a .
[9] Cf. H.-G. Gadamer Vérité et méthode. Paris: Seuil, 1996, p. 131.
[10] Ibid, 1448 b.
[11] Aristóteles. Física B 8, 199 a .
[12] B. Pascal. Pensamentos, 40.
[13] Ver a esse respeito a
interpretação “fenomenológica” da mimêsis
de E. Martineau, “Mimesis dans la Poétique”.
In: Revue de Métaphysique et de Morale,
1976.
[14]B. Pascal. Pensamentos,
82
[15]E. Kant. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 1970, § 28, p. 47.
[16] E. Kant. Critique de la faculté de
juger. Paris:
Vrin, 1974, § 14, p. 68 (a seguir denominado CFJ). Inspiro-me aqui da
observação-análise de J. Taminiaux em La Nostalgie de la Grèce à l’aube de l'idéalisme
allemand, Nijhoff, La Haye, 1967.
[17] Ibid, § 16, p. 71.
[18] Ibid.
[19] Ibid, § 46, p. 138.
[20] Ibid, § 49, p. 143. A palavra Gemüt
permanece intraduzível em francês: significa literalmente o conjunto dos
"humores" (o Mut alemão
possui a mesma raiz que o inglês mood)
e remete ao lado “afetivo” da mente.
[21] Ibid.
[22] E. Kant, Critique de la raison pure,
p. 730 (A 124): “Possuímos uma imaginação, enquanto faculdade
fundamental da alma humana, que serve, a
priori, de princípio para qualquer conhecimento”.
[23] Schiller. Kallias, carta de 28 de fevereiro 1793,
III, p. 112-113.
[24] F. Schiller. Lettres
sur l'éducation esthétique de l'homme. Paris: Aubier, 1943, p. 65 (primeira carta).
[25] Ibid, p. 89 (quarta carta).
[26] Ibid, p. 99 (quinta carta).
[27] Ibid, p. 103 (sexta carta).
[28] Ibid, p. 105 (sexta carta).
[29] Ibid, p. 103 (sexta carta).
[30] Ibid, p. 119 (sexta carta).
[31] Ibid, p. 133 (nona carta).
[32] Ibid, p. 155 (décima carta).
[33] Ibid, p. 235 (décima oitava carta).
[34] Hölderlin. Oeuvre.
Paris: Pléiade, Gallimard, 1967, p. 690-691.
[35] F. Schlegel. Fragment critique 115,
citado por Ph. Lacoue-Labarthe et J.-L. Nancy, L’absolu litttéraire, Paris: Seuil, 1978, p. 95.
[36] F. W. Schelling, Système de l’idéalisme transcendantal,
Peters, Bruxelles, 1978, p. 56.
[37] F. W. Schelling. Philosophie de l’art. Millon,
Grenoble, 1999, p. 84.
[38] Ibid, p. 97.
[39] Ibid, p. 103.
[40] Cf. J. G. Fichte, “Sur le concept de la doctrine
de la science (1794)
”, in : Essais philosophiques choisis (1794-1797).
Paris:
Vrin, 1984, p. 36: “[a filosofia], se tivesse se tornado uma ciência,
abandonaria, não sem motivo, um nome que levou até aqui por modéstia nada
excessiva, o nome de uma predileção, de um amor por algo, de um diletantismo”;
G. W. F. Hegel, Préface à la phénoménologie de l’esprit, Paris,
Aubier-Montaigne, 1966, p. 21: “Contribuir a aproximar a filosofia da forma da
ciência – para que possa remover seu nome de amor do saber e se tornar saber
efetivo – isso é o que me propus”.
[41] Ver a carta de Husserl a Hofmannsthal, de 12 de
janeiro de 1907, La part de l’œil, “Art et
phénoménologie”, n° 7, Bruxelles, 1991, p. 13.
[42] M.
Heidegger. Sein und Zeit. Tübingen:
Niemeyer, 1963, p. 36.
[43] E.
Husserl. L’idée de la phénoménologie. Paris : PUF, 1985, p. 114.
[44] M. Heidegger. “L’origine de l’œuvre d’art”. Chemins qui ne mènent nulle part. Paris:
Gallimard, 1962, p. 33.
[45] Ibid, p. 44.
[46] Ibid, p. 51.
[47] Ibid, p. 80.
[48] Chemins., Op. cit., p. 69 (trad. mod.)
[49] Ibid.
[50] Cf. M. Heidegger. De l'origine de l'œuvre d'art, première
version inédite (1935), texto alemão,
inédito e tradução francesa, de E. Martineau, Paris, Authentica, 1987, p. 53.
Essa
publicação não obteve o acordo de Klostermann, editora alemã das obras
completas de Heidegger e, portanto, não está disponível nas livrarias. Existe
um esboço, do mesmo ano, antecedendo a conferência de novembro de 1935.
[51] Ibid.
[52] O próprio Kant define o
sublime pela impossibilidade da natureza promover uma representação (Darstellung) das idéias (Cf. Critique de la faculté de juger, § 29,
Observação geral, sobre a exposição dos juízos estéticos reflexivos).
[53] H.-G. Gadamer. Vérité et méthode. Paris : Seuil, 1996, p. 58 (47).
[54] Ibid, p. 106 (94).
[55] Vérité et Méthode. Op.
cit., p. 161 (147-148). Cf. F.
Dastur, “Esthétique et herméneutique selon
Gadamer”. A la naissance des choses.
Op. cit., p. 85 sq.
[56] Cf. M. Heidegger. Introduction à la métaphysique. Paris : PUF, 1958, p. 173.
[57] M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1964, p.
31.
[58] Ibid, p. 31. A André Marchand que pensa que “o
pintor deve ser trespassado pelo universo e não querer trespassá-lo” (ibid.), reforça Henri Matisse, para
quem “o artista incorpora, assimila, por etapas, o mundo externo, até que o
objeto que ele está desenhando se torne como uma parte dele mesmo”, levando-o a
esta afirmação: “O desenho é a possessão. A cada traço deve corresponder um outro,
que faça contrapeso, da mesma forma que abraçamos, que possuímos com os dois
braços. A vontade de possessão é mais ou menos forte conforme os seres, há quem
deseje brandamente” (op. cit.,
p. 322). Não se pode descrever melhor esta relação de abraço do mundo, da qual
fala Merleau-Ponty, nem sugerir melhor o duplo sentido, ativo e passivo, de
toda “possessão”.
[59] Ibid, p. 32.
[60] M. Heidegger. De
l’origine de l’œuvre d’art, Première
version (1935). Trad. Emmanuel Martineau, Edição bilingüe, Authentica 1987, p. 27.
[61] M. Merleau-Ponty. L’œil et l’esprit. Paris: Gallimard 1964, p. 81.
[62] M. Merleau-Ponty. “Le doute de Cézanne”,
in : Sens et non-sens. Paris:
Nagel, 1966, p. 25 et 28.
[63] L’œil et
l’esprit. Op. cit., p. 65
[64] M. Heidegger. “Qu’est-ce que la métaphysique?
”, in: Questions I. Paris: Gallimard, 1968, p. 78.
[65] L’idée de la
phénoménologie. Op. cit., p. 48.
[66] G. W. F. Hegel. L’essence de la critique philosophique (1802). Paris: Vrin, 1986, p.
94-95: “A filosofia é, por natureza, algo esotérico que não é feito para o
vulgar, nem para ser colocado ao alcance do vulgar; só é filosofia na medida em
que está precisamente oposta ao entendimento e, por isso mesmo, mais ainda, ao
senso comum humano, sob o qual entendemos a limitação no tempo e no espaço de
uma raça de homens; com relação a esse senso comum, o mundo da filosofia é, em
si e para si, um mundo invertido” (tradução alterada).
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