sábado, 16 de maio de 2015

Duas lições de poesia

Fernando Pessoa (22)



Alguns toureiros

                                                                           João Cabral de Melo Neto


Eu vi Manolo Gonzáles 
e Pepe Luís, de Sevilha: 
precisão doce de flor, 
graciosa, porém precisa.


Vi também Julio Aparício, 
de Madrid, como Parrita: 
ciência fácil de flor, 
espontânea, porém estrita.


Vi Miguel Báez, Litri, 
dos confins da Andaluzia, 
que cultiva uma outra flor: 
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez, 
que cultiva flor antiga: 
perfume de renda velha, 
de flor em livro dormida.


Mas eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais deserto, 
o toureiro mais agudo, 
mais mineral e desperto,


o de nervos de madeira, 
de punhos secos de fibra 
o da figura de lenha 
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava 
o fluido aceiro da vida, 
o que com mais precisão 
roçava a morte em sua fímbria,


o que à tragédia deu número, 
à vertigem, geometria 
decimais à emoção 
e ao susto, peso e medida,


sim, eu vi Manuel Rodríguez, 
Manolete, o mais asceta, 
não só cultivar sua flor 
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão 
com mão serena e contida, 
sem deixar que se derrame 
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la 
com mão certa, pouca e extrema: 
sem perfumar sua flor, 
sem poetizar seu poema.




O ferrageiro de Carmona

João Cabral de Melo Neto                                 


Um ferrageiro de Carmona,
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.


Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.


Existe a grande diferença
do ferro forjado ao fundido:
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda, em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas?


 Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de forma,
moldadas pelas das campinas.


Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força,
Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga.


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