segunda-feira, 24 de abril de 2017

Sobre "O Abuso da Beleza"



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Numa época como a nossa, em que as pessoas são agredidas diariamente pelas coisas mais monstruosas, sem que possam registrar suas impressões, uma produção estética se torna um caminho recomendado. Toda arte viva, porém, será irracional, primitiva, complexa: falará uma língua secreta e deixará documentos que não vão falar de edificação, mas de paradoxo.
Hugo Ball

A beleza é a promessa de felicidade.
Stendhal

Em seu livro O abuso da beleza, publicado em português em 2015, Artur C. Danto busca compreender o que levou vários artistas, do início do século XX em diante, a se afastarem dos apelos visuais da beleza. E, com isso, descontrói a noção, comum até hoje, de que a beleza é algo essencial para a arte, mostrando que existem outros valores, várias possibilidades para a experiência artística.

De acordo com o filósofo, foi no século XVIII que um determinado discurso que pensava a totalidade da arte dentro dos limites do belo se tornou oficial, cristalizando desde então essa equivocada noção de que para ser arte é preciso haver beleza. Claro que isso era algo que habitava o pensamento ocidental desde há pelo menos dois mil anos. No entanto, foi apenas no século XVIII, que o pensamento sobre a arte se tornou uma doutrina filosófica muito bem delimitada – a Estética – cuja principal característica era essa relação entre arte e beleza. À Estética se uniam a Ética e a Metafísica, de modo que beleza, bem e verdade formavam o tripé do espírito europeu.

Nesse sentido, o discurso sobre a arte sempre esteve atrelado à Ética e à Metafísica, às perspectivas da moral e da verdade. Assim, o valor da beleza não se restringia a uma satisfação sensorial, mas, sobretudo, espiritual. A boa arte não apenas satisfazia nossas retinas, mas elevava nosso espírito, contribuindo para seu fortalecimento moral e, consequentemente, para seu esclarecimento. A Estética atribuía à arte uma nobre tarefa, cuidar de nossa conduta moral e estimular nossa capacidade intelectual. Assim, a educação de nossos juízos estéticos – nosso gosto – era algo de grande importância para a formação de nosso espírito. Em nome do bem, da verdade e, claro, da beleza, muitos textos foram escritos, muitos quadros pintados, exposições organizadas e prêmios concedidos.

Até que no início do século XX, essa relação sofreu um forte abalo, quando começaram a surgir obras de arte que, explicitamente, não mais se prestavam ao deleite estético de seus espectadores – apesar de alguns terem se esforçado para isso. Algo começava a mudar no modo como os artistas se relacionavam com a beleza. Eles passaram a questionar aquele discurso dominante que imputava à arte o dever de ser bela, boa e verdadeira. Afinal, qual era o sentido de embelezar um mundo que, em nome da ilimitada cobiça de seus senhores, havia sido posto à beira do colapso? Todo aquele otimismo iluminista e positivista, do século XIX, que apostava no poder do esclarecimento e na promessa do progresso acabara por provocar uma inconsequentemente disputa por territórios, matérias-primas e armamentos, que logo fez eclodir a I Guerra Mundial.

Esse período foi marcado por um radical pessimismo, profundamente crítico dos mais altos valores que guiaram a formação do espírito europeu até então: verdade, bem e belo. Entre os artistas, o sentimento não foi diferente e muitos se lançaram em uma revolta niilista contra a beleza e a tudo de mais levado que ela representava. Era, pois, esse desejo louco e radiante – mas, claramente lúcido e deliberado – de assassinar a beleza que fez surgir no mundo da arte isso que Danto chama, em seu livro, de Vanguarda Intratável.

A Vanguarda Intratável aparece no livro como um nome para designar uma série de artistas que não necessariamente trabalhavam em grupo ou se conheciam, mas que compartilhavam entre si uma atitude de repúdio à beleza. Para esses artistas, atacar a beleza significava também uma ofensa deliberada contra a moralidade e, por conseguinte, contra a humanidade. Ou melhor, uma ofensa contra a hipocrisia e a corrupção do espírito europeu, que ao mesmo tempo em que inventava para si ideais supremos de beleza, bondade e verdade, promovia o caos, a fome e a violência, arrastando milhares de pessoas para a morte.

Um dos movimentos que, para Danto, integra essa Vanguarda – ou até mesmo seja seu precursor – é o dadaísmo.  De fato, os dadaístas chegaram a anunciar a morte da arte – da arte burguesa, comprometida com o bom gosto e os valores das classes dominantes. No início do século XX, o dadá era assumidamente uma revolta moral contra uma guerra horrível e fútil, contra o estado de loucura, agressiva e completa loucura de um mundo abandonado nas mãos de bandidos. Dentre outras contribuições do dadaísmo para a superação da beleza, foi com ele que a arte exerceu uma atuação ostensivamente política, abrindo um vasto horizonte de exploração para as gerações futuras.

A consequência mais direta do dadaísmo foi a produção de uma série de obras abjetas, ásperas e agressivas, como também tolas, debochadas e nonsense, que podiam apresentar tanto os mil vezes mil problemas do dia, quanto objetos banais do cotidiano ou retirados de lixeiras. Além disso, era comum a realização de happenings nos quais pessoas enfurecidas tocavam tambor, urinavam em pinturas e vociferavam poesias do tipo: “Vocês, filhos da puta, materialistas”/“Professores, aprendizes de açougueiros, cafetões!”/“Corja de vagabundos!”.

No dia da inauguração da primeira exposição dadaísta, em Colônia, uma garotinha, vestida com o traje branco de primeira comunhão, recebia o público, enquanto recitava poemas obscenos. O Chefe de Polícia da cidade chegou a abrir um processo contra os artistas por cobrarem entrada para uma exposição, onde decididamente não se viam obras de arte. Já para uma proeminente liderança política da época, Adolf Hitler, essas obras não passavam de produtos doentios de loucos ou degenerados, que deveriam ser levados para o hospício. Para o futuro führer, a arte moderna não passava de uma epidemia – uma doença da alma – que ameaçava arruinar os sadios valores artísticos, a saber, a criação da beleza e a dignidade da humanidade. Opinião, sem dúvida, compartilhada por muitos de seus contemporâneos, mas infelizmente ainda muito atual.

A questão fundamental para os artistas daquela época era, por meio do abuso da beleza, dissociar-se da decadência da sociedade. Posto de forma ainda mais radical, havia a compreensão de que o artista não tinha mais o direito de oferecer o deleite visual da beleza para uma sociedade imoral. De fato, atacava-se a corrupção moral da sociedade, não necessariamente a moral, nem a humanidade. O que se fazia imperativo era lhe oferecer, ao contrário, um chute na bunda – como dizia um slogan dadaísta dos anos de 1910. De produtores da beleza, os artistas deviam se tornar provocadores de repulsa. Sua ação não devia se restringir ao campo da Estética, mas mirar a atuação política. Não mais causar admiração, mas contribuir para a transformação do homem, da sociedade, do mundo. Por fim, mesmo entre os dadaístas, o casamento entre a arte e o bem estava preservado.  

Graças à Vanguarda Intratável, Danto afirma, foi possível não apenas começar uma nova história para arte, para além da beleza; como também, foi possível ver o seu passado mediante uma nova luz: “a arte sempre teve um número muito grande de possibilidades estéticas”. Era uma distorção da própria teoria ou filosofia da arte supor haver apenas uma – a beleza.

Mesmo na própria Antiguidade Clássica, terra da natal de nossas ideias sobre beleza, podemos citar exemplos de obras visuais que não têm como objetivo a produção de beleza e o deleite do espectador, mas a feiura, o grotesco, o monstruoso, o horrível. Tal é o caso das máscaras votivas dedicadas à Ártemis ou as imagens femininas, por exemplo, que reproduzem a face terrível de Gorgó. A Górgona reúne simultaneamente o humano e o bestial, o horror e o risível. A cabeça é ampliada; os olhos arregalados; a cabeleira desgrenhada, às vezes substituída por serpentes; a boca rasgada trazendo a língua projetada para fora; a pele coberta por rugas.

Sem dúvida, não estava em jogo aí o prazer desinteressado do espectador. Pelo contrário, tratava-se de suscitar, em quem ousasse contemplar tal imagem, os pavores da guerra, do inferno, da noite. Nesse sentido, os artistas da Vanguarda Intratável estavam retomando toda uma dimensão da arte, ou melhor, da própria vida, que vinha sendo sistematicamente negligenciada em nome de certos ideais de beleza e comportamento, bem como descobriam a força política da arte.

Ao longo do século XX, Danto continua, foi se desenvolvendo uma desconfiança em relação à beleza, que perdura até hoje. Ao ponto de se considerar ser melhor para a arte ser repulsiva do que bela. De fato, é melhor ser qualquer coisa, menos ser bela. Beleza passou a ser sinônimo de alienação, conformismo, subserviência, colaboracionismo, elitismo. Afinal, diante do estado atual do mundo, ainda é moralmente inaceitável um artista se preocupar exclusivamente se um vermelho se ajusta em um azul. Enfim, aquilo que outrora orientou a Vanguarda Intratável continua a valer ainda hoje: o mundo tal como ele é não merece beleza.

No entanto, Danto aponta para o fato de a teoria da arte não ter acompanhado essa transformação e ainda buscar fundamentar seus discursos na beleza, indo de encontro às propostas dos próprios artistas: “Vejo a descoberta de que algo pode ser boa arte sem ser belo como um dos grandes esclarecimentos conceituais proporcionados pela filosofia da arte do século XX, embora essa descoberta tenha sido feita exclusivamente por artistas(grifo nosso).

Nesse sentido, seu livro O Abuso da Beleza pretende preencher esta lacuna. Mais uma vez, Danto fala sobre o quanto foi desafiador para ele seu encontro com as Brillo Box, de Andy Warhol, em 1964. A obra, um ícone do movimento Pop, imita com exatidão o formato e o design de uma embalagem comercial das esponjas de aço com sabão da marca Brillo, a ponto de poder se confundir com ela.

Seguindo o caminho aberto pela Vanguarda Intratável, que havia rompido com o paradigma da beleza, a Pop Art foi um esforço para romper com a distinção entre o erudito e a cultura de massa – o kitsch, ou em bom português, o brega. Tendo isso em vista, muitos artistas passaram a se esforçar por reproduzir, seja na pintura, na serigrafia ou na escultura, imagens de histórias em quadrinhos, logomarcas, embalagens, fast-foods e coisas do tipo. O encontro com as Brillo Box foi, então, desafiador e transformador, pois foi nesse momento que o mundo da arte entrou na vida de Danto como um problema filosófico: “a partir do momento que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, não faz muito sentido perguntar se isso ou aquilo pode ser uma obra de arte”.

A pergunta que agora se fazia relevante era: isso pretende, ou melhor, se destina a ser arte? Afinal, uma coisa específica pode não ser considerada uma obra de arte hoje, mas amanhã... Trata-se do antigo jogo sobre o qual Duchamp escreveu em seu texto O ato criador. Para uma coisa se tornar uma obra de arte basta que alguém reivindique sua autoria e a insira no circuito da arte, de modo que ela seja validada pelos frequentadores desse circuito (não adianta deixar a obra guardada no armário). E pronto, a mágica está feita.

De fato, isso vale bem para qualquer área de trabalho, não apenas para a arte. Porém, sem dúvida, o mundo da arte tem se mostrado muito mais plástico e radicalmente aberto às transformações, de modo que seria inteiramente em vão qualquer tentativa de definir o que é a arte tendo em vista alguma norma ou modelo. Hoje, ou melhor, já há um tempo, tudo tem o potencial de se tornar uma obra de arte – o que faz com que esta seja uma ótima época para ser um filósofo da arte! Isso porque, o fim da era da supremacia da beleza abre a possibilidade de, pela primeira vez, ser pensada a questão o que é a arte?

Até então, de acordo com Danto, todo pensamento sobre a arte era limitado por seu copertencimento à beleza, de modo que a questão, o que é a arte, nunca pôde ser pensada de maneira radical. Hoje, quando o sentido do que é a arte não está mais limitado pelo que ela deve ser ou parecer, o pensamento está liberado de todo e qualquer fundamento. Não há mais nenhuma bússola apontando o norte. Caminha-se como que sem lenço, nem documento – para além da segurança do já conhecido. Isso não no sentido de ignorar tudo o que já foi escrito sobre o assunto, mas apenas que estamos liberados das amarras conceituais da tradição, bem como de suas limitações históricas. É no próprio exercício de pensar o que é a arte que vai se abrindo o caminho que nos conduzirá a um sentido possível, que sem dúvida, jamais extinguirá a necessidade de renovados caminhos e sentidos. Essa é a força das grandes questões humanas, o seu caráter misterioso e enigmático.

Se hoje tudo pode ser arte, a pergunta pelo que é a arte passou a incorporar a pergunta pelo que é a própria realidade e ainda, de acordo com Danto, um algo mais, à medida que a arte busca promover a transfiguração do real, de seu lugar comum. Que algo mais é esse? Quando o artista produz ou se apropria de algo ele pretende provocar certo espectro de reações, atitudes e/ou pensamentos no público. Desse modo, Danto afirma, há uma espécie de modulação na experiência artística, certo conteúdo intrínseco. Quando Duchamp expôs sua Fonte ou quando Warhol expôs suas Brillo Box, eles não podiam prever, na sua totalidade, as impressões e sentimentos que provocariam, mas, sem dúvida, ambos buscavam, no mínimo, algum tipo de inquietação e questionamento acerca do que a arte pode ou não pode ser. Nenhum dos dois estava interessado em uma experiência exclusivamente retiniana, silenciosa e fechada em si mesma. Afinal, algo pode ser arte sem ser belo. No entanto, Danto argumenta: o conteúdo constitui uma condição necessária para a arte. E isso é algo que o próprio Kant precisou admitir, a arte dá muito a pensar.

Nas últimas páginas do livro, Danto ainda surpreende e faz um contraponto ao paradigma da negação da beleza, apontando o problema de algumas exposições estarem se tornando simplesmente um mercado de ressentimentos ou um congresso de moralistas amadores: “A beleza é uma opção para a arte e não necessariamente uma condição. Mas ela não é apenas uma opção para a vida. Trata-se de uma condição necessária para a vida como a queremos.” Ninguém pode suportar um mundo de pura respulsividade. Assim como há na arte muito mais do que beleza, no mundo não há somente repulsa, horror, mentira, sofrimento. O ressentimento não pode ser o valor dominante, nem da vida, nem da arte. Esse tipo de pessimismo apenas é um sinal de fraqueza do caráter, diria Nietzsche.

Afinal, algum homem ou mulher já viveu sobre esta terra sem lidar com o caráter terrível e problemático da sociedade? O pessimismo não é um privilégio de nossa época; os próprios gregos – essa civilização que tanto inspirou a formação do espírito europeu – foram seus profundos conhecedores. Porém, eles não tentaram negar o aspecto repulsivo da vida, floreando-a com ideais fictícios, nem tampouco se transformaram em moralistas ressentidos ou niilistas consumados. De acordo com Danto, é inegável que a beleza é uma condição necessária à vida, algo que nos ajuda a viver. E, nesse sentido, a repulsa seria sua grande aliada, sua grande estimulante. Se há algo de surpreendente e grandioso na vida – nisso que nós mesmos somos – é o fato de mesmo em meio à noite do não ser sempre poder surgir, repentina, uma estrela dançante. Apenas isso já deveria ser suficiente para nossa admiração e reverência.


Um comentário:

  1. Obrigado por compartilhar essa bela resenha. Por outro lado, é interessante e talvez mais até triste observar como as idéias chegam com atraso ao Brasil...

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