terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Expressões de Sabedoria: educação, vida e saberes

Livro publicado pela EDUFBA, em 2002

"Aqui tudo é questão de conhecimento"
Mãe Stella de Oxóssi




Leia a entrevista com Mãe Stella:


Nelson Pretto 

– Vamos começar falando um pouco sobre sua experiência de vida, a
experiência de estar à frente de um terreiro como o Ilê Axé Ôpo Afonjá que é internacionalmente conhecido, numa terra tão rica do ponto de vista da cultura afro brasileira. A senhora poderia começar falando um pouco sobre sua experiência de vida para nós, de uma Faculdade de Educação?
Mãe Stella

– Bom-dia! Eu sou Mãe Maria Stella de Oxóssi, tô aqui cheia de emoções,de medo, de estar aqui falando para vocês, coisa que não faz parte do meu cotidiano. Eu falo lá no Axé, com gente sentada no chão, de outra maneira, mas discutir universidade, é muito difícil! Só peço a vocês que tenham paciência, e nós vamos nos entender. Vamos agora começar nossa conversa, eu fiz uma pequena pesca para poder olhar e ficar mais fácil,se não, não vai dar para entender.
Eu sou Ialorixá e pratico a religião dos Orixás. Na nossa cultura, não se faz nada sem se tomar conhecimento de que existem os ancestrais e os orixás mais velhos. Por isso, como não tem ninguém aqui mais velho do que eu, eu vou saudar os ancestrais na memória da minha Ialorixá, da minha mãe de santo, Mãe Senhora. [canto]

Eu pedi uma saudação à minha Ialorixá e a todas as outras Ialorixás
filhas de Oxum, filhas de Oxóssi, filhas de Ogum, de Iansã e para vocês eu dou o meu cumprimento... Bom-dia, pra vocês todos. Vamos começar a nossa conversa...

Eu acredito e professo a religião dos orixás. A crença nos orixás é uma religião composta de três fases. Antigamente, a religião dos orixás (o que nós cultuamos como orixás) não era uma crença. Diziam, sei lá, mil lances que não fossem religião, mas a gente tem a cabeça para pensar e procurar se aprofundar nas coisas, para poder não falar coisas que não sabe.

Então, está bem claro que nós somos uma religião, porque nós temos
teologia, nós temos a liturgia e nós temos os dogmas. São três
características de toda religião. A teologia que visa não só ao estudo do orixá como a experiência que temos da divindade em nossas vidas. Essa teologia fala sobre Olorum, fala dos orixás e toda a formação do mundo religioso dos orixás.

A Liturgia compreende todos os ritos existentes na religião como seus cantos, suas danças, suas comidas, tudo isso. Existem ritos públicos e secretos: os públicos são para todos, e os secretos são para os iniciados, somente os iniciados podem participar desses ritos.

Os dogmas são os pontos que sustentam a própria doutrina. Eles servem de alicerce para compreensão da essência de nossa tradição religiosa. Nisto estão incluídas muitas situações em que muita gente se admira - e fica até ávido de querer participar internamente - que não é nada mais,nada menos do que a possessão, do que a forma que nós temos de conversar com os orixás.

Para sabermos melhor sobre a religião dos orixás, temos que tomar
conhecimento do nosso criador, aí vamos entrar num pedacinho que é
muito difícil, afinal... é aí que dizemos: não tem escolas para mãe de santo, não é?

O nosso criador foi Olorum e, com o auxílio de Odudua Obatalá, criou
todos os seres vivos existentes no Aiyê (o Aiyê é a terra), e também deu atributos específicos aos orixás. Nós só temos um deus, nós somos monoteístas. Esse negócio de deuses africanos em plural não dá! Nós só temos um deus, os outros são auxiliares.

Por intermédio de nossa liturgia, despertamos a energia desses orixás, os quais nos dão respostas às nossas carências. Pelos preceitos que nós fazemos com nossos símbolos, nós conseguimos levantar energia nesse material que tem condição de corresponder às nossas necessidades, às nossas carências.

Algumas pessoas cultuam orixás apenas, outras não, são iniciadas. São essas iniciadas que vêm compor o corpo de sacerdotes e sacerdotisas dessa tradição religiosa tão antiga. É muito antiga essa religião! Agora que está na moda, mas ela sempre existiu!

A nossa religião valoriza a natureza. O orixá é força vital e corresponde aos elementos da própria natureza que são: a Água, a Terra, o Fogo e o Ar. Para você ver como nós, principalmente quem cultua e quem pratica a religião dos orixás e que está mesmo entregue aos orixás, nós vemos o nosso corpo como um templo. Por quê?! Porque todos os seres são formados das partículas de cada um desses elementos que são a Terra, a Água, o Ar e o Fogo. Por isso temos conosco uma partícula de cada orixá infuso em nós mesmos. Isso independe da etnia, crença ou condição social, todos têm. A pessoa pode ter outra religião e nem por isso deixa de ter o corpo formado por esses elementos.

Por exemplo: o ar é o elemento essencial da vida, e temos em nós o ar que é representado pelo orixá chamado Iansã ou Oyá. Esse ar também é  o que nós chamamos de Emi. Emi é aquela força interna que sai de nós, é onde nós tratamos o nosso axé, através do Emi. A água também é fonte de vida. Ela nos hidrata e está presente em nosso organismo como o suor, as lágrimas, as secreções, o sangue... tudo isso são elementos líquidos e representam os orixás da água que são Oxum, Iemanjá e Inana. O Fogo é a vida por excelência. Está presente em nossa temperatura e nas nossas emoções. Esse calor, esse fogo é representado pelo orixá Xangô. Iansã, também, é muito forte na nossa vida, porque um corpo sem calor é um corpo morto. Também podemos comparar nossa pele, carne, ossos, dentes e cabelo à terra que é a fonte primeira da vida. Essa mesma massa que nós temos aqui devemos muito a um orixá chamado Nanã, que é quem fez a formação do corpo humano. O que muito controla a nossa vida é a nossa cabeça. Nós temos dois conceitos de cabeça: o conceito físico e o conceito espiritual. O conceito espiritual é o Ori. Em nossa tradição, se diz: “a cabeça que governa o corpo”, porque, se alguém não está com o Ori fortalecido, nada no corpo desse alguém poderá estar bem. Daí que mal-estar, pensamento negativo é o que mais nos abate e nos deprime. Vocês que estão na universidade devem conservar bem seu Ori. Não é para ninguém ser filho de santo, mas conservar o Ori é saber da espiritualidade, da força interna que nós temos e para sabermos: o que nós queremos, acontece. É só a gente estar com o Ori fortalecido, com bons pensamentos, com boas intenções e é evidente que Olorum vai nos abençoar. Ainda mais os calouros que estão entrando agora numa vida nova de estudos.

Vocês têm uma expectativa de progredir na escola, de virem a ser um
bom profissional e uma pessoa financeiramente suficiente. Às vezes, essa expectativa não é correspondida, não porque vocês sejam incapazes, mas porque o ser humano tem a forma de perceber, sentir e aceitar a própria existência. Cada um aceita de uma forma, às vezes, não gosta de uma matéria, o professor é antipático, o ambiente é desagradável e nem por isso vocês vão deixar de seguir a sua vida profissional por causa dessas coisas. Daí é que nós temos em nós um sentimento chamado equilíbrio que deve estar bem certo, bem equilibrado mesmo, bem forte pra gente superar essas adversidades. Nas horas difíceis das adversidades, devemos pedir aos antecedentes que nos dêem compreensão.

Devemos auxiliar os outros, de acordo com as nossas convicções e
possibilidades. Devemos escutar quem precisa ser ouvido. Devemos ter
certeza de que existe um ser supremo que nos ajuda a lutar e a vencer e pedir auxílio a quem quiser nos ouvir. Isso tudo independe da crença religiosa, qualquer pessoa, qualquer ser humano deve fazer essas coisas para poder ser feliz.

Eu acredito na religião que professo que é a religião dos orixás. Sei que Olodumare fabricou meu Ori, atribuindo-me a vida. O Ori e os orixás determinaram o meu Odu que é o meu caminho. O destino não se muda, mas se trabalha através de preceitos e oferendas. Aproveita-se o lado positivo de cada destino, que em si mesmo não é bom nem é mau. O destino é o destino, e a gente também ajuda a ele.

Questiona-se como pode ser aproveitado o lado positivo. Digo que pode ser aproveitado por intermédio da educação e seus vários aspectos: tanto na vida civil como na vida religiosa, na vida de um modo geral. De acordo com a religião dos orixás, a profissão de cada um, que vocês escolheram, faz parte do Odu, do caminho. Muita coisa é de livre arbítrio e devemos ficar atentos às opções que fazemos na vida. Você já nasceu com destino de ter uma determinada profissão: advogado, por exemplo, mas de repente você continua, entra no colégio e vê que aquilo não está satisfazendo os seus desejos e você, então, tem que lutar para que isso aconteça. Não deu certo? Perdi a primeira vez, perdi a segunda então não tenho que ser? Não!! A força interna é que nos ajuda muito a vencer.

Veja bem: quando estamos ainda na condição de embriões, Olodumare
nos leva ao recinto e manda que se escolha o próprio Ori. O Ori é cérebro, é espiritual. Os apressados chegam lá e apanham o primeiro que encontram, outros são meticulosos na escolha, alguns mais ou menos. Daí, quem é apressado fica sempre imperfeito, com a sobrecarga, e tem a vida conturbada.

A escolha do Ori explica a diferença de temperamento e sina de cada
indivíduo. Daí depreende-se que o destino é uma coisa que não se muda, mas se lapida. Não devemos nos entregar ao destino. Na condição de seres novos que somos, devemos melhorá-lo. É a nossa obrigação.




Ainda que não cultue, todo mundo tem um orixá, o chamado popularmente anjo de guarda, protetor, Eledá. Existem diversos nomes que lhe são dados. Devemos nos apegar a qualquer energia positiva, devemos rezar, fazer oração, seja em qualquer tradição religiosa.

Não devemos misturar religião, para não cairmos em práticas sincréticas e atropeladas. O chamado sincretismo de justaposição foi uma tática originada para a existência da crença menos poderosa por não ser ligada ao poder. Hoje em dia, quando o Estado está desvinculado de qualquer religião oficial, a partir da Proclamação da República, falar em sincretismo por motivo de sobrevivência torna-se anacrônico, mas vou relembrar um passado sofrido.

Há alguns séculos, quando descobriram que a mão de obra africana
seria ideal para o fortalecimento da economia no mundo, o negro foi
trazido para as Américas, em especial para o Brasil. Sem condições
jurídicas, ele não era nada! Ele era da propriedade apenas do outro ser humano que era o constituidor de uma alma de direitos e deveres. O homem negro era escravo, um animal diferente no contexto dominante
da época. Apesar disso, o africano trouxe consigo a sua fé que permaneceu firme, apesar de ter sido batizado com outra crença, sido mudado de nome e sido apresentado a hábitos alimentares diferentes, vestimentas etc. Mas a fé sobreviveu imaculada, e o negro e seus descendentes se aproveitavam dos feriados religiosos dos cidadãos, dos senhores, para praticarem seus cultos. Com o tempo, foram se organizando, adquirindo terras, fundando comunidades religiosas e irmandades paralelas.

Hoje em dia, a liberdade de pensamento e crença é possível para todos, não mais havendo justificativas inteligentes para as práticas sincréticas, que infelizmente existem como forma de manipulação do mais fraco, que nada mais é do que o chamado afro-brasileiro ou afro-descendente.

Outro dia eu soube que teve uma missa aí falando nessas coisas e até
inventaram agora a missa dos negros. Não existe isso. Missa é missa!
Não tem de negro nem de branco. Tinha uma pessoa na hora da oferenda
vestida de Oxum. Aí eu não sei se era falta de informação, falta de respeito, se era inocência, eu fiquei sem saber. Então eu falei com o padre, uma autoridade da igreja, e ele falou: “Ah! A senhora foi a única que não gostou!”. Aí eu não entendi nada!

Existem pessoas que vão à missa e vão ao candomblé. Cada um pratica
sua fé, é livre e pode ir muito bem de tarde à missa e de noite ao candomblé. Não deve é misturar! Existem pessoas que têm direito à busca e essa busca sempre é sincera e isto não tem nada a ver com sincretismo de justaposição, afinal as pessoas acreditam no que acreditam. Um dia descobrem o santo, ou o anjo, ou um orixá e a pessoa tem direito de procurar as coisas. 

A carência da humanidade, numa época de tanta desolação que é esse
início de século, leva as pessoas a buscas maiores. Elas têm sede de
águas não conhecidas ou até querem buscar águas novas. As pessoas
querem ser livres de amarras, de culpas impostas por dogmas, muitas
vezes ultrapassadas.

Para a religião dos orixás, não existem raças, nem situação social ou financeira, existe, sim, o amor eterno à vida, entenderam?

Nelson

– Mãe Stella, no momento que a senhora falava, eu lembrei, acho que foi em 1981, a senhora construiu um museu Nagô na roça do axé, como uma forma de manter viva a tradição. Parece que, no candomblé, a história da memória e do respeito pelo mais velho, são coisas fundamentais. A senhora poderia falar um pouquinho sobre essa questão da memória, a questão dos ensinamentos, do respeito aos mais velhos? Como é que isso se dá? A senhora disse que não tem escola de mãe de santo, será que um dia vai ter? Será que vamos ter que um dia formar uma faculdade de Mãe de Santo?

Mãe Stella

– Veja bem. O candomblé é uma escola, né? Apesar de eu ter tido uma
claridade, quando eu escrevi um livro, ele foi feito apenas pelas filhas de santo do axé, mas eu creio que serve para muita gente, porque o que é muito forte na tradição africana... (eu falo africana, porque a religião que nós praticamos é uma religião africana, é de essência africana. Nós somos brasileiros, mas temos uma religião de origem iorubá, africana.) então, uma coisa que muito marca essa tradição é a coisa do respeito. Eu já estive na Nigéria, e como é que os filhos saúdam os pais? Eles deitam-se no chão
para tomar a bênção ao pai ou à mãe (quando é mulher tem outra forma
de dar), sempre rente com o chão, porque, para nós, o chão, a terra, é uma coisa que nos renova a energia. Outra revelação de respeito aos mais velhos é não se discutir com os mais velhos, pois nessa tradição eles são fonte de muito respeito. Quando eu falo em conservar, trazer na memória as coisas da religião, vocês podem ler nesse livrinho aí e nós temos um museu. Esse museu é apenas Ilê Axé Ôpo Afonjá. É nagô porque nós somos da tradição, mas é uma memória do próprio axé. É onde nós conseguimos juntar as coisas antigas que tínhamos lá e fazermos uma exposição de como eram usados, mostrando, agora, com a evolução de máquinas e tudo mais, como as coisas estão. Antigamente, o material era feito no pilão, ralado na pedra, não tinha liqüidificador nem processador nem nada disso e ficava bom, talvez até mais gostoso, e era uma coisa melhor até porque a nossa energia está muito misturada. Uma coisa que muito vale para nós é a energia. Quanto mais energia a gente despende a um orixá para uma coisa dessa, há troca, a energia chega melhor para nós.

Nelson

– A senhora estava falando isso, e eu estava me lembrando: existem
páginas na internet sobre o Axé, a senhora usa e-mail. Como é que são essas relações das tecnologias com a cultura afrobrasileira e o candomblé?

Mãe Stella

– Veja bem, nós temos até uma página na internet (http://www. geocities.com/Athens/Acropolis/1322/). São algumas explicações e quem for ler, quem tiver tempo de ler vai gostar, porque tem explicações sobre a questão do sincretismo, tem explicações sobre o funcionamento do Axé. Agora, nessa página, não fazemos consultas. Não fazemos nada disso... é só mesmo informação e, enquanto eu estiver viva, na nossa página não acontecerá isso!

Nelson

– Uma das coisas que sempre me impressiona, quando eu vou ao Axé, é a forma como ele funciona. Como eu sou diretor daqui da Faculdade, eu sempre me pergunto como funciona, ou como não funciona, o cotidiano de uma faculdade, de um agrupamento social, de um clube... lá, eu fico muito impressionado, fico curioso: como é que funciona um terreiro, uma roça? É uma quantidade muito grande de atividades, de pessoas, de interesses...



Mãe Stella

– Olhe... eu não vou dizer que é tudo às mil maravilhas, porque não é! Mas primeiro: eu acho que os próprios orixás dão condição de resolver. Tem uma moça que vai lá e passa dias... Um dia ela me disse: “Eu não sei... eu passo aqui o dia inteiro, e essa gente vai, entra e sai, está tudo muito confuso, mas daqui a pouco está tudo certo!” Ninguém toma pé de nada: por onde entra, por onde sai, mas por fim está tudo certo, às mil maravilhas. Apesar da força que o orixá nos dá, para poder controlar essas coisas, aquilo se chama disciplina. A disciplina nos ajuda muito, porque no Axé tem aquela coisa de postos. Cada um tem seu posto, seu cargo. Se cada um segue seu cargo direitinho, (deveria seguir!) no fim do dia, no fim do tempo, está tudo certo. Então tem o encarregado de ir ao quarto do orixá, tem o encarregado de ficar na cozinha, fazer a comida, lavar a roupa, varrer o espaço. Nem todos funcionam assim, mas como é uma coisa de integração, então, às vezes, um faz pelo outro e todos fazem. Coisa mais rara é você chegar numa comunidade de candomblé e alguém estar parado, sentado. Se alguém está sentado, é uma coisa extraordinária, diferente.

O ambiente é muito diversificado: tem velho, tem moço - eu falo lá em casa, no nosso Axé - tem muita gente de menos instrução, de maiores instruções, tem de tudo, mas nessa hora, lá, todos são iguais! Na hora de varrer um chão, todos vão. Se você for ser um filho de santo, vai ter que varrer também, limpar o quarto de xangô, vai ter que tratar uma galinha, tem que passar uma roupa, mas também tem a hora do lazer, de conversa e também da obrigação. Por isso quem olha de longe, pensa que está tudo certinho, porque a disciplina também nos ajuda muito.

Nelson

– E a senhora acha que a Escola Mãe Aninha consegue, enquanto um
espaço de educação, ter também essa dinâmica?

Mãe Stella

– Tem sim, porque a escola agora está satisfazendo as nossas expectativas, e eu coloquei uma filha de santo lá como se fosse uma intermediária entre o Axé e a escola para tomarmos conhecimento, para darmos alguma orientação, alguma coisa e, felizmente, graças a Oxum ela está dando conta, juntamente com a diretora oficial, que é Marinalva. A Secretaria de Educação da Prefeitura comprou as idéias delas e está levando. A escola já é tida como uma escola de referência. Eu digo sempre a ela que no meu tempo não tinha nada de se registrar, mas agora o pessoal registra para poder ter provas. Se não fosse assim, a Bahia não tinha esse governo maravilhoso, se ninguém visse na televisão o que é que ele faz, né? A
propaganda é a alma do negócio. Não foi sempre assim. A escola não começou como escola, começou como uma creche, mas eu achava que a creche não satisfazia, porque a  população de lá é muito grande. Então compramos o prédio na mão da instituição que tomava conta e tomamos para nós. Fizemos um convênio com o Estado, a princípio, e depois com a prefeitura. Agora é só com a prefeitura. Fundamos essa escola com o nome de Eugênia Ana dos Santos, que é o nome de Mãe Aninha, que é a fundadora da casa desde 1910.

Tudo quando começa, ainda mais depois de um pequeno desentendimento
com a outra direção... Mas com as bênçãos de Oxóssi e de Xangô, nós
fomos segurando, e a escola está indo e está correspondendo às próprias expectativas da Secretaria de Educação. Tem sido referência para o exterior, para muita gente. Tem uma moça que trabalha lá que é dona Vanda Machado, professora que fez uma tese aqui na Faced. Essa tese serviu de inspiração, e eu incentivei muito. Se ela sofreu, a culpa é minha também. É que eu dei muito para que ela levasse além dessa tese, e ela está desenvolvendo um trabalho muito bom. Esse trabalho está aberto, caso vocês queiram dar um passeio até lá para conversar com a criançada.

Além desse lado didático de escola oficial, ela está dando ...(Vanda, posso dizer que você é filha de santo?) ela está dando coisas rudimentares da nossa tradição religiosa e também da cultura. A criançada já sabe alguns cantos, saudações, já sabe historinhas... O dia que você quiser levar sua turma para fazer uma pesquisa, um estudo legal, a escola está às ordens, viu? Avisar é bom que a gente se preparar! Mas não precisa nem avisar, porque a casa é de vocês...

Nelson

– A experiência de Vanda, tendo feito a pós-graduação aqui, foi numa
época em que a faculdade tinha uma área relativamente forte nessa questão da cultura negra e afro-brasileira. Eu costumo dizer que eu acho isso uma falta em nossa Faculdade hoje, e que nós temos de recuperar. Essa é uma área que já teve um apogeu aqui dentro e agora não está mais tão forte. A vinda da senhora aqui também é, do meu ponto de vista e no ponto de vista nosso, enquanto direção, uma possibilidade, um estímulo para que essa área cresça novamente. Eu acho que a pesquisa em educação na Bahia, particularmente na Bahia, tem que ter um destaque para essa área. A senhora acha que é possível articular ciência e candomblé?

Mãe Stella

– Com certeza. E com vocês dois à frente que formam uma dupla legal,
vai dar certo com certeza. Mas na atualidade, como eu falei, estão todos carentes. Carência geral de tudo: de compreensão, de conhecimento, de religião... a carência é muito grande. Então, tendo pessoas inteligentes e dinâmicas como vocês, eu tenho certeza de que vocês vão conseguir chegar lá e que, no próximo ano, quando forem reiniciar as aulas, você vai ver que esse lado da religião africana e da cultura já estará mais enfatizada, já estará mais conhecida.
Às vezes, a pessoa discrimina, porque não conhece. Precisa conhecer
para saber o que é. O dia em que alguém se dedicar a estudar profundamente o candomblé... ninguém nunca abriu uma escola da teologia africana! Tem a teologia católica, a teologia protestante, mas a africana ninguém nunca se dedicou a estudar profundamente. O dia em que alguém se dedicar profundamente a estudar o que é a teologia, como funcionam os dogmas, qual é essa liturgia e tudo mais... quando se fala em candomblé, pensa-se apenas naquelas festas de barracão em que todos dançam, mas não é isso. O candomblé é muito mais profundo! E é por causa do candomblé que nós estamos aqui agora conversando!

Nelson

– A senhora acha que tem ainda uma visão folclórica com relação ao
candomblé?

Mãe Stella

– Com certeza! Quando eu vejo, agora está melhor, mas ainda existem pessoas vestidas de orixás em bloco de carnaval, em trio elétrico, isso é falta de conhecimento. Eu falei com uma que dança (ou dançava) no Balé Folclórico da Bahia e eu disse: “Você vestida de Iansã?” e ela: “Mãe Stella, isso é uma homenagem a meu santo.” Não sabe de nada, né? Vai para lá vestida de Iansã, para dançar no palco, e depois vai tomar uma cerveja... filha de Iansã!
Toma uísque, namora.. é folclore, mas é falta de conhecimento... Ela que estava homenageando diz isso, imagine o que diz um leigo!

Mary

– Quando a senhora falou que existe a teologia católica, a protestante e não existe uma escola de teologia sobre o candomblé, me veio uma questão na cabeça. Existe também no candomblé essa divisão de facções? Quer dizer, tanto a católica quanto a protestante são todas cristãs, mas foram se dividindo, porque as pessoas tinham, entre outras coisas, opiniões diferentes sobre os mesmos textos. Entendendo o candomblé como uma matriz, existem também essas facções? Pessoas que pensam o candomblé de maneiras diferentes?

Mãe Stella

– É da humanidade isso. Todos se formam no mesmo candomblé, mas, quando abrem as suas casas, uns acham que a semana não deve ser de quatro dias, e sim de sete, uns acham que o preto é luto, outros que o branco é luto. São essas facções, outros acham que... mil coisas que sempre diversificam as pessoas. Os seres humanos não pensam todos iguais, mesmo que digam que professam a mesma crença. No fundo, no fundo, você vê seus pais, seus irmãos, se amam se gostam, mas cada um pensa de uma maneira. Isso é normal na vida. No candomblé também é assim. Não pense que o candomblé é aquela coisa...que a Igreja Católica também... Não é nada disso. 

Nelson

– E isso é uma coisa que atrapalha o funcionamento ou é rico?

Mãe Stella

– Enriquece, porque, às vezes, uma coisa que até hoje você pensou que não poderia acontecer, que era errada, se você raciocina bem, você vai ver que até o outro tem razão e isso é bom, é uma dinâmica que ajuda a nos desenvolver.

Maria

– Eu queria tocar em três pontos para a senhora comentar um pouquinho. Uma visão que eu tenho, não sei se é falsa, é que existe uma supremacia da mulher no candomblé, essa supremacia é quantitativa apenas ou não existe? Existe um papel preponderante da mulher no candomblé, que papel é esse? Essa é uma coisa que eu gostaria que a senhora comentasse. Uma outra coisa é sobre o livre arbítrio, que é uma questão que eu acho muito interessante. Se eu não me engano, a senhora disse que, no nascimento, a pessoa escolhe o seu caminho e o seu destino, uns são apressados e outros fazem uma escolha mais devagar. Aí eu gostaria de saber: durante o processo de vida, como é que isso funciona? A escolha permanece? Existem possibilidades de mudanças?

Uma terceira é sobre a escola. Porque eu conheço a escola, a senhora
sabe, eu estive lá, discuti, vi coisas interessantíssimas funcionando e, por exemplo, tinha a sala do problema, que eu achei muito interessante e eu perguntei: “que tipo de problema?” e ela me respondeu: “Lhe digo que não é problema só de Matemática, as crianças têm outros problemas que não só de Matemática e tal”. A senhora disse que a escola hoje já é regular, com 300 alunos. Como é que funcionam essas coisas hoje na escola, os princípios que nortearam a gênese dessa escola, o início dela?

Mãe Stella

– Primeiro falando do livre arbítrio que você perguntou aí. No lado
espiritual, Olorum já sabe quem vai nascer, então você pega essa pessoa que vai nascer e manda que ela escolha o Ori (o Ori é a cabeça). No lado físico, onde nós pensamos e no lado espiritual, que é a fonte de energia para gente. É como se dissesse assim: “Você vai nascer, então escolha seu futuro, escolha seu caminho,” e deixa lá o lugar onde cada um faz a escolha, a depender de como queira.
Nisso, a pessoa nasce. Depois de pesquisas de uma forma adivinhatória, é que se vai descobrir quem é o Odu, qual é o caminho e qual é o orixá da pessoa, mas a pessoa já vem com seu destino traçado. O destino ninguém muda, se dá uma mãozinha, se cortam as arestas, cresce e preenche com qualquer coisa. Quando se deixa o ser humano com o próprio Ori, é para ele ter condições. Se ele souber escolher, ele vai saber trabalhar com aquilo que ele escolheu. Quando você escolhe uma coisa, por exemplo, escolhe uma casa, você vai colocar aquilo no seu molde, não é isso? É a mesma coisa com o nosso Ori. Eu escolhi, então eu tenho obrigação de cuidar do meu Ori e do meu caminho. São duas coisas essenciais para o ser humano. Para você conseguir o que quer, você tem que lutar, você não pode ficar parado, porque a vida é dinâmica. Se você não procurar, não fizer por onde aconteça, a vida não acontece nunca.

Se eu for dizer: “O povo de candomblé é discriminado, eu sou negra,
sou mulher..”, aí eu poderia sentar e pedir: “Ô meu pai, toma conta de mim!”. Essa é a forma como a gente não muda o destino, é isso. Mas não... a gente pára e pensa, procura jeitos, procura se impor de uma forma correta. Por exemplo, você nasce de uma família de protestantes, mas você não sabe por que tem um apego com as coisas de orixá. A religião que você segue é imposta pela sociedade, pela família, mas o orixá que é uma coisa muito superior, é um transcendente, está lhe tomando, lhe puxando, daí o pensamento é voltado para a coisa do orixá. Eu posso ser de uma família crente, protestante e amanhã cultuar orixá e ser até um Ialorixá, uma coisa qualquer. Temos livre arbítrio, quando também conseguimos consertar o nosso destino.

No axé, tudo que a gente vai fazer, a gente entrega aos ancestrais. Então eles, como são a força de vida, nos ajudam, nos dão discernimento paras coisas, nos dão condição de falar de tudo e aquela escola está muito entregue a Xangô e a Oxóssi... Nossa liturgia diária é pedir, é conversar. Procuramos sempre andar na linha certa que é a melhor coisa. Se eu tenho um colega que
é marginal, usa tóxico, eu não vou entrar na moda também, né? Eu tenho que parar e pensar nos benefícios e nos malefícios que esse tóxico traz. 

Na escola, nós tivemos muito trabalho e ainda estamos tendo, estamos
melhorando. Aqueles problemas todos que nós tínhamos em uma sala
são resolvidos coletivamente, eles são normais. Para mim três pessoas já é multidão, quanto mais...é difícil lidar com muita gente.

As mulheres são alegríssimas. Aquele espaço da roça é pouco para elas. Você chega na escola, e elas estão lá dinâmicas e muitas estão lá alegrando aqueles que estão progredindo. Quando essa escola abriu, tinha uma garota lá que foi do tempo da creche, já estava com 12 anos no 2º ano, e não conseguia sair. Graças a Deus, graças aos professores, estamos conseguindo dinamizar as coisas e a animar. Uma coisa que anima muito é o lanche que a prefeitura dá, o dinheiro... além de outras atividades que alegram as crianças. Não é só ficar na sala. Elas passeiam pela roça, vão ao viveiro, vão às plantações, à fonte e tudo isso para tomar conhecimento. Para elas é bom, porque são crianças carentes. Criança  rica nunca viu uma galinha viva, um cágado e elas lá olham pro cágado, tomam aulas, fazem historinhas sobre o cágado...

A mulher tem primazia no candomblé, porque é mais charmosa!!! Mas
principalmente aqui na Bahia essa primazia se dá, porque o candomblé, essa crença, chegou aqui em Salvador através de três senhoras negras, ex-escravas ou escravas, só sei que eram africanas e que, depois da bendita Lei Áurea, elas conseguiram ter a sua casa lá na Barroquinha. Elas abriram a sua primeira casa de Axé numa ladeira que tem ali.

Ali o candomblé foi crescendo, o conjunto foi crescendo, e elas tiveram que sair dali para outro lugar que hoje se chama Vasco da Gama. É onde está a Casa Branca atualmente. Nesse tempo, era por causa, creio eu,  daquele machismo do africano. O africano sempre valorizou a mulher, porque a mulher na África é livre. É ela quem sai, quem compra, quem mantém a casa, ela tem o dinheiro dela, e ele tem o dinheiro dele.

Eu penso muito isso, que as questões morais colocaram as mulheres no
lugar onde estão. Aquelas mulheres tinham um senhor chamado Martiniano Bonfim. Ele veio do Bonfim. Ele ajudou todas elas a abrirem idéias para muitas coisas, porque ele andava pela sociedade. Havia um outro, o senhor Joaquim. Ele era um babalaô, uma profissão só para homens. Antigamente, eles jogavam um negócio chamado Ifá. Somente homem pega. Isso é para vocês verem que o homem também já teve o tempo dele...

Mas, voltando às mulheres africanas, elas fizeram a casa e ali só iniciava mulher, o porquê eu não sei. Depois de certo ponto, a coisa quando cresce tende a expandir e atualmente não, as pessoas vão, por livre e espontânea vontade, vão por vocação, vão porque querem abrir as suas casas, mas antigamente uma casa só era aberta, quando tinha um desafeto. Minha mãe não me agradou por aquilo ou aquilo outro, eu vou e abro a minha casa.

Foi o que aconteceu com a Casa Branca. As três senhoras morreram,
veio uma mais velha e ficou tomando conta. Quando essa morreu, na
hora da substituição, todo mundo queria ser mãe de santo. Então aí teve a separação. Uma saiu e abriu a casa do Gantois, outra saiu e foi abrir o Ôpo Afonjá, e ficou a velha lá. Agora, lá continua sem iniciar mulher, na matriz onde é a Casa Branca. Lá no Ôpo Afonjá inicia-se homem, como o Gantois também.

Existem esses rachas no candomblé, mas é uma coisa que é para
engrandecer! Na sua casa, você faz os detalhes diferentes! O número de homens para serem iniciados é menor, por isso a mulher tomou mais a frente. Existem casas aí governadas por homens também, mas a maioria  mulher mesmo.

Georgina

– Mãe Stella, eu tenho duas perguntas. Na primeira, a senhora vai me
perdoar a ignorância e o desconhecimento do candomblé, mas eu escuto
muito as pessoas dizerem assim: “Eu sou filha de Ogum, eu sou filha de Iansã”, a mim mesma alguém já disse: “Você é filha de Iansã...” e aí eu fico me perguntando: Como é para gente saber se é filha de um
determinado santo e não de outro? Como é que isso é definido? É por
data de nascimento, é a mãe de santo, como é que é isso?

A segunda, é que Nelson anunciou o endereço na internet, e eu queria
saber como a senhora vê isso: candomblé na internet? Como foi essa
decisão de vocês de abrirem uma página na internet? Isso está ajudando
ou não? Fala um pouquinho dessa história, por favor.

Mãe Stella

– Primeiro: se você tivesse feita essa pergunta na internet, não teria resposta, porque eu não respondo, não faço consulta pela Internet. Mas a Internet foi criada, porque, às vezes, a propaganda... se você não fala, ninguém sabe, por isso eu me propus a escrever um livro e, se eu não escrevesse, muita coisa que eu queria dizer, muita gente não iria saber. Um livro desse está livre, qualquer pessoa pode ler, e não tem nada demais, só coisas sobre procedimentos. Sobre o seu orixá ou de qualquer pessoa, a identificação é feita através do oráculo. A gente vai pesquisar, vai olhar, porque aquilo que é o aprendizado. Você não aprende a conversar com seu orixá por causa do axé, tem o axé, a teoria e a prática. Você pode ter o conhecimento teórico, mas não tem o axé, a força, aquela ordem que você teve para fazer isso.

O orixá é descoberto, através do jogo de búzios ou de Ifá (somente
homem que faz). Agora tem gente que olha para você e diz: “Você é de
Iansã, né? Você é de Ogum!” E por quê? Tem o arquétipo de cada orixá.

Então, se eu sou uma pessoa desinibida, gosto de conversar, dizem logo que eu sou de Iansã. Se eu sou dengosa, tenho a fala mansa, dizem que eu sou de Oxóssi, se eu gosto de brigar à- toa, sou de Ogum e por aí vai, mas não é isso! Às vezes, você é de um orixá, e o arquétipo vem mais de uma coisa muito profunda. É justamente isso que você, às vezes, é de um orixá e vai procurando saber mais características, o arquétipo daquele orixá, você vai ver que muita coisa se identifica com você.

Sobre a internet, nós fizemos isso para poder deixar público, até no exterior, todo mundo saber que existe um Axé, a forma como nós trabalhamos, o que é que nós temos lá em questão de educação, de cultura, de ciência, de tudo que serve também como fonte de aprendizado para outras pessoas. Agora é um perigo, porque existem pessoas que fazem consultas através da internet. Eu tenho recebido não sei quantas mil perguntas: “Meu marido foi embora, o que é que eu faço? Me arranja um ebó para ele voltar...” “Eu quero passar no vestibular..” Tem que estudar! Tudo na vida, ainda mais quando se trata do progresso, às vezes torna-se perigoso.

Jorge

– Antes de fazer a pergunta, eu queria falar rapidamente, fazer um recorte daqui até a Grécia. O pai da história, Herôdoto, fala que a religião grega começou com o oráculo de Sodoma. Diz também que tinha uma sacerdotisa e essa sacerdotisa veio da África. Era uma mulher negra que se chamava Pomba Negra. É tanto que era uma egípcia e ela falava, e os gregos não entendiam, chamavam ela de passarinho, uma pomba negra, porque o passarinho pia, pia, pia e ninguém entende o que ele está falando. Aí eles começaram a entender essa mulher e que começou a fazer parte do ritual. Esse ritual era dentro do carvalho, então tem a relação com a planta, com a árvore que o candomblé preserva até hoje, e a religião católica não tem isso, essa relação com a natureza.

Tinham os enigmas, tinham todos os tipos de jogos, como o labirinto e tantas outras coisas e tinha uma tecnologia, que hoje nós estamos perdendo, que é essa tecnologia do conhecimento do ser humano, da alma humana,  de melhorar a alma das pessoas e suavizar as dores e o sofrimento. Protágoras dizia que as pessoas iam ao templo de Delfos que é pós Sodoma, as pessoas iam lá mal, chorosas e começavam a entrar nesses jogos e saíam sorrindo.

O que eu queria lhe perguntar é: Não tem uma tecnologia não tô falando de internet, computador, mas de um conhecimento da psicologia humana que leve à na liturgia, dentro de um ritual, da transe, com a música?

Mãe Stella

– Nós não ligamos para a psicologia, nós ligamos para a essência. Através da essência, é que você vai ver se uma pessoa chega chorosa a você. Pode até estar infeliz, mas porque quer. Tem gente que nada lhe agrada, até a felicidade dos outros incomoda, então essa pessoa está com o Odô negativo, está com o caminho negativo, está com o Ori tumultuado. Nós, então, através dessa conversa aqui e outras também, apelamos para natureza, fazemos limpeza de corpo, procuramos saber qual é o orixá, para pedirmos que ele equilibre aquela cabeça.

Cláudio

– Voltando ainda àquela linha, a diferenciação das casas a partir da Casa Branca, de mãe Aninha até mãe Stella, eu acho que um dos encantos que aconteceram no Axé é que ele conseguiu se libertar do sincretismo tanto do branco, quanto do índio.

Eu queria que a senhora falasse um pouquinho como foi que essa história teve início e de que maneira se posiciona o Axé perante as outras casas como o Gantois, por exemplo, que não deu esse espaço.

Mãe Stella

– Realmente o São Gonçalo, como nós chamamos o Ôpo Afonjá, era uma
casa igual às outras, onde se rezava Santo Antônio, onde tinha missa
naquele cruzeiro. Aquele cruzeiro era para missa. No São Gonçalo
também, quando se saía de uma iniciação num dos domingos de Oxalá
tinha-se que ir ao Bonfim, tomar bênção ao padre, para poder a obrigação ter valor! Para você entrar na igreja, tinha-se que ter as suas contas em dia, para ninguém saber que você era do orixá.
Quando a gente morre, ainda hoje, tem um ritual chamado axexê, é uma
vigília e há os dias determinados para se fazer isso. Todos os rituais têm cânticos, danças, comida, tudo isso na obrigação de axexê, que é quando a pessoa morre. No último dia, quando o ritual se encerrava, todos iam para missa.

Sair para missa às sete horas, naquele tempo, era mais difícil, porque não tinha táxi à disposição, entrava todo mundo na missa. Aí voltava todo mundo da missa, chegava na sala, aí o atabaque tocava... ninguém sabia o que era que estava fazendo.

Pensando nisso, a primeira coisa que eu tirei foi missa de axexê. Primeiro as missas do aniversário do santo, né? Era aniversário de Oxóssi, tinha missa para São Jorge e vice-versa. Aí eu tirei essas coisas, apesar de muita briga e muita insatisfação. Gastei muita saliva conversando sobre isso. Eu dizia: depois de vocês ficarem internados, fazendo obrigação aí não é bobagem, porque é sacrifício, depois de perder noite, fazendo obrigação em homenagem ao espírito do seu parente... Por que para ter valor e ser aceito tem que ir tomar a bênção ao bispo? Não tem necessidade disso. A gente senta, explica, mas graças a Deus a gente foi conseguindo nos liberar disso, e nós estamos aí.

Como nossa casa deu certo, eu pensei que as mulheres do candomblé,
minhas irmãs de santo, também pensavam... aí eu fui em algumas casas
respeitadas e conversei, fiz uns manifestos, algumas assinaram e entre todas essas que assinaram, isso foi no mês de agosto ou setembro, por aí, quando foi dezembro... Repórter é uma coisa antipática, né? O repórter pegou uma delas, coitada... “Mãe Stella falou aí, tal, sobre sincretismo e esse negócio de missa não adianta...”, “É... eu também não gosto, cada coisa no seu lugar”. Aí ele perguntou: “Venha cá, dia quatro de dezembro está chegando..” e ela: “Ave Maria, minha mãe... ê parrê... eu tenho que ver Santa Bárbara!” Entendeu? Depois de ter assinado o documento! Na 
internet tem esse documento, no museu também tem esse documento.

Uilma

– Eu tenho duas perguntas, mãe Stella: a primeira é que eu ouvi
atentamente a sua aula e fiquei pensando se essas modernidades que
essas novas tecnologias que Nelson tanto enfatiza, se elas não têm mexido um pouco na oralidade que é a forma pela qual a ancestralidade é passada. Eu fiquei um pouco preocupada. Será que a modernidade está chegando aos terreiros, ao candomblé e elas podem influenciar essa maneira de repasse desse conhecimento? Essa é a primeira pergunta.

A segunda é uma consulta, mas não é uma consulta pessoal. Na verdade, esteve na Bahia, há dois anos, o Ministro da Educação de Cuba. Ele esteve na Faculdade de Educação fazendo uma palestra sobre a educação cubana. Coube a mim e a outros professores da casa mostrar a ele um pouco da cidade de Salvador. À noite, nós levamos o professor de Matemática, que era o Ministro da Educação Cubana, ao Ilê Axé Ôpo Afonjá. Era um período de festas, daqueles ciclos de festas.

Chegando lá, o barracão é dividido: mulheres de um lado e homens do
outro. Eu fiquei assistindo exatamente na área feminina, e o Ministro da Educação, com seu grupo masculino, ficou do outro lado. Eu fiquei entretida assistindo à dança e esqueci do Ministro. Lá pras tantas, eu olhei pro lado masculino e o Ministro não estava. Eu tinha a responsabilidade de devolver o Ministro ao hotel e fiquei preocupada. Desci e fui procurar o Ministro. Então, eu o encontrei sentado no chão, na calçada, branco, pálido e suado. Suava a cântaros, e eu perguntei: “O que foi, professor?” Ele disse: “Não sei, pergunte a ela.” Ela era a senhora, era mãe Stella! Mãe Stella estava lá sentada dentro da casa, eu só sei que eu vim embora, trouxe o Ministro pro hotel, porque eu não sabia mais o
que fazer.

Eu não pude, realmente, chegar até mãe Stella, porque tinha muita gente no recinto, ele estava com dificuldade de respirar, e o que mesmo queria era tomar um banho, quando chegasse no hotel. Deixei ele no hotel, meia hora depois, liguei para saber se ele estava bem. No dia seguinte, fui levá-lo ao aeroporto, e ele me disse: “O dia que a senhora tiver oportunidade, pergunte a Ela o que aconteceu comigo.” Eu estou lhe perguntando, nessa oportunidade.

Mãe Stella

– Juro que eu não pensei que a senhora estava aqui para fazer uma
consulta à distância! Veja bem... com ele, duas coisas poderiam ter
acontecido: qual a cor dele?

Uilma

– Mestiço.

Mãe Stella

– De repente, ele tem alguma gotícula do sangue africano, tem alguma
herança, ainda mais se é de Angola, né? Os angolanos foram a primeira leva de escravos que vieram para o Novo Mundo. De repente, ele tem alguma espiritualidade, e isso o incomodou. Por outro lado, pode ter sido emoção, porque a casa estava cheia... havia muita gente, entendeu? Então, ou foi emoção, ou foi orixá mesmo. Nem eu posso dizer, só ele, porque, mesmo em Angola, essa tradição está quase esquecida. Ele era cubano? Ah! Ele é cubano. Pronto! Cuba está infiltrado. [Risos]

A outra coisa que você falou, o que foi? Ah... realmente, a oralidade está incomodando até a mim, porque, quando eu aprendi essas coisas de que falo, eu não tinha nada para anotar, era proibido! Atualmente não dá, e eu tenho pensado no porquê: primeiro, porque todo mundo gosta do mais fácil; depois, porque o tempo atual não dá! Eu tenho apenas 60 anos que fui iniciada e, nesse tempo, lá não existia luz elétrica, não existia água encanada, entendeu? A gente andava quase uma hora de ônibus, de bonde, porque o transporte era bonde, né? Eu, nesse tempo, fazia parte da elite, porque era estudante, mas as outras senhoras eram lavadeiras, eram domésticas, nem domésticas, eram vendedoras ambulantes e donas de casa, não trabalhavam, mas tomavam conta das suas casas.

Era isso. Quem ia vender era livre. Era liberal. Ia, se quisesse, se não quisesse, não ia. Até mesmo dentro do Axé, a gente passava os dias lá direto. São não sei quantos dias para Oxalá, sem sair aqueles dias todos. Tínhamos tempo de conversar com os mais velhos... Naquele tempo, o mais velho não ia sentar para fazer assembléia com ninguém. Se quiséssemos aprender, aprendíamos vendo. A coisa era mais diferente. Você ficava até com medo de tomar uma informação com uma senhora daquela: “Para que você quer saber?”. A resposta era essa.

Então, se você queria aprender, tinha que ficar atenta. Quem gostava, tinha tempo suficiente. Se ouvia uma explicação aqui, você ia para casa, lembrando dela. Lavando sua roupa, passando ferro, tomando conta do menino, você poderia estar mentalizando aquilo, podia até estar decorando. Hoje não, você está lá com as obrigações com o santo, de joelho e tudo mais e daqui a pouco : “Ô meu Deus! Esqueci de desligar o computador! A máquina de cálculo ficou errada!”. A vida está muito diferente, está muito tumultuada.

Essa coisa de informática é bom por um lado, mas é uma faca de dois
gumes: ela tanto ajuda a uns como prejudica a outros. Mas eu acho também que o orixá gosta de uma evolução! Se ele não gostasse de evolução, não nos dava condição, e a gente não estaria aqui agora. Então a gente tem que conciliar a cultura com a religião, para poder as coisas darem certo.

Ana Couto

– Mãe Stella, eu estive mais próxima do Ilê Axé na ocasião do Projeto São Bartolomeu, quando dois filhos de santo do terreiro... estivemos trabalhando juntos no sentido do resgate ambiental, cultural e religioso do parque São Bartolomeu. Uma das questões que nós trabalhávamos muito nas escolas do subúrbio, naquela ocasião, era o entendimento da oferenda, porque as pessoas lidavam com a oferenda como algo que representava sujar a rua, ou algo mal entendido, algo maléfico e principalmente sujo. Eu me lembro, naquela ocasião, que um dos ensinamentos e das memórias do candomblé é que o parque, assim como outros lugares da cidade, eles eram ainda bastante conservados do ponto de vista ambiental, das árvores, de alguns animais que viviam e que, de alguma forma, se alimentavam dessa oferenda após o orixá ter retirado a energia.

Eu queria que a senhora explicasse mais essa questão ambiental, o
desenvolvimento da cidade com menos áreas verdes e a questão do
candomblé. Será que nós vamos chegar em um momento que nós vamos
ter um painel virtual com árvores para podermos colocar as oferendas?

Mãe Stella

– Veja bem, pra gente, a oferenda é, como você falou, uma troca de
energia. Como você é religiosa, sabe que toda religião tem aqueles
fanáticos, tem aqueles que apelam para religião da negatividade e tem aqueles que apelam para as coisas positivas. Essas oferendas, quando são dadas, têm um determinado sentido, mas, se a pessoa pensar bem, não adianta botar um negócio no asfalto, aí é sujeira. Se a pessoa coloca no mato, em um determinado lugar certo, que o orixá determina, então  isso tem um sentido litúrgico. Aquilo são matérias orgânicas, aquilo depois vai se transformando em adubo. A terra é aquilo que transforma, que muda as energias.

Com a evolução e também com essa questão de que é uma prática
discriminada, fica ruim, porque entra naquela de perseguição e nós temos o cuidado de... Esse material, quem olha, vê que não vai prejudicar a terra de jeito nenhum. São coisas que depois se transformam em matéria orgânica como já disse. Para nós a oferenda é de muito valor, porque é energia que é posta, que é reconquistada.
De todas as religiões, o candomblé é a que mais enfatiza, mais valoriza, mais cuida do vegetal, de toda a natureza, porque se a gente precisa das folhas, é justo que a gente procure conservar. Você vê que existem árvores com mil anos aí, e todo candomblé tem seu pequeno parque guardado, porque nós valorizamos, nós cultuamos as plantas. Então, é evidente que nós não íamos botar nada que fosse decompor, estragar uma plantação. Aí, rapaz, é coisa da oposição!

Carla

– Mãe Stella, eu tinha duas perguntas. Uma era sobre as oferendas
espalhadas pela cidade. Eu ficava pensando: se isso é uma coisa sagrada, alguém colocou aqui com o intuito religioso e depois vem o caminhão do lixo e joga para dentro do caminhão com aquelas outras coisas, teve algum sentido, teve algum proveito? Será que está errado? Será que está certo? Isso a senhora já me explicou. A outra coisa, eu só posso falar por comparação, porque o candomblé eu, infelizmente, ainda não conheço. Eu até já escutei comentários maldosos durante a minha vida sobre o candomblé. Uma das coisas sobre o que sempre ouvi comentário maldoso  e que eu não sei de onde partiu, dizia que, por exemplo, na religião  cristã, existe uma separação: deve-se cultuar o bem, o bem está presente nos santos, em Jesus e aí tem a outra parte, a parte do mal que, no caso, seria o diabo, o demônio que deve ser abolida. Tem aqueles que fogem 
e que cultuam esses demônios.

No candomblé, sempre se dizia que tudo era uma coisa só, que era magia negra, magia branca, trabalho pro bem, trabalho pro mal, tudo junto no terreiro. Essa confusão muito grande sempre esteve comigo. Talvez eu  esteja falando aqui uma grande bobagem, mas, se a senhora falar um pouco sobre isso, a senhora vai tirar essa confusão da minha cabeça e da cabeça de muita gente que fica espalhando folhetinho: são satânicos! São satânicos!’. Queria aproveitar esse momento para desmistificar isso.

Mãe Stella

– Quando fazem essas conversas sobre o candomblé e as oferendas,
você vê a discriminação. Isso porque é uma religião que veio dos negros e que é africana. Nada que venha dos negros seria valor para eles. Mas, se você levar no lado inteligente, você vai ver que, na própria Igreja Católica, existem pessoas rezando para tomar o marido da outra, mil coisas aí, acendendo vela com o santo de cabeça pra baixo, tudo da Igreja Católica. Ninguém discriminou, ninguém nunca falou mal, nem disse que eles tinham parte com o diabo, que é criação deles também. A Igreja Católica foi quem o criou, porque era a religião dominante.

Há tempos aí, o Vaticano mandava no mundo. Agora já melhorou, mas...
então a gente espera cumprir a nossa tradição e não diminuir a dos
outros com coisas negativas. Nós nem conhecemos o diabo. O diabo
não existe. O mal está em nós, cada um está com seu mal e com seu bem. Uma coisa muito forte é a força do pensamento, a pessoa, quando tem uma mente deturpada, poluída, ela nunca pensa pro bem, ela pensa
sempre pro mal. Um cara tem inveja do outro e faz promessa na igreja
para fulano quebrar o pé, acende vela... No candomblé não existe diabo.

Essas oferendas são feitas, porque, se você tem um pedido, deve fazê-lo diretamente à própria natureza, porque o orixá é uma coisa invisível. Quem tem Axé vai no pé do orixá e bota, quem não tem, vai e bota no tempo, que é pro próprio tempo absorver a negatividade.

Esse negócio de trabalhar pro mal está dentro de cada um, eu não tenho esse negócio com o mal, não tenho axé para isso. Nenhum deus representa o mal.

Rebeca

– Eu tenho duas perguntas também: uma, é que eu nunca consegui
entender se existe realmente uma diferença entre candomblé e umbanda, se existe, qual seria a raiz dessa diferença, o que faria com que um fosse diferente do outro? Outra questão é assim: eu conheço uma pessoa que foi criada num meio que não tinha nada a ver com o candomblé, a família era de pessoas evangélicas e católicas.Ela então resolveu ir pro candomblé. Muita gente
dizia que não tinha nada a ver com ela, e ela discordava. Foi, mas dentro lá da própria casa, chegaram a dizer para outra pessoa, não para ela  diretamente, que ela nunca ia chegar a algum cargo alto dentro do candomblé.

Existe essa diferença de uma pessoa que nunca pode chegar a alguma
coisa, ou é uma opção da pessoa? Ou sempre que a pessoa quiser se
dedicar, ela pode chegar e ter algum cargo? Como é que isso é definido?

Mãe Stella

– Quem vai pro candomblé, para um lugar de axé, para ser iniciado,
para cultuar orixá, eu acho que ele vai para receber as graças e trocar. Ele dá o serviço, dá o pensamento, faz as oferendas e vai receber em troca uma energia boa que dê a ele um equilíbrio, que dê a ele uma força. Não adianta você ir pro candomblé já pensando em ser mãe de santo, ter um cargo, aí já não merece mesmo. Ninguém sabe se essa pessoa é simpática ou antipática, ninguém sabe se ela chegou lá com boas maneiras ou chegou querendo impor algumas coisas. No candomblé,  não tem hipocrisia, tem disciplina. Tem lugares aí que você é disciplinado queira ou não, mas lá você aprende a ser disciplinado. Essa questão de evoluir espiritualmente depende da pessoa e do próprio caminho. Se essa pessoa gosta do candomblé e se sente bem lá, ela pode ficar toda vida nessa casa como visitante, como amiga. Lá em casa tem gente que vai, senta no batente, fica sentado a tarde inteira e volta satisfeito. Tem gente que vai e pede para dormir, não tem isso que, porque entrou, tem de fazer parte. A gente faz parte de maneiras diferentes.


Sidnei

– Eu acredito que a presença da mãe Stella na nossa universidade hoje é a proposta da universidade aberta que vários professores aqui - incluindo a direção - têm abraçado: a universidade aberta para o social. Minha  pergunta para senhora é assim: que tipo de conhecimento a senhora acha que deveria fazer parte da formação dos nossos professores na faculdade, que viesse atender à comunidade que a senhora faz parte, já que é essa a nossa proposta de universidade aberta, que atenda às demandas sociais, que, enquanto universidade pública, ela pratique essa função realmente? A outra pergunta que eu tenho para senhora é: a organização da casa se faz pelo coletivo. Isso é muito rico, porque a gente acredita que favorece a democracia, a solidariedade, conseqüentemente, isso contribui para 
uma formação política. Para algumas religiões, não se deve misturar
política, ou seja, quem faz parte de uma religião não deve lutar contra as injustiças sociais, não deve buscar uma vida mais digna. Mas, diante da organização das casas de candomblé que favorecem esse discurso da democracia, como é que a religião vê isso? As pessoas que freqüentam podem lutar? E como lutam contra as injustiças sociais?

Mãe Stella

– Você vê que, quem mais sofre injustiça social, é o povo ligado à crença dos orixás que, na maioria, é negro, é quem mais sofre. Se nós ficarmos de braços cruzados esperando que o orixá deixe cair do céu... Nós temos obrigação de lutar pelo melhor! Nós não devemos tumultuar, fazer anarquia, mas nem toda luta é pacífica. Às vezes, você luta discutindo mesmo, tomando atitude e, às vezes, você luta mentalmente. Nós temos obrigação de lutar tanto mentalmente como com atitudes, com ações, para que termine essa desigualdade social.

Quando se fala em universidade aberta, o nome já está dizendo que
temos que estar abertos às intenções de todas as pessoas. A universidade é a formação de indivíduos que vão fazer o Brasil com o futuro amplo, aberto e feliz. Eu acho que vocês têm que estar abertos a todos os pensamentos, contanto que não sejam coisas negativas de anarquia nem guerrilha.

Vocês tiveram uma atitude interessante, quando me chamaram aqui para
falar de coisas ligadas às crenças nos orixás. Que amanhã chamem um
batista, um padre, abrindo a cabeça das pessoas para se ver que se pode viver num mundo, cada um seguindo a sua crença, tendo a sua
experiência, contanto que não se tente tumultuar o caminho do outro. A universidade é uma escola que nos ensina a viver com a diversidade. É isso que nos faz chegar a ser a Bahia, esse estado bonito, colorido. A Bahia é o estado mais colorido que existe. Você passa no elevador e vê aquele negócio bonito: preto, branco, mulato todo mundo misturado, então a cabeça também tem que estar assim, pensando no outro como um ser igual a si, sem lembrar de cor, religião.

Vamos ter compromisso com o bem, com a verdade, com a coerência e aí
a universidade vai bem, mas eu acho até que Deus está ajudando, Senhor do Bonfim, que é o dono da Bahia, é quem está colocando na universidade pessoas que pensam, que têm um discernimento bom para formar uma universidade aberta mesmo.


Antonieta

– Segundo relato de uma amiga minha, ela morou cinco anos no Senegal, ela dizia que lá tinham sessões musicais dentro de uma gruta, para fazer tratamento nas pessoas que tinham problema de esquizofrenia. Eu queria saber se aqui também tem esse tratamento com a música, com os atabaques. Eu sei que lá no Iguape, que era um antigo quilombo, tem uma gruta, o pessoal faz todo um ritual dentro da gruta, mas eu não conheço direito. Eu queria, por isso saber mais, se aqui também tem. 

Mãe Stella

– Nós temos uma gama de danças, fazemos muitos rituais com danças,
com cânticos, mas essa questão de curar... Nós não somos curandeiros, nós melhoramos o espiritual. Às vezes, o sujeito virou esquizofrênico, porque é tão tumultuado espiritualmente, tem tantas coisas atrasadas pra botar em dia, que acaba incomodando a cabeça, colocando nela uma esquizofrenia. Nós trabalhamos com o espiritual e é claro que, se o Ori estiver bem protegido, não haverá essas doenças, nem esquizofrenia, nem ataques, nem nada disso. Às vezes, a pessoa melhora se esse mal-estar for causado por espiritualidade baixa.

Manoel

– Bênção, mãe Stella. Eu queria fazer duas perguntas e a terceira seria um pouco uma defesa que eu sugeriria que a senhora fizesse. A primeira pergunta é a respeito das quizilas, do que é proibido e do que é liberado no candomblé. A segunda não é bem uma pergunta. Eu queria que a senhora falasse um pouco do poder das cores, como os orixás usam essa relação da cor: orixá/dia da semana, isso é uma coisa que eu observo aqui em Salvador e a gente faz até intuitivamente. Existe uma relação? Agora a defesa. Eu queria que a senhora fizesse a defesa de um orixá injustiçado, inclusive o pessoal batista ataca demais ele, o Exu. Eu queria que a senhora fizesse uma defesa do Exu, que, a meu ver, é o principal orixá, o orixá da comunicação. Até coloco ele como o orixá feniótico, que é o que tramita no meio dos outros.

Mãe Stella

– Se eu for falar para você agora das quizilas... primeiro: é quizila falar das quizilas! Se eu for falar de todas essas cores dos orixás, passaria mais uma manhã de conversa. Quizila quer dizer proibição, então nós, na nossa  prática, temos as nossas proibições. É aquilo de tal orixá não faz isso, de tal que faz aquilo, tal dia faz isso... é uma coisa muito ampla e é difícil eu dizer, mas você, quando tiver lá, a gente conversa sobre isso, viu? Sobre Exu. Se Exu for do mal, quem fez ele do mal foram os crentes, foram alguns católicos mal informados. Exu é comunicação, é movimento, é apropriação... Ele é o princípio de tudo. Como cada um tem o seu
atributo, uma vez que ele é o da comunicação, ele é o recadeiro, né? Ele que leva os nossos pedidos para Olodumare, para Olorum. Quem quer pedir, pede tudo a ele. E por ele ser mensageiro, todo mensageiro é um pouco interesseiro, né? Então, se eu pedir ao cara e ele achar uma gorjeta, todo dia ele vai querer dar aquele recado à pessoa, porque ele sabe que vai receber.

Apesar dessas características meio desarvoradas, as pessoas fazem o quê?! “Ah! Vou mandar uma carta para Exu, vou dar um dedo a Exu para não sei o quê...”. Coitado! Ele fica levando essa fama sem proveito. Às vezes, um vizinho chega e diz que vai te entregar a Exu e que a encruzilhada está ali... então as pessoas fazem dele uma figura má, um orixá mau, mas não é.

Olga

– Bom-dia, mãe Stella. Eu pouco entendo de candomblé, porque,
inclusive, eu cheguei ao Brasil, quando tinha 8 anos, vindo de outro
país. Eu queria saber como fica a questão do despacho, porque eu tinha pais que não entendiam nada de candomblé, eram de outra cultura. A gente sempre soube que, no despacho, a intenção é má, porque o indivíduo vai e encomenda ao pai de santo a morte de fulano, prejudicar sicrano. Então eu não sei se isso é permitido no candomblé. É legal? É condenado? Alguns fazem? Eu acho que todas as religiões deveriam ter algo em comum: pregar o bem, mas eu vejo que a própria religião católica, os reis se diziam católicos e faziam guerras, matavam milhões de pessoas, assim fazem os muçulmanos com a Guerra Santa. Eu sou agnóstica, mas sou curiosa. Gostaria de que a senhora me explicasse: despacho é o quê? Eu, aqui na minha ignorância, vi que despacho pode até matar uma pessoa! Uma
mãe de santo disse que, quem entra no candomblé, não pode mais sair
porque, se sair, vai ser pior para a pessoa...

Mãe Stella

– Em qualquer tradição religiosa sempre existem bons e maus pensamentos, boas e más índoles, existem os insatisfeitos, os invejosos, tem de tudo... Há pessoas capazes de tudo! Só por essas táticas que o povo do candomblé conseguiu respeito... “Não mexa com ele não, que ele é filho de santo, se não ele te mata!” Essa fama foi crescendo! O dia que o candomblé resolver trabalhar pro mal, não adianta ter Deus, ter orixá nem nada disso. São as pessoas que fazem essas coisas.

Tem gente que pega fama de feiticeiro... Que nada!!! Ninguém tem condição de tirar o que Deus fez, de matar o outro, não existe isso não. Às vezes, o sujeito se mata de tanto medo.

Lázaro

– Mãe Stella, eu sou do terreiro Omi Arimassô, filho de santo de Bel e sou abian na casa dele. Eu não tive oportunidade de perguntar a ele, venho perguntar à senhora: eu queria que a senhora me explicasse o que significa babalorixá.

Mãe Stella

– Isso está no dicionário iorubá. Baba significa faz, orixá significa ser supremo, então Babalorixá, bota apóstrofe para dar ênfase, então babalorixá ou ialorixá é pai ou mãe do santo

Felippe

– A minha fala é muito mais dirigida a nós. Nós da Faculdade, nós da
universidade. Assistimos hoje de manhã uma diferença essencial e que a universidade ainda não consegue reconhecer por causa do seu
iluminismo. Assistimos à diferença entre conhecer e saber.
Nós tivemos hoje, em Mãe Stella, uma expressão de sabedoria, não de
conhecimento e que é uma coisa muito mais profunda do que o que se faz dentro da universidade. Existem saberes de pessoas dentro da universidade, mas às vezes, ou sempre, esses saberes não são reconhecidos se não forem transformados no que se chama conhecer. É interessante, porque o inverso é que deveria ocorrer. Transitar pelo conhecer e chegar ao saber.

A universidade tenta reduzir quem sabe para quem conhece. Essa é a
grande lição que a Faculdade de Educação, com a felicidade da direção de Nelson, que não era o diretor há quatro anos atrás e trouxe uma outra sabedoria, que é a sabedoria das crianças e que agora, enquanto diretor, traz essa sabedoria de Mãe Stella para dentro da universidade.

Eu, como Reitor durante cinco anos, lutei para abrir essa universidade e para que ela encontrasse um novo caminho, que seria o caminho do saber, e não do conhecer. Fico muito feliz, agradeço imensamente à Mãe Stella e espero que a senhora, agora como membro do Conselho Universitário da Universidade Federal da Bahia, fale essas coisas pros nossos pobres dirigentes. Obrigado.

Nelson

– Mãe Stella foi eleita como suplente, a primeira suplente no Conselho Universitário, na primeira reunião de 2001. O novo estatuto da universidade prevê que, na composição do Conselho Universitário, três membros sejam pessoas de expressão na comunidade baiana. A idéia é oxigenar o Conselho Universitário. O nome de Mãe Stella era um deles e foi eleito como suplente. Isso para nós da FACED é uma honra muito grande. Houve um momento, no início da organização desse evento, que chegamos a pensar que nosso convite à Mãe Stella era porque ela fazia parte do Conselho. Pelo contrário. Não foi isso, ela já estaria aqui, porque era a sua sabedoria que nos levava a pensar que, de fato, ela deveria ser do Conselho Universitário.



Hoje, nós temos uma oportunidade dupla de, em nome da universidade,
mesmo sem estarmos autorizados para isso, mas com a nossa costumeira
ousadia, de dar as boas vindas à ela como conselheira e, principalmente, à Faculdade, neste início de mais um semestre, com uma programação que passa por outros caminhos, como a senhora mesmo tinha colocado, em termos de diversidade. O que esperamos é que a gente consiga, efetivamente, ter aqui dentro a diversidade. Sobre isso aprendemos muito nesta manhã. No meu ponto de vista, essa foi a lição maior que a gente poderia dar como abertura de semestre.

A senhora dizia ali para um repórter, e eu anotei rapidinho: “Aqui é tudo em cima de ensinamento” e, para mim, o ensinamento é sempre conversa, é sempre diálogo. A gente tem muito pouco tempo para conversar, justamente porque o aluno entra correndo, sai correndo, cumpre burocraticamente as obrigações e vai embora.

Então, aqui dentro mesmo, nós temos uma aula magna como essa que a
senhora proferiu e, certamente, em outras salas estamos tendo aulas
pequenininhas, porque existe a crença de que o currículo, de que o
cotidiano na universidade, se faz por esse ajuntamento de coisas
pequenininhas, não por uma coisa grande como essa, que foi essa nossa conversa.

Para ter acesso à obra completa:
file:///C:/Users/usu%C3%A1rio/Desktop/Juliana/textos/expressoes-de-sabedoria%20entrevistas%20M%C3%A3e%20Stella.pdf






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