quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Heinrich Rombach. Filosofia e poesia: uma busca

FILOSOFIA E POESIA: UMA BUSCA

Heinrich Rombach

1.         Desafio

A forma originária do poeta se expõe no mito de Orfeu. Orfeu é o cantor do tempo imemorial capaz de falar a todos os seres e cujo canto encantava a natureza, tanto a viva quanto a não viva. O mito deste poeta culmina na tentativa de libertar Eurídice, sua mulher recém-morta, a quem ele quer retirar do mundo subterrâneo. Embora não deva olhar este mundo, ele olha. E ao olhar, perde Eurídice e seu canto passa a ser de luto e tristeza. Como diz esse mito, a poesia pode tornar vivos os mortos. Isso diz, por sua vez, que a presença em poesia está ‘morta’. De início, tudo está simplesmente ‘morto’, necessitando de uma fala autêntica que se lhe dirija a fim de adquirir vida própria, isto é, de adquirir uma vida que mereça esse nome. Poesia é a força fundamenta da vida ou, em outras palavras, um acontecer curioso e inexplicável em que algo se ergue e desperta para dimensões de um plano elevado da presença, a saber, para a vida. Vida é um processo de despertar. Todo despertar é poético. O ‘poma’ é apenas uma forma específica da poesia subjacente e atuante em todo ser que permite com que oda a realidade ‘se abra’ em seu fundamento.

Esse movimento fundamental de toda a realidade parece descobrir sua contradição num movimento inverso: a ‘virada’, o verter-se para, o passo atrás, rumo às fundações. Em suma, a re-flexão. Diz-se do patriarca da filosofia, Sócrates, que ele teria sido o mais sábio dos homens por ter realizado integralmente, e pela primeira vez, essa virada, apreendendo o fundamento mais interior da presença como precipício e chegando, assim, à tese fundamental do ‘sei que nada sei’. Ambos os movimentos, voltar para trás e verter-se para cima, filosofia é poesia, parecem se contradizer e combater. O poeta perde a ‘palavra afluente o se apoiar em ‘conceitos reflexivos’, o filósofo perde sua credibilidade ao errar pela ‘poesia’. Apesar de estarem em contínua relação e se engancharem um no outro no verter e reverter, ambos trabalham em direções contrárias e precisam se evitar. Evitar, porém, é também uma forma de buscar, uma forma acentuada de decantação.

A história espiritual das culturas caracteriza-se, quase sempre, pelo relacionamento de contraposição entre poesia e filosofia e, talvez, a tensão fundamental, que distingue o ser humano em meio a toda a natureza, possa ser apreendida como a copertinência de dois movimentos elementares contrários, como desafio entre filosofia e poesia.


2.         Solo da vida

A vida do homem – e não apenas do homem – possui uma abrangência pluridimensional. Ele não poderia ser se já não estivesse sempre mobilizado por esses movimentos elementares da vida e deles recebesse a força para prosseguir o movimento. Todos os processos vegetativos e fisiológicos de seu corpo transcorrem de si mesmos e é somente a partir deles que o corpo se faz possível. O crescimento, o metabolismo, a circulação sangüínea, os processos naturais do sono e vigília, tudo isso nele se realiza como um ‘neutro’, como fundamento natural da vida sobre o qual repousam todas as ações e conhecimentos individuais e pessoais. No entanto, a adaptação natural do homem aos movimentos da vida que o circundam e envolvem alcança e atinge dimensões ainda mais profundas que o seu corpo. Ele participa da vida terrestre da natureza como um todo, do acontecer temporal e histórico da terá e dos anos, da transformação entre matéria e lu, de toda a eco-nomia da água e ar, das tensões fundamentais de gravidade e energia. Todos esses acontecimentos elementares estão numa relação de troca recíproca e apresentam uma forma ontológica de comunicação. Comunicação é linguagem. Todo ser, em seu caráter fundamental de acontecimento, é fala e troca. A linguagem verbal do homem é somente o nível mais superior da fala em que a totalidade da natureza acontece.

Na medida em que o homem acontece de modo a corresponder à comunicação fundamental da própria natureza, nós temos algo que ver com a ‘poesia’. O poeta compreende o dizer como a fala em conjunot de tudo que é vivo na forma articulada de um acontecimento de troca. Quando o poeta fala de amor, todo amor fala junto com ele, ao falar do declínio de um povo, o declínio, enquanto acontecimento elementar, fala junto com ele.

Quando a sua poesia fala da alegria, tudo se alegra com ele. Essa consonância dos fundamentos e aprofundamentos de nossa presença faz com que a linguagem poética se movimente e seja movida nesse modo. E Orfeu pode apenas falar a todos os seres porque fala a linguagem de tudo que é. Em seu modo de falar, o acontecer da natureza vibra e fala junto com ele.

As formas originárias da poesia são os mitos, sagas, contos, ou seja, os modos de expressão que ainda resguardam em si a transindividualidade e o anonimato do fundamento da vida. Mesmo onde a poesia se torna ‘poema’, onde, portanto, se pretende expressão do indivíduo, os fundamentos da vida ainda falam junto com ele, transportando todas as proposições para além de cada validade individual e subjetiva e transformando a palavra singular numa evocação da abrangência do acontecimento do ser.

Não é apenas o solo natural da vida, ou seja, o fundamento elementar do ser do homem que, na poesia, se faz linguagem mas também o solo epocal, histórico da vida em seu movimento de constelação, isto é, a camada dos significados fundamentais. Decisões fundamentais como liberdade e escravidão, Deus e homem, destino e indivíduo, povo e pátria, guerra e paz, dever e convivência, constituem o conteúdo da poesia. O poeta não fala sozinho. O círculo cultural, a contemporaneidade epocal, o povo e a raiz histórica sempre também falam junto com o poeta. A palavra poética possui essa obrigação frente às camadas mais fundamentais da presença, na medida em que essas camadas não subjazem à opinião singular e sim abrangem e comportam todas as opiniões. Mesmo quanto a individualidade e personalidade se apresentam como o conteúdo próprio do espírito do tempo, a sua palavra permanente uma palavra historicamente abrangente e universal por mais que pareça remeter a cada personalidade poética. Uma individualidade que nada mais é do que arbítrio subjetivo não tem nenhuma competência poética e não alcança aquele grau de validade universal interior capaz de lhe assegurar um sentido em seu percurso.

Poesia, pode-se dizer, significa falar a partir do fundamento. A partir do fundamento da vida que consiste tanto no âmbito elementar das pressuposições naturais da vida humana como no âmbito histórico dos significados fundamentais de cada configuração epocal da vida. Esse fundamento multiforme da vida adquire linguagem na poesia para, então, emergir diante do homem. É ele quem o conduz, liga sua existência aos movimentos de vida mais poderosos e maiores da natureza e da história, e transporta o indivíduo para além de si mesmo. A presença poética aprofunda e eleva a existência do homem, reunindo-a e tornando-a disponível para os fluxos de articulação em que se mantém a vida em sua proveniência.


3.         Horizonte e realidade

Assim como a linguagem da poesia provém dos fluxos pré-individuais e poderosamente reais da própria vida, o pensamento da filosofia se faz compreensível a partir da universalidade da vida humana. O homem jamais está inteiramente absorvido pelas contigências e facticidades de sua vida. Estas, na verdade, manifestam-se sempre a partir de um horizonte universal de realidade, a partir de ser, sentido e vida. Mesmo quando o conhecimento e a ação se compreendem a partir dos fatos singulares ou da disposição de metas, eles sempre aparecem num horizonte ainda mais abrangente que se funda, por sua vez, em horizontes de envergadura ainda maiores que, por fim, remetem ao horizonte da universalidade em geral, a um sentido fundamental de ‘ser’, ‘vida’ e ‘verdade’. A totalidade desse horizonte dimensional é sempre viva e, em última instância, aquilo que conduz a ação e compreensão humanas. O homem pode então procurar se assegurar da construção multiforme da estrutura de todo horizonte e tentar a clareza mais explicita possível acerca das condições de sentido dos diversos conceitos e contextos conceituais. Esse esclarecimento posterior da estrutura do horizonte de cada vida chama-se ‘filosofia’. O filosofar é o processo de auto-esclarecimento da vida histórica do homem cuja claridade total não é primeiro produzida pela filosofia mas sim conquistada gradativamente em cada passo. A presença já pode ser em si mesma cheia de claridade e articulação. Como tal, ela é ‘luminosa’ e ‘espiritual’, não imortando o grau de distinção conceitual que aí se inscreva e exercite. O filosofar pode, portanto, acontecer na medida da vitalidade, sem referência aos conceitos, mas apoiado sobre o horizonte da compreensão. Nesse sentido, a existência do camponês pode ser igualmente clara e luminosa, e o mundo do pescador, espiritual e universal. Ela se ilumina, então, nos passos claros da universalização, chegando aos horizontes mais externos de vida e sentido. ‘Filosofia’ como o acontecer da claridade, encerrado na linguagem e restrito por conceitos não apresenta nenhuma vantagem frente aos demais acontecimentos, permanecendo algo que se funda no clarão não terminológico da existência como tal. Somente numa existência plena de espírito é que a filosofia se torna configuração de conjunto, luminosa e realmente iluminadora, como simples movimento terminológico, perdido no matagal de teorias mais ou menos universais, a filosofia é sempre uma tagarelice em torno do nada. O teórico tagarela desconhece a diferença instaurada pelo filosofar substancial que aspira à realidade. O filosofar, porém, que se preenche da realidade do todo não possui nenhum conceito através do qual possa se entender com a tagarelice terminológica. Entre Hegel e o ‘hegelianismo’ subsiste um princípio de diferença, entre Heidegger e sua ‘literatura secundária’ existe a diferença entre realidade e nulidade, por mais ‘compreensível’ que essa literatura posa ser. Entre linguagem e saga não existe qualquer comunidade. A ciência filosófica fala muito mas não diz nada. Aquilo a ser dito não se deixa exprimir em nenhum linguajar. Está aí, no simples dizer do homem.

O filosofar acontece de bom grado na verdade e não no que é correto. Ele não ‘se relaciona’ com a realidade, pois é o acontecer da própria realidade. Pensar e ser são o mesmo. Na medida em que o ser, nos movimentos de claridade, encontra-se sobre múltiplos graus de comunidade, ele se encontra no pensar. Na medida em que o pensador ‘pensa’ nessa dimensão, ele se move numa ‘ascensão’, assim referida e descrita por muitos pensadores, para a própria realidade a qual chega à apreensão de si mesma no pensador e, assim, ao seu ‘ser’. A filosofia, portanto, não deve ser medida por um parâmetro de correção mas apenas pelo parâmetro de verdade que designa o grau de intensidade dessa auto-apreensão do ser.

Isso pressupõe que o homem seja mais do que um homem, isto é, um ente, que ela seja algo que não apenas ‘toma parte’ do ser mais que constitui uma localidade de toda a realidade e, desse modo, do próprio ser.


4.         Expansão da presença

Assim como o homem, ao assumir o pensamento do ser (genitivus subjectivus), se intra-universaliza no acontecer da realidade, ele penetra no fluxo total da realidade quando a presença se aprofunda até as raízes fundamentais da vida. Com isso, porém, ele nem se desprende de sua individualidade nem se perde nessa expansão de seu espírito, que lhe chega como acontecimento da universalidade do próprio ser. Ambos são copertinentes. Na medida em que o homem retorna aos fluxos obscuros e poderosos da vida, ele se universaliza no sentido de expandir sua própria compreensão no processo de auto-iluminação do próprio ser. O aprofundamento da vida e a expansão do pensamento estão numa relação de reciprocidade que significa, ao mesmo tempo condição e contradição. Quanto mais o homem renuncia ao brilho pessoal em favor do poder vital, que aparentemente é algo inteiramente obscuro, mais ele parece agir contraditoriamente ao expandir seu pensamento. Na verdade, porém, ao conceber sua individualidade como localidade do todo, ele não se perde na violência da articulação da vida. Ele só pode encontrar essa auto-compreensão se permanecer enraizado nos fluxos poderosos do acontecer da realidade. E somente isso pode impedir a filosofia de se arruinar na tagarelice de terminologias arbitrárias.

Se o homem não se intimida diante da riqueza desses seus dois alcances, a profundidade e a vastidão, ele não chegará a intuir o que ele é o que é a destinação do seu ser. Poesia e filosofia aprofundam e elevam sua presença, permitindo que ela soe como manifestação ressonante da própria realidade.
5.         Mundo e mundos

O homem vive num mundo. Isso pode parecer uma trivialidade. No entanto, é o mais espantoso. Para ele tudo se abre, ele é a essência da universalidade, para quem a totalidade sempre se revela, por mais distintas que possam parecer as separações em que vive. Para apreender a parte separada do mundo em que vive, é preciso que justamente a totalidade já se lhe tenha aberto. A abertura do todo é a revelação originária que atinge o homem enquanto homem e somente através da qual ele se torna homem.

Entretanto, o mundo não lhe diz respeito apenas porque ele já é sempre o receptor de uma revelação originária. Ele lhe diz respeito às forças da vida, além de agirem sobre ele, falam para ele. Ele não responde apenas à luz em que algo se lhe ilumina, ele responde também à terra em que faz a experiência da gravidez e obscuridade como tendências originárias. Ele não apenas vê a água que se lhe afigura em horizontes variados como múltiplo meio, mas sente, dentro de si, o afluxo e as fontes como acontecer originário que resguarda todas as suas demais vivências e é, em tudo, vivenciado. O real não se manifesta para o homem apenas na universalidade do seu horizonte, mas o próprio homem é terra e natureza que se manifesta em todas as manifestações. Nele, a totalidade vem totalmente ao encontro. Não apenas como o conjunto de tudo mas como acontecer do todo, que age a partir de si mesmo, como sua vida corporal. O mundo como vida corporal, no processo contínuo de encontro e desempenho de si mesmo, anuncia-se nas duas forças e versões, na extroversão e introversão, na poesia e na filosofia. Ou melhor: poesia e filosofia são as duas direções a partir das quais os círculos infinitos da vida se compõem, responde e são Poesia e filosofia são, de certo, somente manifestações exteriores da manifestação total que é, ao mesmo tempo, manifestação da totalidade. No entanto, por mais que sejam partes, nelas sempre acontece a totalidade da versão e reversão, a totalidade de vida a ser. Por isso pouco importa que tudo já tenha sido pensado e que mesmo a última gota tenha sido poetizada. A totalidade já acontece no pensamento mais simples e no poema mais modesto. Assim, não se trata mais de filosofia mas do filosofar. Onde se fala o pensamento singelo em sua verdade e a palavra autêntica em sua profundidade, à totalidade acontece, em cada lugar. Por isso, filosofar e poetar são, simultaneamente, o mais universal e o mais singular. Ao acontecer, acontece no homem tudo o que pode acontecer. Por isso, neles, o homem se sente totalmente abrigado na plenitude do ser.

Não se deve, porém, entender a vastidão da universalidade de maneira exterior. O homem não é universal porque abrange tudo e sim porque nele o todo emerge ‘de determinada maneira’. Sua universalidade, sua razão, é muito específica, é histórica. O mundo emerge no homem aqui e ali, agora e depois, cada vez, diferentemente. Não existe o mundo, somente os mundos.

O que se ergue em todos os homens e se verte em palavra afluente não é uma profundidade única e sim uma profundidade que flui a cada vez, em palavras sempre novas. Por isso, cada poesia é uma linguagem única. E somente aquele que é capaz de aprender a linguagem própria de um poeta pode ouvir sua palavra como poesia.

Somente aquele que sabe conceber os pensamentos próprios de um pensador como um modo próprio e completo da razão pode conceber um pensador como filósofo. Não se pensa duas vezes um pensamento, assim como não se diz uma linguagem duas vezes. Aí reside a originariedade da origem, a autenticidade da palavra e a verdade do pensamento.


6.         Vida e ser

Na poesia, a linguagem não é passível de comunicação. O poeta não fala para os outros. Também não fala para si mesmo. Na poesia, a realidade se fala, atendo-se e retendo-se para si mesma.

O pensar não faz pensamentos de alguma coisa, ele tem a realidade no pensamento. E, com isso, a realidade viva, o ser que está sendo.

Porque a linguagem não é passível de comunicação e o pensar não está referido a objetos, ninguém pode se introduzir na linguagem e no pensar, pois já nos encontramos neles. Pensar significa encontrar-se no pensamento, a cão da poesia, encontrar-se no dizer, e é nisso que consiste o aspecto hermético, difícil e inacessível de seu acontecer. Não é possível se introduzir porque é neles que se cresce. Crescer é, portanto, o acontecer fundamental comum a ambos. Crescer é uma palavra para ser.

Tudo o que é chega no modo de cresce para o ser. Ser, no modo movimentado de crescer, chama-se vida. A presença do homem é viva segundo a medida de seu crescimento, seguindo os múltiplos passos e graus. Cada um desses passos conduz, ao mesmo tempo, à profundidade obscura e à vastidão brilhante. Todo passo vital é também poético e pensante mesmo quando não acontece em artes e ofícios, em disciplinas e academias. O artístico e o acadêmico ficam ocos e vazios quando, no fundo, não são a ação poética da própria vida e o pensar do próprio ser.

O homem só poderá se libertar da prisão de si mesmo quando parar de se compreender como sujeito e tudo o mais como objeto, quando começar a retomar os movimentos da vida e as aberturas do ser que acontecem antes dele e lhe servem de base. Esse acontecimento abrangente acontece na presença humana quando ele habita poeticamente e vive pensantemente. Para isso, não se precisa nem de poeta nem de pensador, embora, nesse sentido, eles sejam mestres da vida.

É tempo de se compreender mais profundamente filosofia e poesia, de nelas prosseguir mais amplamente e de devolve-las ao homem enquanto homem. Sim, ainda mais, de deixá-las viver e ser na vida e no ser.[1]

Tradução de Márcia C. de Sá Cavalcante.




[1] Henrich Rombaché professor Doutor em Filosofia e titular da Universidade de Würzburg (RFA).

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