quarta-feira, 9 de março de 2016

Verdade e liberdade - Frei Hermógenes Harada



VERDADE E LIBERDADE

Seminário sobre o texto:
Da essência da verdade, de Heidegger

Frei Hermógenes Harada

(http://www.freiharada.com.br/)


(2º SEMESTRE de 1970)





1a Reunião: em vez de uma apresentação

Carl-Friedrich von Weizsäcker é o iniciador de Max-Planck-Institut para investigação das condições de vida do mundo técnico científico. Conta entre os maiores cientistas atuais que como experto na moderna física teorética e filosófica ao mesmo tempo, procura mostrar o condicionamento antropológico-filosófico do modo de ser humano chamado Ciências, tenta conscientizar o mundo científico contemporâneo da necessidade de sentir a responsabilidade humana-ética nesse nosso século de energia atônica.
Weizsäcker é um cientista de avantaguarda que sente e pensa hodiernamente e vê na ciência e técnica contemporâneas a decisão, a chance, o risco, a tentação de ser - homem de uma nova forma, cheia de responsabilidade, perigos e promessas. Enquanto tal, tem muita afinidade com Heidegger.
Em vez de amontoar datas sobre a vida de Heidegger, fosse mais interessante para nós, ouvir o testemunho de Weizsäcker, que em poucas palavras traça o perfil espiritual de Heidegger. Quanto a dados biográficos de Heidegger , peço que cada qual procure se informar como puder nas enciclopédias, nas orelhas da sua vida.
Testemunho de Weizsäcker sobre Heidegger, feito numa entrevista na televisão alemã, aos 24 de setembro de 1969.
“Hoje, tenho a tarefa de dizer em duas palavras algo sobre Heidegger. No entanto, justamente a filosofia de Heidegger nos esclarece que não é possível esclarecer em 4 minutos a filosofia de Heidegger. Por isso, gostaria tão somente de testemunhar que, segundo a minha opinião, Heidegger é o filósofo mais importante do século 20, talvez o filosofo do século 20.
“Quem sabe, se contribua para a compreensão, se eu descrever como fiquei conhecendo Heidegger. Foi assim: naquele tempo, eu era jovem físico, aluno de Werner Heisenberg. Alguém teve a seguinte idéia e a sugeriu a Heidegger: Heidegger convidaria a Heisenberg, justamente como o meu tio médico Viktor Von Weizsäcker  (célebre professor de medicina). Assim, poder-se-ia criar um contacto entre Heísenberg e Weizsäcker e provocar um diálogo sobre o problema de relacionamento entre a Medicina (como o meu tio a concebia) e a física (como Heisenberg a compreendia). Diálogo, portanto, sobre a pergunta, se existe um encontro entre Medicina e a Física na compreensão da realidade e do homem.
“O diálogo foi realizado. E Heisenberg levou-me consigo como seu assistente. Foi no ano de 1953 na pequena cabana de Heidegger em Todtanauberg, na Floresta Negra”.
“Nós estávamos sentados num pequeno quarto, ao redor de uma mesa estreita. Heidegger ocupava uma das extremidades da mesa. Ao lado, um contra o outro, Heisenberg e Weizsäcker”.
“Estes começaram pois a falar um com o outro. Falaram muito excitados, durante talvez uma hora. Discutiram e também brigaram. E finalmente se engalfinharam de tal sorte na mútua oposição que já não se entendiam mais”.
“Foi somente então que Heidegger – que os auscultava atentamente – se imiscuiu na discussão”.
“Dirigiu-se a um dos disputantes e disse: ‘Portanto, Sr. Weizsäcker, se eu entendi bem , o Sr. Pensa o seguinte...” E seguiram três frases perfeitamente claras. E Weizsäcker:  “sim, é exatamente isto que quis dizer!
“A seguir dirigiu-se Heidegger ao outro disputante: ‘Sr. Heisenberg, o Sr., se é que o entendi certo, pensa isso assim...’ de novo Heidegger formulou três frases bem precisas. E Heisenberg: ‘precisamente, foi isso que eu queria ter dito”.
“Então, continua Heidegger, parece-me que o relacionamento entre as posições dos senhores pudesse talvez ser o seguinte”. E novamente seguiram quatro ou cinco frases. Cada um dos oponentes respondeu: “Sim, talvez assim pudesse ser. Sob essa base poderemos continuar a discussão”. E o diálogo continuou.
“Esta cena, o meu primeiro encontro com Heidegger, me levou a perceber que Heidegger abstraindo-se totalmente da própria doutrina que propagou nas suas escrituras, é capaz de auscultar e compreender o pensamento alheio, de compreender melhor do que as próprias pessoas que o pensaram”.
“Diria pois: Isto é um Pensador”.
“Isto é tudo que hoje gostaria de dizer sobre ele”.
(Martin Heidegger im Gespräck, entrevista na Segunda televisão alemã, aos 24 de setembro de 1969).


2a Reunião: Da Essência da Verdade

Ao ler um texto, seja talvez a sua atitude a de aprender. Você lê com a intenção de ab-prender, para tirar do livro o que está ali contido: uma doutrina, um ensinamento, um conhecimento.
Essa atitude, no entanto, não funciona com os textos de Heidegger. Pois, ali trata-se de um questionamento. Desde a primeira linha até a última, se movimenta, se desenvolve um processo, um caminho de indagação, de pergunta.
Antes de mais nada, portanto, você deve entrar dentro da ‘jogada’ do questionamento.
Com outros termos, você ao ler, deve despertar em você a pergunta, a indagação e seguir fielmente o fio do desenvolvimento da pergunta.
Se você, não tem muita facilidade de penetração num texto, é talvez porque você não abriu na sua mente rasgos de questionamento. Talvez tudo é demasiadamente óbvio, natural para você. É preciso então acordar o seu intelecto para a atitude de questionamento. É preciso que você desperte da ingenuidade.
Abrir em si feridas de questionamento, na terminologia de Heidegger, se chama: colocar a questão. Colocar a questão significa: trabalhar um problema de tal maneira que ele se torne insuportavelmente pesado para você, ao ponto de se transformar numa questão de sua vida.
Ao ler o livro de Heidegger experimente ficar atento a trechos nos quais você pode meter, fincar a unha da sua compreensão. Um texto filosófico é como uma muralha lisa, maciça; para escalá-la você deve descobrir nessa superfície uma fenda, onde possa fincar uma unha.


Para a seguinte reunião:
1)  Conseguir o texto; ler todo o texto.
2)  Preparar especialmente o trecho introdutório:
a)  entender todos os termos que ali ocorrem;
b)  entender todas as construções gramaticais que ali ocorrem;
c)  dizer de que se trata nessa introdução (por escrito);
d)  tentar responder por escrito as seguintes perguntas:
-  quantos conceitos de verdade ocorrem nesse trecho?
-  quais os qualificativos que o trecho dá à essência?
-  que idéia de Filosofia você encontra no trecho?
-  conforme o trecho, em que relação está o mundo da Filosofia e a vida cotidiana?
-  qual o argumento que Heidegger aduz nesse trecho para dizer que é importante o questionamento da essência da verdade?
3)  Fazer as seguintes perguntas em particular para si mesmo:
-  o que é verdade para mim? Uso e abuso desse termo? Na minha vida acho que estou vivendo conforme a verdade? Preocupo-me com a verdade? Mas, o que é, afinal, a verdade? Uma palavra oca? Tem importância uma pergunta sobre a verdade?                
-  uso também a palavra essência. O que é essência para mim? Uma simples questão acadêmica? Como vivo a minha vida de reflexão? Deixando-me levar pela corrente monótona dos acontecimentos cotidianos? Sem reflexão? Sem procurar a essência das coisas?
-  a Filosofia trata de coisas abstratas, ao menos aparentemente. Por que então você estuda a Filosofia? Como erudição? Como treino para pensar? Será que vale a pena o estudo da Filosofia? Se não vale a pena, o que vale a pena para você? E nisso que vale a pena viver para você, que função exerce a que chamamos de verdade?
-  experimente, pois, com todo o empenho, esquentar a sua “cuca”, perguntando, confrontando-se, preocupando-se com a pergunta: o que é a verdade para mim? Para minha vida?
Talvez você terá uma resposta pronta… Talvez uma resposta que é um lugar comum. Um chavão. Um slogan. Experimente, então, perguntar-se: estou seriamente convencido disso ou digo isso porque ouvi dizer?
Depois de ter se esquentado muito com essas perguntas, ler de novo, bem devagar, a introdução. Despertar em si uma grande vontade, sim, necessária de saber o que é, afinal, a Verdade!
O termo essência em alemão é: wesen. Wesen tem o sabor dinâmico de: sendo. Aquilo que dinamicamente está agindo, sustentando, vitalizando… Para nós também a essência conota algo de nuclear, central, de fundamental importância. Aquilo que faz com que a verdade seja vida, núcleo, a dinâmica é a essência da verdade. O que será, afinal de contas, isto: a essência?
O que você imagina quando diz:
-  a verdade dessa frase : 2 + 2  = 4?
-  a verdade de minha Vida?
-  a verdade da Boa Nova?
-  a verdade da Fé?
-  a verdade da obra de arte?
-  a verdade nos fará livres?
-  isso é de fato verdade?
-  você está dizendo a verdade?
-  quem me garante que o que você diz é verdadeiro?
-  a verdade desse livro.
Que diferença existe entre a verdade e:
-  veracidade;
-  autenticidade;   
-  real, factual – realidade?
Para o estudo da Filosofia é de grande importância você ter um grande desejo de ter uma experiência originária de um profundo pensamento que pode transformar a sua vida. É de importância vital ver um filósofo como Heidegger, não um sábio acadêmico de idéias abstratas e longe da vida, mas sim alguém que teve uma profundíssima experiência do Pensamento que lhe abriu toda uma visão nova, todo um mundo riquíssimo em sentido da Vida. Se você quiser aproveitar algo para a sua vida, do pensamento filosófico, deve livrar-se da maneira vulgar, diria, burguesa, de encarar a filosofia como uma saber acadêmico, abstrato e sem vida. Deve enfrentar a Filosofia com seriedade mortal, como quem luta com o pensamento uma luta livre. Se você é Espírito, se o pensar é uma realidade, então, você é responsável por sua capacidade de pensar. E a luta corpo a corpo com o pensamento na experiência real da reflexão se chama Filosofia.
Ao ler um autor, não considere a leitura como um passatempo acadêmico, como ocupação de utilidade para o enriquecimento cultural, como erudição. Filosofar, assim, ter a Heidegger nesse espírito, é perder o tempo num humanismo romântico do passado. Filosofar como erudição tem tanta importância para a vida como a conversa ridícula dos grã-finos sobre as lutas sangrentas em Vietnã. Leitura filosófica e filosofar têm somente o sentido real, se você está disposto a sangrar e entrar em crise da sua vida, para que o pensamento comece a adquirir um peso insuportável, peso que pode ameaçar o seu mundo instalado e ingênuo.
Mas… qual é a sua atitude, a sua concepção de um estudo?


3a Reunião : Sobre a essência da Verdade

No texto original, em vez de ‘sobre a essência…’, temos a palavra vom (Vom wesen der wahrheit).
Vom equivale ao nosso de. Portanto, em vez de ‘Sobre a essência da verdade’ é melhor dizer ‘Da essência da verdade’.
Para que essa observação pedante é minuciosa?
Por causa da estrutura do título e do livro. Nessa partícula vom está concentrada toda a problemática do livro!
Da essência (Vom wesen) é uma expressão propriamente ambígua.
De pode significar: sobre. Mas, também, a partir de, pela força e pela graça de. Portanto, Da essência da Verdade pode significar:
a)  Sobre a essência da Verdade.
b)  A partir da essência da verdade.
No caso a) você está, por assim dizer, ‘fora’ da verdade, tem a essência da verdade diante de si como objeto da sua pergunta, indaga, fala sobre ela. Mas, nesse caso, resta uma questão fundamental: ao falar sobre, donde é que você fala? Qual a sua posição, a norma, a medida que você usa para falar sobre? Qual a sua pressuposição? A partir de que visão, de que enfoque, de que dimensão fala você sobre?
No caso b) você não tem a Essência da Verdade de si, mas, por assim dizer, atrás de si. Você, se fala, fala a partir da essência da verdade, envolvido, ‘acossado’, ‘entusiasmado’, na ‘possessão’ da essência da verdade. A Essência da Verdade é o agente, o ‘sujeito’ da sua fala.
A estrutura, tanto do fenômeno a) como a do b) são ocorrências banais do cotidiano. Experimente você mesmo descobrir 3 exemplos para o caso a) e outros 3 para o caso b).
O importante para nossa leitura é o nosso indagar:
Como se relaciona, a estrutura a) e a estrutura b)? Que conexão existe entre o falar sobre e o falar a partir de?
O livro começa falando sobre a Essência da Verdade. Fala-se sobre ela isso ou aquilo. Fala-se bem, fala-se mal. Fala-se de modo concreto, vital, utilitário; fala-se de modo abstrato, inutilmente, de maneira alienada e alienante. Tudo isso, todos esses que falam isso ou aquilo sobre a Essência da Verdade, donde é que eles falam? O que é que os move? Qual o agente da sua fala sobre a verdade?
Com outras palavras: o que se fala sobre a Essência da Verdade, já está impulsionado por algo que está nele, que o envolve, algo que é mais fundamental do que e anterior ao falar sobre a Essência da Verdade.
Essa dimensão mais fundamental e anterior é o que se expressa pelo termo da (a partir de) Essência da Verdade. Portanto, o caso b) é o fundamento do caso a).
O livro faz, portanto, no seu caminhar o seguinte processo: começa perguntando e falando sobre a Essência da Verdade. Mas, ao perguntar sobre vai descobrindo ao leitor as raízes donde nasceu a estrutura do falar, perguntar sobre. Imerge, portanto, na pressuposição da estrutura ‘falar sobre’, isto é, vai à História, examina geneticamente os fundamentos, donde o falar sobre haure a sua verdade, a sua constituição. Mas, ao fazer isso, o texto vai nos revelando, aos poucos, uma estrutura que não é mais o ‘falar sobre’, mas algo como a própria presença da Verdade que nos capacita a ‘falar sobre’ a Verdade.
Nós, homens, enraizados na estrutura da Verdade que tem a forma de ‘falar sobre’, estamos virados para o objeto, estamos presos, por assim dizer, a essa estrutura do ‘falar sobre’. Diretamente não podemos ver o lugar a partir do qual olhamos e enfocamos os nossos objetos. Por isso, ao examinarmos a Essência da Verdade, só podemos falar sobre a Essência da Verdade, ao passo que ao fazermos isso nós na realidade já estamos falando e perguntando a partir da Essência da Verdade.
Como ‘virar a cabeça’ e ver a origem a partir da qual estamos falando, pensando, investigando? Parece não haver outro meio a não ser caminhar, falar sobre e nesse processo, dentro dele, auscultar e captar a presença de uma estrutura originária.
Por isso, o texto desse livro deve ser lido nesse jogo de ambigüidade que no falar sobre sempre nos insinua um falar a partir de.

Tarefa para a seguinte reunião:
1.  Ler o 1o  capítulo
2.  Cada qual, individualmente, tentar entender o texto.
3.  O grupo 1 formula, por escrito, as perguntas sobre os pontos que o grupo (ou um dos membros do grupo) não entendeu. Formular também perguntas capciosas que sondem a medida de compreensão do grupo adversário. Ler o texto, portanto, sob o enfoque de fazer boas perguntas.
4.  O grupo 2 ler o texto e preparar o texto de tal maneira que consiga responder as eventuais perguntas do grupo 1.
5.  Cada qual, individualmente, tente procurar 2 exemplos concretos de um ‘falar sobre’ no qual se manifesta o ‘falara a partir de’. Fazer isso por escrito.
Algumas questões de perguntas a fazer a si mesmo enquanto lê o texto do 1o capítulo:
-  o que será, afinal de contas, esse misterioso ‘real’? Quando entendo sob o termo ‘verdadeiro’ real: o que é esse real?
-  o que significa quando digo: é, existe? O que é que imagino, por exemplo, quando digo: Deus existe? Deus é real? O Espírito é real?
-  como é que você imagina a criação do mundo? Você diz: Deus criou o universo. Portanto, cada coisa foi criada por Deus. Como é que eu imagino tudo isso? Você ao ler a concepção da Idade Média, como está escrita no texto, acha tudo isso estranho? Ou ela corresponde mais ou menos com o que você pensa e imagina?
-  o nosso conhecimento é espiritual. O objeto lá fora de mim, por exemplo, a montanha é material. Como é possível uma adequação? Um conhecimento? Como é possível conhecer a grandeza da montanha, se a montanha não entra na minha cabeça? Como você imagina o conhecimento?
-  Ao ler, faça sempre de novo perguntas a você mesmo. Seja homem de perguntas, tente ter muita iniciativa perante você mesmo em se formular boas perguntas. A sua inteligência se torna cada vez mais viva, enquanto você tem a capacidade de fazer a si mesmo boas perguntas-estopins que acordam o seu pensar.
Se você tiver muita dificuldade de entender o texto não desanime. Faça uma luta livre com o texto. E, se de fato não funcionar, pergunte, dê um jeito de abrir uma fenda no texto.


4a Reunião: Sobre a Essência da Verdade

O título do primeiro capítulo é: O Conceito Usual da Verdade.
O método fenomenológico de Heidegger quase sempre começa a sua análise com o usual. Com a compreensão que possuímos na vida cotidiana. Começa tateando a palavra que usamos na nossa vida normal e procura descobrir a estrutura que lhe está atrás. Por isso, se você quiser compreender o texto, deve fazer o mesmo. Pronunciar a palavra verdade, observar como você a usa, e ouvir, auscultar em você mesmo, que sentido a palavra verdade tem em geral. Você deve, pois, escutar a voz que vem do interior da palavra.
Você vai ouvir várias vozes. O uso da palavra verdade na vida cotidiana nos evoca diferentes sentidos. Ouvir a algazarra ou o murmúrio vago e confuso dessas vozes e tentar ouvir neles um tom fundamental, alto, que possa ser um traço comum em todos os sentidos.
A seguir vou rapidamente traçar o fio do problema da verdade no texto de Heidegger.
O Conceito usual, em uso, da verdade nos indica que o pivô da dificuldade está na concordância: adaequatio. Pois quando digo ‘verdade’ eu entendo: aquilo que faz com que isto ou aquilo (frase, juízo, coisa) seja verdadeiro: ‘seja verdadeiro’ significa: corresponda, concorde com – a) o que devia ser, e b) com o que é.
a) – O que devia ser: é uma idéia, norma, ideal. Uma finalidade, o ponto final onde algo que é atualmente deve chegar para se tornar aquilo que ele em si é, ‘devia ser’. Aqui há um momento de transcendência. Transcendência no sentido de ir para além do que é atualmente, superar (metafísica...).
b) – O que é: é a realidade hic et nunc. Quando emito um juízo: isto é assim, essa enunciação em relação à coisa apresenta um movimento de transcender a si mesmo para ir à sua norma que é aquilo que está na minha frente.
Portanto: em ambos os casos, quando falo da verdade, estou falando desse movimento de transcendência. Na transcendência há o ponto de partida e o ponto de chegada. Há também o movimento de superar o ponto de partida, isto é, para além de...
O ponto de partida e, correspondentemente, o ponto de chegada podem tomar várias formas e denominações: por exemplo – dentro/fora; eu aqui/a coisa lá; juízo/objeto; conhecimento/realidade; sujeito/objeto; homem/mundo; mundo/Deus; contigente/absoluto; natural/sobrenatural; presente/futuro; realidade/utopia; começo/fim; etc, etc.
Em que relação estão o ponto de partida e o ponto final?
Em que consiste o movimento de superação, de transcendência?
Os dois pólos, a saber, o ponto de partida e o ponto de chegada, são pólos existentes em si, independentemente um do outro?
Não é assim, que um não pode existir sem o outro; que ambos são correlativos como pai e filho?
Donde vem essa correlação? A correspondência?
O movimento de transcendência não é justamente o que cria essa correlação? Não é esse movimento de transcendência que cria os pólos de correlação?
Se for assim, então o problema é embaraçoso. Pois o uso comum do conceito de verdade começa a reflexão já fixando como existentes em si, óbvios, sem problemas, o ponto de partida e o ponto de chegada. E pergunta, como essas duas coisas estão ligadas?!
Que tal se o problema for anterior? Que tal, se os pontos fixos como existentes em si, fossem, por assim dizer, resultantes do movimento de transcendência? O problema da verdade se torna problema do movimento de transcendência.
Posso chamar a transcendência de liberdade, pois é um movimento de superação e libertação.
O problema da verdade, se transforma no problema da Liberdade.
E se a liberdade como o movimento de transcendência é a estrutura fundamental do homem. O problema da verdade, no fundo, é o problema da estrutura fundamental do ser – homem.
Em vez de liberdade – transcendência posso dizer também: existência = ex-sistência. A estrutura do homem é existir, isto é, ser, conservar-se no movimento do ex, isto é, na abertura constante de se superar. O problema da verdade é o problema da ex-sistentia, é, portanto, um problema ex-sistencial.
Mas, donde vem que o homem é ex-sistentia? Por que não é como pedra, que não necessita para ‘ser’ do movimento de transcendência?
Haveria para o homem a possibilidade de não ser transcendência? De ser o presente puro, sem dever-ser? O que é ser originariamente homem? A estrutura bipolar da transcendência não é uma modalidade menos originária do ser-homem? O que é ser originariamente homem?
Eis, como o problema abstrato da adequação se transformou na indagação pela essência originária do ser-homem como ex-sistentia.

Tarefa para a seguinte reunião:
1. O trabalho dessa vez vai ser individual.
Cada qual ler e reler de novo o primeiro capítulo.
2. Anotar todas as palavras que você não entende. Tentar ver se entende.            
Anotar para perguntar na reunião que vem. Portanto: fazer a tentativa de entender o texto do 1o  capítulo tão bem que não lhe resta nenhuma palavra ou frase que não entenda.
3. Ler essas apostilas para entrar dentro da problemática heideggeriana. E a partir dessas explicações, tentar ler novamente o capítulo, para ver se entende um pouco mais.
4. Ao ler, tomar sempre de novo uma atitude de independência intelectual. Criar em si, um certo brio e ambição de querer descobrir você mesmo o sentido do texto, sem facilmente recorrer ao outro. A tensão e a fossa são necessárias, para que a compreensão tenha depois peso. Depois de muita luta, então consultar.




1. Protocolo da 3a reunião do seminário: sobre a essência da verdade.

O protocolo distinguiu dois tipos de existência:
a) existência do senso comum.
b) existência filosófica.
Traçou as característicos de ambas as existências que demonstram, nitidamente, as diferenças entre si: Características opostas: a) comum a todos os homens em geral – b) só a pequeno número de dotados especialistas; a) concreta, vital, prática – b) abstrata, longe da vida, teorética; a) cotidiana, sensível, palpável – b) especial, inteligível – intelectual, irreal; a) normativa para a vida prática – b) essencial – aprofundada intelectualmente.
As diferenças eram tão opostas que entre a e o b parecia não haver reconciliação.
Surge então o problema: como se relacionam a existência do senso comum e a existência filosófica?
A discussão nos mostrou o seguinte relacionamento.
A existência do senso comum é uma existência que esqueceu e, por conseguinte, ignora o fundamento da sua existência. Ela funciona e opera dentro de uma limitação, de uma bitola, sem saber donde vem o elan, a força, e o sentido da sua totalidade.
A filosofia, isto é, a existência filosófica não é outra coisa do que a busca do fundamento, do sentido originário da existência do senso comum. Portanto, as verdades reais do senso comum, só serão compreendidas originariamente na sua limpidez e autenticidade a partir da verdade essencial, revelada pela autenticidade da existência filosófica. Nesse sentido, a verdade-essência é, num sentido mais profundo e autêntico, a verdade real, vital.
Aqui surgiu outra pergunta: mais como a existência do senso comum desperta para a necessidade do questionamento essencial?
Pelo esgotamento, pelo bloqueio ocorridos no próprio seio da existência do senso comum. Dali o sentido ‘positivo’ dos fenômenos como tédio, angústia, esvaziamento do sentido, crise, etc... ou pela invasão e pelo impacto vindos de fora, do encontro com uma outra dimensão mais forte, e originária.
A partir dessa discussão ficou-nos claro o seguinte:
O que Heidegger chama de verdades vitais da existência autêntica, onde as ocorrências são manifestações espontâneas e dinâmicas da plenitude da Vida.
A existência do senso comum em Heidegger já está numa situação de decadência e fossilização.
Essa situação é a situação histórica da estrutura ‘ocidental’ que é a estrutura da ‘ratio’.
Para que nessa estrutura de ratio surja a dimensão do questionamento essencial é necessário imergir na situação da existência do senso comum, para levá-lo ao esvaziamento, na esperança de que dali surja a chance de aprofundamento.

Reflexão para ambos os seminários

A filosofia, segundo Hegel, é o ‘mundo às avessas’, visto a partir da sã razão humana (Cfr. Que é Metafísica, capítulo 1o). Em vez de sã razão humana podemos dizer ‘o senso comum’.
O senso comum é a nossa existência cotidiana, cara a cara com a realidade. É o senso prático, concreto, palpável, o mundo da verdade real.
A Filosofia para esse mundo de realidade é um mundo abstrato, inútil, e sem eficiência real. Para a descrição dessa oposição entre a existência do senso comum e a existência filosófica cf. a introdução do livro Sobre a essência da verdade.
Por que o mundo às avessas? As avessas indica a direção oposta ao normal. Às avessas é o outro lado daquilo que estamos vendo. O filósofo em relação ao homem do senso comum é aquele sujeito que anda de pernas para o ar e a cabeça para baixo, como quem anda dando continuamente cambalhotas. Se o senso comum vê que as montanhas estão firmes, assentadas majestaticamente nos seus alicerces inabaláveis, o filósofo, como vê tudo às avessas, de cabeça para baixo, vê as montanhas penduradas, como que ameaçadas a cada momento de cair, de se precipitarem no abismo sem fundo do céu. Você já imaginou que se não fosse a atração da terra, todas as coisas soltas cairiam para cima? (Cf. G. K. Chesterton, S. Francisco de Assis, também o livro: O homem que era quinta-feira).
O característico do homem do senso comum é a sua objetividade.
Objetividade aqui significa: virado para o objeto, para o ser. Virado, enfocado para a coisa diante de si. É real. É rea-lista.  É coisista. Está dirigido, fascinado, apossado pelo ente. Certamente, ele é também ‘subjetivo’. Ele se olha a si mesmo e se define: eu sou o sujeito. Mas ao fazer isso, ele está dirigido a si mesmo como a um ente real (res: objeto), a um objeto ele tem a pre-tensão de captar o subjetivo objetivamente.
A existência do senso comum, portanto, é uma existência sobre a coisa. A Ex-sistência, abertura sobre a coisa. Para isso, o pensar, o falar, e o perguntar sobre: isso é ...; o que é isso? A verdade do senso comum, portanto, é a verdade sobre.
A existência filosófica fica intrigada com tudo isso. Ela se pergunta: Por que é que o senso comum não é capaz de captar a si mesmo a não ser objetivamente, a não ser objetivando-se como objeto? É necessário sempre e absolutamente falar, pensar e perguntar sobre? Não haveria a possibilidade de não pensar, falar e perguntar – sobre, mas a partir de si mesmo?
O que é esse sujeito que se chama a existência-do-senso-comum, existência que se estrutura como abertura, à tensão para o ente, como pré-ocupação, como diligência, como elan debruçada sobre a mesa, sobre o ente? Essa estrutura ela mesma deve ser também objeto necessariamente? Ou não será uma “realidade” que está ‘além’ ou quem sabe para ‘aquém’ da existência objetiva, portanto, também do subjetivo objetivista da existência do senso comum?
Se para o senso comum, a res, a realidade, o objeto é um dado a partir do qual tudo enfoca, tudo ordena e constrói, para a existência filosófica ele é por assim dizer o término de uma tendência, por assim dizer o pro-ducto de uma abertura. Abertura que é um dado, um estar-ali antes do objeto.
A existência do senso comum dirige a, se encontra com os entes, vive e opera no meio deles, se ocupa com eles, considera-se ela mesma como um ente entre os entes. Mas não percebe que tudo isso é possível porque já está ali aberto um mundo, dentro do qual algo como isso ou aquilo se torna possível e recebe um sentido.
A existência filosófica não se interessa por isso ou aquilo, não por ela ser abstrata, mas porque ela percebe que, anterior a isso ou aquilo, é necessário se preocupar da abertura, da totalidade em que isso ou aquilo é necessário se preocupar da abertura, da totalidade em que isso ou aquilo aparece e tem sentido como isso ou aquilo.
Com outras palavras, a filosofia não se dirige a coisa, mas sim à possibilidade das coisas, às condições fundamentais que possibilitam as coisas.
Coloque-se agora na situação de uma vaca, de um boi ou se quiser de um coelho. Você vê tudo sob o enfoque do capim suculento. A realidade, os entes para você, se constituem de diferentes modalidades de capim, a realidade das coisas são medidas segundo o grau de intensidade de ‘suculência’. Num mundo assim constituído, a medida do real é a suculência. Uma pedra, por exemplo, não existe, não é real, e se real, ela o é somente enquanto tem referência à suculência, aqui sob o aspecto de ‘não-capim’. Você já viu um coelho comendo uma catedral de pedra? Você (enquanto coelho, vaca, boi) vê uma rosa. Você dirá: que gostosa! A beleza é não ser. A beleza é não-tragável. Portanto, na dimensão, no mundo, no horizonte da suculência, a rosa enquanto bela não existe. Como você está só virado, aberto às coisas enquanto suculência, o real, o prático, o palpável é o ‘comestível’. A partir dessa realidade, tudo quanto não é comestível, ou não existe ou está fora do mundo, ou é abstrato, irreal, não prático. E se existisse uma vaca que começasse a desconfiar que a sua realidade é um mundo irreal, é uma vaca des-locada, fora do real, o seu mundo é ‘as avessas’. Mas a vaca filosófica, como teve a intuição da situação a partir da qual algo como rosa se torna real só enquanto comestível, dirá: vocês deveriam ver o seu mundo às avessas, pois às avessas significa: ser fundamental, ir às raízes do mundo comestível.
Você não é vaca, nem boi, muito menos um coelho. Você é homem. Mas como homem, você está virado para as coisas, chama tudo de ente, de objeto. Você pode reduzir tudo quanto encontra a um último núcleo de compreensão: o ente. De tudo você pode dizer: é, é algo, é coisa, é objeto, é ente. Será que a sua situação é diferente à da vaca, à do coelho? Em vez de ‘comestível’ diz você: é ente.
A partir de que, donde, de que situação fala você?
O que possibilita que você tenha esse tipo de abertura na qual tudo lhe aparece como ente? Não somos prisioneiros de uma dimensão, não somos cativos de um tipo de totalidade, onde devido à nossa limitação, não somos capazes de ver e perceber ‘realidades’ que estão diante do nosso nariz, porque não somos capazes de operar a não ser dentro do horizonte do ‘ente’? Mas o horizonte que não é do ente, será que é ainda horizonte? O que é afinal?
O primeiro capítulo de Que é Metafísica? nos coloca no centro dessa desconfiança. Desconfiança que nos torna questionável a coisa mais óbvia do mundo comum. Torna problemático, torna digno de questionamento, o fundamento mais evidente de todo o nosso pensar, falar e ser. Será, no entanto, tão evidente?
A partir desse questionamento, o conceito de nada começa a tomar uma importância vital. Pois o nada parece ser uma ‘realidade’ que não se encaixa dentro da dimensão do ‘ente’.
O que é afinal o nada? Por que tudo é ser e não nada?
Essa reflexão baseada no Que é Metafísica? vale também para os que fazem o seminário de Sobre a Essência da Verdade. Pois, a mesma reflexão vale para o que ali dissemos de: falar sobre a verdade e falar a partir da verdade.





5a Reunião: Sobre a Essência da Verdade

Favor ler o segundo capítulo que fala da possibilidade interna de concordância. O texto no começo é fácil de entender. Começa a ficar difícil, quando começa a determinar mais detalhadamente em que consiste a concordância entre a enunciação e a coisa.
Peço que leia o trecho mesmo que seja difícil. Não largue a idéia de que é você que deve descobrir o sentido do texto. A descoberta, por pequena que seja, se for sua, é de máximo valor. A seguir, somente algumas reflexões para talvez facilitar (ou dificultar?) a abordagem do texto:

1a Reflexão: A dificuldade principal na compreensão do texto somos nós mesmos. Quando falamos de, ou ouvimos falar de conhecimento, objeto, coisa, comportamento, adequação, etc. já temos uma determinada imagem pré-estabelecida, ‘epistemológica’ ou ‘psicológica’, de tudo isso. Por exemplo: quando dizemos, ‘esta pedra’, eu a pressuponho como algo ali existente anterior a mim, como se pedra fosse sempre pedra como ela está ali na minha frente, como se bastasse eu simplesmente captar a sua imagem como ela é. Ou quando falo da imagem da pedra, eu me imagino à guisa de uma máquina fotográfica que recebe, na câmara interior, a imagem do objeto exterior. Heidegger diz: é necessário suspender a fé nessa pré-compreensão para intuir a ‘realidade’ como ela é. (na linguagem da filosofia contemporânea essa suspensão se chama ‘redução’; e volta à intuição direta da realidade: ‘volta-à-coisa-ela-mesma’).
O que Heidegger faz nesse capítulo 2 não é outra coisa do que analisar a estrutura de um jogo (S e P), quando dizemos por exemplo esta pedra é quadrada.
O termo chave usado por Heidegger é Vor-stellen. Vor-stellen significa colocar na frente. No texto português temos apresentar, representar, ou presentar. Pode-se também: objetivar, apreender, conceber. Em esses termos como apresentar (ad-presentar), representar, objetivar, apreender, conceber etc; o pivô da questão está em Vor-stellen, isto é, colocar na frente = fazer com que apareça.
Você aponta para a pedra e diz: isto é pedra. O ‘isto aqui’ é colocado na frente como pedra. Mas, antes, já ao apontar e dizer ‘isto aqui’, coloquei o ‘apontado’ como ‘isto aqui’ na frente. Experimente perguntar: o que é afinal esse X-coisa que está ali como núcleo de todas as atribuições que eu faço dele? Essa coisa X não se perde no infinito, sempre para frente? Portanto, ao dizer: isto aqui é pedra, como coloca o ‘ente’ na frente, faz aparecer assim como pedra. E dessa pedra que lhe aparece, que lhe vem ao encontro, como pedra, você diz adiante é quadrada, pesada, granítica, etc. etc. Todos esses qualificativos (o assim como) que você vai atribuindo à pedra são como que explicações de uma abertura criada pelo fato de esse ‘algo-X’ lhe parecer assim como ele é. Portanto, anterior às atribuições e enunciações que você faz das ‘coisas’, já está ali um relacionamento, um comportamento dentro do qual algo lhe aparece, algo que vem ao encontro, se lhe resiste assim como ele é, se torna ob-jecto.
A possibilidade de eu me relacionar com o objeto depende dessa abertura, na qual o ente se coloca como ob-jeto na minha frente e se me apresenta assim como ele é. Que abertura é essa? Que abertura é essa a partir da qual eu posso fazer um juízo como esse: essa pedra é quadrada? É a questão colocada no fim do capítulo 2 (dois) e que introduz no capítulo 3 (três).

2a Reflexão: Nós, em geral, somos ingênuos no que se refere à objetividade. Pensamos: o objeto está ali; eu posso conhecê-lo objetivamente. O conhecimento objetivo é o protótipo da verdade!… Heidegger pergunta: a partir de onde fala essa “mania” de objetividade? Ver o ente como objeto objetivo não é já um comportamento, uma referência determinada ao mundo, uma abertura especial para com o mundo que já é uma tomada de posição? O que acha você?
Quais são os critérios de objetividade? Não existe também o objetivo do subjetivo? O que significa nesse caso o objetivo?

3o Reflexão: Quando falamos de colocar na frente (vor-stellen) o ente como objeto (em português apresentar = adpresentar) não devemos pensar só nos casos de objetivação coisista, como por exemplo, esta pedra na minha frente. Esta objetivação não é senão uma das modalidades de objetivação num sentido mais pregnante de tornar-se consciente numa acepção carregada de: sentir o peso da presença.
Por exemplo, quem ama vê mais do que quem não ama, isto é, o amor abre uma ótica, na qual certos aspectos se me tornam presentes de uma forma nítida, se tornam objetivados, ao passo que para quem não tem essa ótica, tais objetos não surgem assim como eles são, não existem.
Experimente mudar o seu modo de ver e considerar, por exemplo, alegria, contrição, ódio, angústia, fome, sede (fome e sede de justiça!), trabalho, preguiça, curiosidade, ambição, etc, etc não como atos psicológicos e sim como óticas, oculares, referências ao mundo, como registros de ser, como horizontes, onde se abrem diversas possibilidades de novos tipos de objetos.
Depois de ler o que está ali em cima, examine-se a si mesmo. Desconfio que você entendeu tudo ‘subjetivamente’, isto é, como se esse ocular, essa abertura, fosse um ato meu, um ato psicológico, subjetivo. Mas atenção. Percebe você que ao dizer isso, ao conceber você assim como sujeito do ato subjetivo, você se objetivou e colocou a você mesmo como algo na sua frente? Sua frente? Frente de quem? Pense muito nesse ponto, experimente quebrar a cabeça com esse fenômeno. É importante para você entrar no modo de pensar contemporâneo.

Tarefa para a seguinte reunião
1.  Ler o capítulo 2 até você suar frio, tentando compreender todas as frases ali ditas e explicá-las com suas próprias palavras.
2.  O I grupo, dar dois exemplos, bem marcantes, de objetivação no sentido de uma abertura da ótica. Descrever, em detalhes, esses fenômenos.
3.  O II grupo estudar bem o texto do 2o capítulo para ver se consegue estar de prontidão a fim de usar os exemplos de grupo I para ilustrar e explicar o texto do 2o capítulo.


A Teoria do Conhecimento

A denominação teoria do conhecimento designa imediatamente que se trata de um conhecimento sobre o conhecimento.
Se interpretamos a teoria como um conjunto de doutrinas, conhecimentos certos e hipóteses, organizados sistematicamente, podemos dizer: a teoria do conhecimento é uma disciplina  científica que tem como objeto o conhecimento. De fato, dentro da organização institucional do ensino filosófico nas Universidades, ela é uma das disciplinas filosóficas. Disciplina, aliás, ainda relativamente nova. Chama-se também epistemologia (doutrina do saber), gnosiologia (doutrina do conhecimento), noética (doutrina do pensamento) ou criteriologia (doutrina dos critérios da verdade).
Como disciplina, a teoria do conhecimento, constitui um cabedal de doutrinas, conhecimentos e hipóteses sistematicamente agrupados. O centro sistemático de tal agrupamento, o enfoque, a pressuposição fundamental de tal conjunto (e, por conseguinte, a explicação, o cunho do próprio conjunto) varia conforme a posição de cada autor, de cada escola filosófica ou da época. Se tenho, por exemplo, como a pressuposição fundamental a psicologia mecanicista  do século passado, hei de explicar o conhecimento como um fenômeno psíquico que funciona conforme a lei mecânica, explicada conforme a concepção mecanicista. A teoria do conhecimento se torna assim um ramo da psicologia. Poder-se-ia, portanto, concluir que cada autor, cada escola, cada ciência e cada época tem a sua teoria do conhecimento.
Mas, por outro lado, podemos fazer as seguintes reflexões: o conhecimento é um fenômeno objetivo.
Coloco esse objeto na minha frente como objeto de investigação.
Um objeto posso enfocá-lo sob diversos aspectos: tenho por exemplo o aspecto fisiológico, psicológico, histórico, filosófico, cibernético, físico, químico, psicoterapêutico, lógico, sociológico, etimológico, etc. Todos esses enfoques constituem uma ciência. Se eu ajuntar os conhecimentos de todos esses aspectos tenho a Teoria do Conhecimento.
Você vê logo a dificuldade de um tal empreendimento. Pois surgem imediatamente perguntas como essas:
- Como ajuntar num sistema coerente tantos aspectos e enfoques                     diferentes?  Basta simplesmente justapor essas explicações heterogêneas como um tapete de retalhos? Se isto não basta sob que ponto de vista, sob que enfoque vou organizar todos dados diferentes? Com outras palavras: qual é o enfoque, o objeto formal da Teoria do Conhecimento?
- Todos esses enfoques das diversas ciências, todas essas ciências são por sua vez também conhecimentos. Pressupõem, portanto, o conhecimento como algo já conhecido, óbvio. As ciências estão, portanto, dentro de uma determinada posição geral a respeito do conhecimento e, a partir dali, já dentro do horizonte dessa sua posição, elas investigam o seu objeto. Assim não podem sair de si para investigar a si mesmas de fora, como conhecimento. Para investigar as ciências, como conhecimento, seria necessária uma outra ciência que tivesse essas ciências como objeto, e as enfocasse quatenus conhecimento. Mas então volta de novo a pergunta: o que é, como é o enfoque da teoria do conhecimento?
A teoria do conhecimento do passado não faz reflexões básicas que poderiam elucidar essas perguntas acima mencionadas. Por isso, ou era de fato justaposição fragmentárias de conhecimentos heterogêneos, ou era simplesmente uma explicação do conhecimento a partir de uma posição filosófica já assumida. Assim temos, por exemplo, a epistemologia tomista, escotista, positivista, idealista, etc.
Devido a essas dificuldades e à falta de uma penetração fundamental, a teoria do conhecimento, como disciplina, perdeu a sua cotação. Passou a ser considerada como tema da História da Filosofia, por exemplo, a teoria do conhecimento em Franz Brentano, em S. Thomas, no Marxismo etc. E onde ela é ainda cultivada ou se trata de um enorme amontoado tremendamente complexo de explicações parciais fragmentárias ou de um enfoque particular filosoficamente ingênuo a partir de uma tomada de posição não analisada.
Portanto, ao meu ver, a teoria de conhecimento considerada como disciplina, como uma ciência, se ela quer ser uma explicação filosófica do conhecimento, é algo muito problemático. Isto é: se torna um problema de uma reflexão filosófica.
Na filosofia não se deveria, portanto, falar de teoria de conhecimento, mas muito mais do problema do conhecimento.
Como problema, o conhecimento está intimamente ligado como o próprio problema da filosofia. Pois a filosofia é conhecer. Ao fazer do conhecimento um problema, a filosofia está perguntado pela sua própria essência: o que é afinal a filosofia?
Aqui nesse círculo, nessa pergunta que pergunta sobre si mesma está toda a dificuldade e o modo de ser sui generis do conhecer filosófico, do conhecer filosoficamente o conhecimento.
Se a teoria do conhecimento quer ser filosófica, deve acabar numa estrutura circular. Sair de um questionamento objetivo de uma coisa que está na minha frente, chamada conhecimento, para se transformar num questionamento fundamental: o que é afinal a própria filosofia?
Reduzir tudo a um estado de questionamento circular poderia ser a tarefa da filosofia. Portanto, se na filosofia falamos da teoria do conhecimento, então isso não significa fornecer conhecimento sobre algo existente, de dar informações variegadas sobre o objeto conhecimento, mas sim de mostrar que o conhecimento é um problema a partir de sua raiz. É nesse sentido que dissemos acima: na filosofia não se deveria falar da teoria do conhecimento, mas som do problema do conhecimento.
Poder-se-ia perguntar, que utilidade tem um tal empreendimento.
Em lugar de resposta, gostaria de expor um processo de transformação da pergunta operada dentro da teoria do conhecimento. A exposição é esquelética e simplificada. Pretende tão somente insinuar a ossatura do problema.
Quando se fala de conhecimento, pensamos num determinado fenômeno. Por exemplo, num sentido estrito da palavra, uma cabeçada na parede, a apreensão do vermelho quente da gravata estrambótica, o gosto azedo da laranja verde, o calafrio ao sentir na nuca uma aranha caranguejeira não são conhecimentos. Antes denominamos com o termo ‘experiência’.
Conhecimento propriamente dito se estrutura num juízo: isto é..., portanto S (sujeito) é P (predicado). Já quando perguntamos: o que é isso? Funcionamos dentro de um esquema onde há o objeto diante de mim, sobre o qual (objeto) perguntamos. A resposta é dada também na mesma estrutura, por exemplo: isto é branco. Tem-se um núcleo de atribuição, ao qual atribuímos uma cor, uma qualidade, uma propriedade, etc.
Se examinarmos de uma forma muito ingênua e simplificada essa maneira de ser do conhecimento judicativo, percebemos que a concepção da nossa situação é a seguinte : diante de mim existe um objeto (uma coisa) independentemente de mim. Aqui estou eu, o sujeito que conhece. Eu atribuo a essa coisa diante de mim a cor branca. E a cor branca pertence de fato ao objeto. Tenho o conhecimento que a coisa é branca. Essa ‘coisa’, porém, contém vários aspectos, os quais posso ir aos poucos descobrindo. Assim aumento o meu conhecimento. Enquanto você sem muita suspeita ‘funciona’ dentro desse modo de ver as coisas, não há problemas. Mas, um dia, você percebe que nem tudo que você atribui ao objeto, de fato, pertence ao objeto. Você pode se enganar. Ao se enganar redondamente sobre um objeto você leva um susto. De repente, naquela fé ingênua que você possuía pelas coisas, entra um fenda. Você sente que o objeto, a coisa é algo estranho a você. Percebe que existe uma distância entre você (o sujeito do conhecimento) e o objeto. Objeto lá, eu aqui! Como é que o objeto lá entra no meu conhecimento aqui? Como é que acerto a coisa? Como é possível o conhecimento? O que é o conhecimento? O que é o objeto? O que é o sujeito do conhecimento? Você despertou para o problema do conhecimento. De súbito, você é assaltado por um terrível pensamento: que tal, se tudo, que penso ser assim, não for assim, tudo que penso ser, não for? Se tudo for ilusão? Sonho? Projeção de minha mente? O problema se torna dramático, quando o objeto do seu conhecimento tem um significado vital para você: por exemplo Deus, certeza da ciência para a qual consagrei toda a minha vida etc.
Notemos bem como o interesse da pergunta se transformou. Antes você esteve dirigido ingênua e confiantemente para o objeto e perguntava curioso, ávido de saber: o que é isso? Examinava, se corrigia e ia aumentando o conhecimento sobre o objeto.
Agora, depois daquele surgimento repentino de dúvida o seu interesse se virou sobre o próprio conhecimento e pergunta: como é possível o conhecimento?  Qual é o critério de certeza do meu conhecimento? O que é afinal o conhecimento?
Ao questionar assim, você pode estar animado de um interesse vital de adquirir a certeza do seu conhecimento. Procurará então colocar a base da sua certeza ou no sujeito que conhece ou no objeto conhecido. Ou pode tentar reconciliar o sujeito e o objeto de alguma forma por uma ligação. Dessas tentativas surgem diversas tendências filosóficas que denominamos: realismo, realismo crítico, idealismo, subjetivismo, etc.
Essa linha de investigação, porém, não se mostrou muito frutífera, por isso, hoje está abandonada. E isso por seguinte motivo.
Antes de toda essa discussão, se o objeto tem a primazia ou o sujeito, ao analisarmos o fenômeno conhecimento, percebemos que o sujeito e o objeto e o seu relacionamento (= conhecimento) já são elementos constituídos, formados de uma estrutura anterior.
Quando digo: eu sujeito aqui e o objeto lá na minha frente S–O, já pressuponho que haja um campo aberto que possibilite algo como o sujeito e o objeto e o conhecimento, uma área onde aparecem esses elementos.
Conseguir ver essa abertura é uma tarefa muito difícil que exige um certo treino de reflexão intuitiva. Se você consegue compreender a filosofia contemporânea ou não, depende justamente dessa intuição que consegue ver essa abertura. Essa abertura recebeu o nome de Subjetividade ou Eu transcendental. Com uma grande margem de simplificação, podemos dizer que hoje essa abertura recebe muitas vezes também o nome de: Da-sein, Existência, Situação. É uma abertura que constitui uma dimensão de profundidade e não coincide com o eu empírico que está contraposto ao objeto, pois é anterior a ele, mais originário.  Essa abertura na qual cada ‘coisa’ recebe o seu sentido peculiar é diferente conforme a época. Ela pode se chamar: eidos (Platão), energia (Aristóteles), Substância (Idade Média), Espírito (Século XIX), consciência, Eu, Subjetividade (Início do Século XX), Dasein, Existência (Século XX), Hoje em dia: função, estrutura.
Notemos que o problema do conhecimento transformou-se na busca da abertura funcional, dentro da qual o homem encontra o ente (incluindo-se a si mesmo) e o coordena dentro de um mundo de sentidos que brotam da respectiva abertura fundamental. O problema do conhecimento se torna o problema do Ser. E o problema do Ser é o problema da Metafísica. O problema do conhecimento no fundo é o problema da Metafísica.
Vemos assim que o interesse da busca se transforma de uma simples busca de propriedade de um objeto numa indagação da profundidade do Ser.
Portanto, hoje, o interesse da filosofia em relação ao conhecimento é tratado na perspectiva desse problema do Ser.
Continua, porém, existindo a teoria do conhecimento que não vai na direção da profundidade do Ser, mas que constrói na direção do acúmulo de dados informativos acerca do conhecimento. Essas teorias de conhecimento têm, certamente, o seu valor. Mas, se você quer ter a última evidência de seus fundamentos, é mister investigar na direção do problema do ser.


6a Reunião: Sobre a Essência da Verdade

Uma sugestão reflexiva de como entender essa questão:
Eu tenho um objeto na minha frente. Digamos, uma roda de bicicleta. Esta coisa toma uma posição em relação a mim. Se coloca de encontro a mim.
O que quer dizer isto?
Dou um ponta-pé na roda da bicicleta. A roda se opõe (ob-põe) a mim. Faz resistência. Cria um relacionamento. Mas nesse relacionamento de ponta-pé a coisa toma posição ‘assim como’ obstáculo, resistência. A roda da bicicleta no relacionamento no ponta-pé re-age, se ob-põe, vem ao seu encontro como, coisa-dura-que-machuca-o-meu-pé. Ela não se ob-põe a mim como uma peça de máquina.
A coisa, ao se me opor (ob-por = por-se de encontro a), se coloca dentro de uma dimensão (inter-esse), de um âmbito aberto, onde essa coisa recebe o sentido, aparece, se posiciona, se ob-jectiva como resistência-que-me-machuca-o-pé. Está sob um determinado modo de posição.
Que seja um modo de posição ou ob-posição você o percebe logo que compara esse modo de aparecer como resistência-a-ponta-pé com um outro modo de aparecer como ‘roda-de-bicicleta’. O ponta-pé você não o dá na roda da bicicleta enquanto (os escolásticos diziam: Qua ou quatenus = assim como) roda de bicicleta, mas sim enquanto resistência-coisa.
Para que você possa se encontrar com essa coisa como roda de bicicleta, ela deve aparecer, deve se colocar sob o modo de posição: peça de máquina chamada bicicleta. Mas para se colocar, isto é, aparecer como roda de bicicleta, esta coisa já deve estar dentro de uma dimensão, onde algo como roda de bicicleta seja possível, tenha um sentido, uma função: dentro do âmbito da máquina. Numa cultura onde não existe a abertura ‘máquina’, a bicicleta jamais aparecerá, jamais virá ao nosso encontro como bicicleta. Ela será talvez um gafanhoto esquisito supradimensional, por exemplo, dentro da dimensão ‘natureza’.
Isto quer dizer: lá onde a roda da bicicleta aparece como roda de bicicleta, isto é, como uma peça de máquina, esta coisa cobre, implica, contém em si, descortina um âmbito aberto, um horizonte dentro do qual ela pode vir ao nosso encontro como peça de máquina.
Portanto, ao se ob-por a nós como esta roda de bicicleta, esta coisa, já me manifesta, simultaneamente, todo um horizonte, de inter-esse, cobre, percorre um âmbito aberto, onde ela se torna possível, toma uma posição e recebe um sentido.
Mas não é assim que abra simplesmente o horizonte ‘máquina’ e fique nisso. Ela abre uma visão, um ocular, um horizonte, uma perspectiva, todo um mundo chamado ‘máquina’ e ao mesmo tempo se posiciona, se afirma, se estabelece como algo estável,  como sentido fixo, dentro dessa perspectiva.
Com outros termos: a roda de bicicleta exerce uma função dentro de um todo que é bicicleta. Ela é peça, isto é, uma função estabilizada materialmente. Esta função, porém, está em função de uma outra função estabilizada, até constituir a bicicleta. Mas a própria bicicleta esta em função de outra função e, assim, aos poucos temos uma rede imensa de funções que constituem, digamos, o mundo da máquina. O mundo da máquina, o âmbito aberto é algo como uma energética de expansão, uma espécie de elan vital. As peças, as máquinas individuais são como que ‘materializações’, estabelecimentos, fixações das funções dessa energética total, dessa abertura.
No termo ob-por, na partícula “ob” está insinuada a abertura, no termo “por” o estabelecimento.
Essa abertura, esse âmbito aberto, no nosso caso, o elan, o poder, a potência do mundo da máquina que com uma grande margem de imprecisão – existem máquinas-instrumentos e máquinas tecnológicas – poderíamos chamar de elan tecnológico, é um modo de ser, que não é criado pela apresentação, isto é, por meu ato subjetivo de representar a coisa assim, nem pelo fato de a coisa se me apresentar assim. É anterior. Eu posso me relacionar a essa coisa assim, essa coisa se me apresenta assim, porque tanto eu como a coisa já estamos dentro desse âmbito aberto, dentro desse campo de ralação: do inter-esse.
O relacionamento entre a enunciação e a coisa já opera dentro desse campo de relação, ou melhor, é a realização, a atualização, a concretização dessa abertura.
Portanto, o que possibilita a manifestação de algo, assim como peça de bicicleta é o âmbito aberto da técnica. E o que possibilita o comportamento ou o relacionamento típico técnico para com a roda de bicicleta é o âmbito da abertura ‘técnica’.
Por conseguinte, a abertura é anterior ao relacionamento. O relacionamento deve, pois, adequar-se à abertura.


RECAPITULANDO

À primeira vista, quando falamos da verdade da enunciação, pensamos assim: a enunciação (o meu conhecimento, o sujeito aqui, o juízo, a frase) e o objeto (a coisa sobre a qual se faz a enunciação) e o relacionamento entre a enunciação e a coisa  (adequação, comportamento).
Vimos que a enunciação e a coisa se baseiam no relacionamento (comportamento). E esse relacionamento ou comportamento se baseia, se dá, no seio de um âmbito aberto que poderemos chamar de horizonte.
O que se manifesta assim chamamos de ‘ente’, isto é, ‘aquilo que está presente’.


Esquema


1. Enunciação --------------------------ñ coisa
                                    ­       
                             Adequação  



                           ad
2. (enunciação) -------------------------------ñ (coisa)  
                          á-------------------------------    
                                   presentação



                            ad
3. (enunciação) -------------------------------ñ (coisa)  
                         á-------------------------------     
                                   presentação
                          ½                                                       ½
                           |----ñ  comportamento  á----|  



                                                    ad
4. (enunciação) -------------------------------ñ (coisa)
                         á-------------------------------
                                                presentação
 -----ñ comportamento á-----     

âmbito aberto – Abertura

O ente é aquilo que se torna presente no movimento de ad-presentação do comportamento.


7a Reunião: Sobre a Essência da Verdade

Um esquema do capítulo 3:

1o Passo: Algumas perguntas que resumem a situação da problemática, exposta no capítulo 2, ressaltando o arcabouço fundamental da questão.
Os passos da pergunta nos levam à tese: A essência da verdade é liberdade.
2o Passo: A afirmação: a essência da verdade é liberdade, o senso comum já a conhece: portanto nada de novo!?
Para a busca da verdade você não deve ter a coação.
Liberdade da imprensa, liberdade de opinião, liberdade política, religiosa, etc.! Atenção: essa compreensão do senso comum é superficial.  Não leva a sério a afirmação: a liberdade é a própria essência da verdade. A verdade é liberdade, a liberdade é verdade.
Uma tese aliás estranha, surpreendente ao nosso modo geral de pensar! A tese... deve portanto, surpreender. Na surpresa, no entanto, eu me desperto para a problemática...
3o Passo: O senso comum, no entanto, é tenaz. Volta à carga, agora com uma outra objeção. E diz: mas como isso é possível? Liberdade e Verdade, não se coadunam bem. Não é assim que a verdade é a norma absoluta e objetiva, em si, acima do homem, segundo a qual o homem orienta a sua liberdade? Se é assim, como pode a ‘verdade’ encontrar seu apoio e fundamento na liberdade do homem? Não é isso uma perigosa tese do relativismo e subjetivismo?
4o Passo: Essa objeção se baseia num pre-conceito. Isto é, numa determinada concepção já preestabelecida da liberdade humana. O que é liberdade do homem todo mundo sabe... Pois a liberdade é uma propriedade do homem. O homem tem a liberdade. Sabemos nós? Sabemos nós o que é o homem? É tão óbvio que o homem possui a liberdade? Ou não é antes assim que a liberdade possui o homem? O que é, pois, a essência da liberdade?
Resumindo: O que é a essência da verdade?

A verdade é a adequação da enunciação com a coisa.

A adequação da enunciação com a coisa baseia-se na ad-presentação.
A apresentação se radica no comportamento.
O comportamento se radica no âmbito aberto.
O âmbito aberto surge da liberdade.
Liberdade é a essência do homem.
A essência do homem tem o seu fundamento no SER.
Portanto: Com a margem a uma imprecisão bastante grande podemos dizer:
A adequação da enunciação com a coisa está no campo da lógica.
A apresentação no campo da teoria do conhecimento.
O comportamento no campo da psicologia.
A liberdade no campo da antropologia.
O fundamento da essência do homem no ser está no campo da ontologia.
Assim a busca da essência da verdade que inicia com a busca da adequação lógica, se transforma e termina na busca do fundamento ontológico da essência do homem.

Uma reflexão:

Na p. 136/137 fala-se de ‘Liberar-se para uma medida que vincula’. Para isso é necessário ‘estar libre para aquilo que está manifesto no seio do aberto’.
A formulação de Heidegger só se torna compreensível se você procura ver o fenômeno. Por isso é indispensável você tentar e-vocar um fenômeno (experiência) que manifeste a evidência da formulação.
Quando falamos de liberdade, em geral a primeira coisa que nos vem à mente é a liberdade de coação. Ser livre significa: não estar coagido, preso, condicionado por ou de alguma coisa.
Aqui em Heidegger não se trata tanto dessa liberdade de coação. Trata-se antes de liberação de coação, digo liberação de uma possibilidade, ou melhor de abertura de uma possibilidade que cria todo um mundo de vínculos, normas, valores, sentidos e obrigações. Mais do que livrar-se de alguma coisa, trata-se da capacidade de assumir todo um mundo novo.
Imagine por exemplo um missionário ocidental que entra em contacto com uma tribo de índios nas selvas brasileiras. A partir do seu mundo ocidental, ele a considera como um povo primitivo. Tenta compreendê-la, mas sempre de novo reduz o mundo índio ao seu mundo ocidental, explica-a, interpreta-a a partir do seu ocular europeu. Acha-a tola, primitiva, sem cultura, digna de compaixão, quer promovê-la, convertê-la. Vive com ela, luta, trabalha, mas fracassa ‘pastoralmente’.
Certo dia, de repente, não sei como, ao ver um velho feiticeiro fazer um gesto estranho, estala na mente do missionário um experiência, uma intuição de que o velho está a viver a partir de uma concepção fundamental totalmente diferente à sua, concepção cuja profundidade ele de repente vislumbra, por um instante. Desde esse momento, muda a atitude do missionário. Perde a segurança do seu julgamento, perde a altivez do europeu ‘desenvolvido’, percebe que está mais humilde diante do ‘outro’, se surpreende com enorme desejo de se abrir para um-novo-e-um-outro mundo, que ele não compreende. E, de súbito começa a sentir o mundo europeu como um obstáculo, como um bitolamento que lhe impede de liberar o olhar para o outro como o outro é.
Depois de muita luta, fracasso e boa vontade, ele percebe um dia que se transformou. Ele sente que o seu olhar tornou-se dócil à medida do mundo índio, percebe que não o interpreta de fora, mas como que se situa no meio dele, e a partir da abertura originária desse mundo, deixa-se vincular, deixa-se levar pela lógica interna que emana dessa experiência originária do mundo índio. E des-cobre todo um mundo riquíssimo de sentidos, valores, descobre uma lógica interna complexíssima que na sua flexibilidade e riqueza supera de longe a lógica ‘clara’ e racionalista do seu mundo europeu. E o missionário percebe que se desatou no seu âmago, abriu-se uma comporta de evidência no seu ‘coração’, donde emana uma visão nova, libertadora de suas energias vitais.
Mais ou menos nesse sentido é que Heidegger fala aqui de liberdade.
Experimente evocar na sua vida alguns outros exemplos desse ‘livrar-se para uma medida que vincula o estar livre para aquilo que está manifesto no seio do aberto’. Por exemplo, o fenômeno simpatia, pudor, ver um quadro de arte, compreender o outro, etc.
Experimente comparar esse conceito heideggeriano de liberdade e o que você entende por liberdade.

Sugestão de trabalho para a seguinte reunião:

1. Ler com muito vagar o capítulo 4, A essência da liberdade. Dizer em resumo, com as suas próprias palavras, aquilo que você entendeu dessa leitura. Portanto, ler e mesmo que você não entenda tudo, dizer, mas dizer mesmo, aquilo que você acha ter entendido. E fazer isso de maneira bem precisa e resumida. Fazer isso em particular. Depois, em grupo, cada qual expõe o que ele entendeu. Não discutir quem tem razão. Mas procurar ver o que há de comum nas compreensões dos membros do grupo. Fixar esse comum. No grupo, ao ouvir o outro, cada qual anote o que achou interessante, novo, na compreensão do outro. Depois dessa reunião, tente ler de novo o capítulo, para ver se entende agora melhor o texto. Esse trabalho não precisa ser apresentado na reunião seguinte, no seminário.
2. Para a reunião seguinte do seminário, cada qual em particular tentar comentar as seguintes frases do capítulo 3, dando um exemplo ilustrativo:
a) “A tese segundo a qual a essência da verdade... é a liberdade deve, portanto, surpreender”.  Sugestão: a admiração é o começo da filosofia. A Bíblia diz: o temor de Deus é o início da sabedoria. A surpresa pode ser também início do conhecimento? Em que sentido? Pode dar um exemplo?
b) Como entender em miúdo a seguinte frase: “Esta origem humana da não-verdade apenas confirma, por oposição, que a essência da verdade ‘em si’ reina ‘acima’ do homem”.


8a Reunião: Sobre a essência da Verdade

I.  O comentário do texto: “ A enunciação recebe sua conformidade… considerado como a essência da verdade”.
Sobre o ponto de vista abstrato-formal o texto diz:
1. A enunciação se conforma com a coisa.
2. Mas essa conformidade, ela, a enunciação não tem de si nem da coisa-em-minha-frente.
3. Ela recebe essa conformidade da abertura do comportamento.
4. Portanto, é somente através da abertura do comportamento que ‘o que é manifesto’ se torna a norma, a medida diretora de uma apresentação adequada, isto é, da adequação da enunciação com a coisa.
5. Isto significa: o comportamento na sua abertura já deve ter recebido, já deve ter assumido algo como uma estrutura, algo como medida universal que sirva de norma para toda e qualquer apresentação, isto é, para toda e qualquer adequação da enunciação com a coisa.
6.  Se é assim, então a essência da verdade deve ser originalmente procurada não na adequação da enunciação com a coisa ( = proposição, juízo), mas sim naquilo que possibilita essa adequação, isto é, na abertura do comportamento que por sua vez assume a medida universal da abertura originária, caracterizada por Heidegger pela formulação: “o que é manifesto”.
NB.: São praticamente sinônimos os termos: apresentação, adequação da enunciação com a coisa, juízo, proposição.

Resumindo: Originalmente temos o âmbito aberto como ‘o que é manifesto’. Esse âmbito dá a medida ao e comanda o comportamento. O comportamento é por sua vez uma abertura que recebe a medida de sua abertura do ‘âmbito aberto originário’ e possibilita a adequação da enunciação com a coisa.
O que dissemos permanece no abstrato e formal.
É necessário concretizá-lo para termos uma intuição do fenômeno. Vamos, pois, fazer uma tentativa de ilustração.
A tentativa:
A concepção tradicional da verdade coloca a essência da verdade na proposição, isto é, na adequação da enunciação com a coisa.
Em vez de dizer a adequação da enunciação com a coisa podemos dizer: adequação do intelecto e da coisa.
Dentro dessa concepção tradicional há duas correntes opostas.
Uma diz: A primazia está com a coisa. O intelecto recebe a medida da verdade da coisa, ele se conforma com a coisa: é o objetivismo.
A outra diz: A primazia está com o intelecto. A coisa recebe a medida da verdade do intelecto. A coisa se conforma com as formas inatas do intelecto. É o subjetivismo.    
O subjetivismo e o objetivismo se opõem. São contrários. Enquanto continuarem a se opor, não há saída para a questão. É como se fosse a oposição entre duas pessoas, das quais uma diz: é preto, e a outra diz: é branco.
                        Preto...............................ñ êá..............................Branco
                        Sujeito                                                               Objeto
                        Intelecto                                                            Coisa
Um exame mais crítico, no entanto, nos mostra o seguinte: tanto o preto como o branco estão na oposição à base de um fundamento comum. Esse fundamento comum é a tonalidade da cor que é a intensidade da luz.
Tanto o preto com o branco são duas modalidades extremas da tonalidade da luz. Tanto o preto como o branco tem a mesma estrutura: a luz.
Conforme a intensidade da presença da luz que se chama claridade, temos a tonalidade: preto, diferentes escalas de preto, cinzento, diferentes escalas de cinzento, branco, diferentes escalas de branco.
Isto significa: entre preto e o branco não há propriamente oposição. Existe sim uma escala de intensidade na claridade. Por isso, é ingenuidade afirmar que o preto tem a primazia e serve de medida ao branco ou vice-versa, que o branco tem a primazia e serve de medida ao preto.
A verdadeira primazia tem a claridade que serve de medida tanto para o preto como para o branco.
Aplicando esse exemplo ao relacionamento intelecto e coisa, sujeito e objeto, podemos dizer: sujeito e objeto são dois momentos de uma estrutura ‘anterior’ que possibilita uma tal realidade como sujeito e objeto e o seu relacionamento.
Até aqui creio que você acompanhou o pensamento. Façamos uma parada aqui e revisar na mente se de fato você está vendo a realidade. Não é assim que você diz: sujeito aqui, objeto lá, o relacionamento, e esses três momentos têm uma estrutura comum? E imagina a ‘coisa’ assim:

Relacionamento
S à X ß O
estrutura comum
                              
Isto é apenas um esquema. Enquanto você não consegue ‘realizar’ como esse esquema funciona na realidade você não está vendo o fenômeno.
Como funciona esse esquema na realidade?
Como é o sujeito? O objeto? O relacionamento?
Vamos e-vocar uma experiência. Existem encontros, nos quais nos sentimos humildes. Por exemplo, você encontra uma pessoa pobre, sem muito estudo, simples, talvez até marginalizada na sociedade. Digamos que ela é o empregado de sua firma que tem a função de varrer büros. Sua linguagem é humilde, ele o trata de senhor, é serviçal. Você o trata como um João-ninguém, impessoalmente, como um operário da sua firma, uma peça insignificante no conjunto da sua firma. Certo dia, você está de mau humor e descarrega a sua irritação sobre o empregado, você o humilha injustamente. O pobre homem não reage, ele aceita a humilhação. Mas, de súbito, você percebe que ele ao aceitar não se avilta não se torna servil, você sente nitidamente uma transparência nesse homem, uma grandeza humana: a dignidade. Há nele algo de superior, superioridade que não se eleva humilhando-me, rebaixando-me, mas uma superioridade ontológica, que está ali simplesmente sendo, singelamente como a rosa que floresce sem porquê. E nessa transparência você sente um calor humano de compreensão. Ao aceitar a humilhação o pobre me aceita não como ‘chefe’, como ‘superior’, mas como uma pessoa mau humorada que precisa da compreensão do amigo. Há nessa aceitação do pobre algo de cordial, amor de simpatia pela minha fraqueza, uma doação generosa que vem ao meu encontro como serviço gratuito e livra à minha pessoa humana. E, de repente, compreendo o que é humildade. A essência da humildade se torna presente, se ad-presenta, se torna ‘objetiva’ não como coisa, não como idéia abstrata, mas como ‘o que é manifesto’ na concreção dessa pessoa.
Para você que quer compreender o que é a ‘essência da verdade’ é de máxima importância ver que esse ‘o que se manifesta’ não é a coisa ‘esse sujeito humilde ali’. Esse empregado na minha frente é como que o representante da dimensão de profundidade chamada humildade, é o lugar de concentração da humildade. Certamente, a dimensão-humildade não é algo separado dessa pessoa, pois, é nela que se torna presente na nitidez e plasticidade da sua manifestação, mas não é uma qualidade que esse sujeito diante de mim possui como uma propriedade psicológica. Antes, pelo contrário, é a Humildade que ‘possui’ essa pessoa como humilde, isto vem porque ela está, aparece à luz desse ‘o que é manifesto’, ‘a Humildade’. 
Essa presença da Humildade me transforma. Ela me faz também transparente, me faz aceitar a aceitação do pobre com gratidão, com a gratidão de quem recebe, eu me sinto não como superior, como poderoso, mas sim como alguém que se abre com gratidão à simpatia do outro. Com outras palavras tomo a mesma atitude do pobre empregado, me torno humilde, surjo como ‘objeto’ dentro da mesma dimensão humildade que envolve o empregado. Assim entre mim e o empregado, surge um relacionamento, um comportamento chamado: aceitação mútua na simpatia e generosidade gratuita.
Tanto eu como o empregado e o relacionamento somos como que três momentos de concretização de uma mesma luz daquilo que é manifesto: da humildade.
A humildade é o âmbito aberto, no qual se torna possível algo como eu humilde, o empregado humilde em relacionamento humilde, em cujo seio concreta e viva se torna presente a medida da humildade como aquilo que é ‘manifesto.


II. Algumas sugestões para a interpretação do capítulo 4: A essência da liberdade.

1. A reflexão anterior sobre a Humildade foi uma tentativa de insinuação como devemos entender ‘o que é manifesto’.
A reflexão evoca um trecho já analisado por você no capítulo 2: ali se diz: “Todo o comportamento, porém, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se mantém referido àquilo que é manifesto enquanto tal. Somente isto que, assim, no sentido estrito na palavra está manifesto, foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como  ‘aquilo que está presente’ e já desde há muito tempo, é chamado ‘ente’.”
De fato, os gregos chamados de ente (ón, ontologia) a totalidade daquilo que se manifesta, se revela, se mostra, se torna visível nele mesmo. A totalidade daquilo que está à luz, ou que pode ser trazido à luz do dia.
O que se manifesta, se mostra, se revela como aquilo que é nele mesmo!
Essa formulação, porém, é abstrata.
O que quer dizer essa formulação em concreto?
A chave da questão está na formulação: como aquilo que é nele mesmo.
Vamos refletir sobre esse ponto, à mão de um exemplo já batido.
Vejo uma rosa. O que é a rosa naquilo que ela é nela mesma? Nela mesma. Nela. Em ela. Isto significa: a rosa é algo que está dentro dela mesma. Dentro de quê? Dela mesma? Um absurdo incompreensível, jogo abstrato de palavras? Sim. Mas isto acontece, porque as nossas palavras são incapazes de nos comunicar o que está manifesto diante dos nossos olhos.
Antes de prosseguir na nossa reflexão, é necessário nos conscientizarmos de um entrave que nos dificulta a compreensão. Esse entrave é a nossa pre-compreensão cotidiana que funciona em nós inconscientemente, quando colocamos uma pergunta como essa: o que é a rosa naquilo que ela é nela mesma?
Experimente formular essa pergunta e se examinar: como concebe a realidade ao fazer essa pergunta? Não é assim que ao dizer ‘o que é a rosa’ eu já tenho na mente um esquema pré-concebido da realidade como algo que está pronto na minha frente, algo-rosa que tem atrás da aparência sensível um núcleo chamado essência ou substância, núcleo que constitui aquilo que a rosa é em si?
Da existência de uma tal pre-compreensão devemo-nos conscientizar e neutralizar assim a sua influência. Pois essa pre-compreensão nos bitola o olhar e, de ante-mão, nos impede a visão livre daquilo que se manifesta ele mesmo.
Uma vez imune da influência dogmatizante dessa pre-compreensão, a primeira coisa que vemos é que a rosa se manifesta cada vez diferente, conforme a dimensão em que ela se revela a si mesma. A rosa é pão na dimensão da pobreza de um vendedora, filha na dimensão do jardineiro, a bela do seu coração, para a dimensão do Pequeno Príncipe, Deus na dimensão mística de um Angelus Silesius.
A rosa não é em si, já pronta, como coisa. Ela se manifesta cada vez diferente, se revela naquilo, isto é, na dimensão em que ela aparece cada vez diferente como ela mesma.
Descobrir as diferentes dimensões, abrir e descortinar diversos horizontes, onde, à cuja luz, à cuja claridade a rosa se manifesta na sua significação, cada vez diferente, límpida, sem confusão de dimensões, isto é fazer aparecer o ente, deixar-se o ente, fazer de algo um fenômeno, deixar o ente ser naquilo que ele pode ser.
Mas, se é assim, não existe a rosa em si?
Não existe a rosa como aquilo que ela é em si mesma? Qual a rosa entre as diversas dimensões possíveis de rosa, a rosa por excelência? Onde ela se revela de maneira mais evidente como ela mesma?
Essa pergunta não pode ser respondida de ‘fora’ de um modo geral. A resposta só é possível na intuição concreta, factual. Em que sentido? Como?
Imagine por exemplo um S. Francisco, toda a luta pela conversão, dias de dúvida, angústia, oração, busca do sentido da sua vida. Todo o processo de despojamento e transformação, até aquele momento, onde grita diante do bispo de Assis e de seu pai Pedro: Pai nosso que estais nos céus... O jovem Francisco, depois dessa cena, ao vagar pelas ruas da cidade, encontra entre os escombros de um muro, uma rosa silvestre, singela, alegre, abandonada à gratuidade da existência. Sem o para que, sem o por que, simplesmente ali como graça. O jovem Francisco para diante dessa rosa e agrade. A rosa se lhe revela como a concentração viva, cristalização cósmica do sentido do universo: Abba, Pai! A rosa aqui se revela como aquilo que ela é nela mesma na máxima concentração, como a quinta essência, como o princípio, a fonte do sentido do universo.
Passa por ali um botânico. Ele diz para si: uma rosa, uma planta, uma coisa viva, orgânica, celular, composição química etc.
O que é mais rosa? A planta ou a concentração cósmica do sentido da Vida? Heidegger dirá: a rosa de S. Francisco é mais rosa, talvez a rosa por excelência, porque concentra mais intensamente o sentido do ser. Ali, a rosa se manifesta, se revela como ela mesma naquilo que ela é a partir de si como ela mesma. É o que é manifesto.
Essa rosa, no entanto, não deve ser ‘interpretada’ como sinal, como indicação para algo que está além dela. Não é assim que tenho primeiro uma doutrina sobre a gratuidade do Amor do Pai e aplico esse conhecimento à rosa, chamando-a de um símbolo, de uma figura.
Trata-se de uma intuição, trata-se de um ocular que se rasga no ser, onde a rosa ela mesma nasce, surge, se revela como a presença viva e concreta do amor gratuito do Pai, de tal sorte que posso dizer: a rosa é a dimensão graça, é todo um mundo chamado graça.
O ente neste sentido coincide, portanto, como a dimensão que na filosofia atual se chama: coisa-ela-mesma. E a coisa-ela-mesma não é algo como objeto, mas a presença da intensidade do ser como a dimensão concretizada da profundidade humana.
Esta profundidade humana, da qual o ente recebe o seu sentido, é a “experiência de um fundamento original oculto do homem” que se chama ‘ser-aí’, ou Dasein. Esse ser-aí chama-se também Liberdade. E a liberdade se define: “o que deixa-ser o ente” (p. 32).
Liberdade como deixar-ser-o-ente significa: fidelidade, docilidade, doação ao “que é manifesto”, à abertura originária que se chama alétheia.
2. O texto: “o entregar-se ao caráter... tem o caráter de desvelado”. Como entender essa frase? E principalmente como entender a estrutura da ex-sistência? Talvez um exemplo possa nos servir de apoio para compreender esse texto.
Antes dissemos que o comportamento não deve ser entendido como um ato psicológico de um sujeito já pré-existente como uma substância coisa.
O termo comportamento designa a totalidade de correlação eu-objeto- relacionamento, constituída na dinâmica processual de ad-presentação. É no comportamento que surgem o eu, o objeto e a relação.
Esse surgimento do eu, do objeto e da relação, podemos chamar – com risco de ser entendido psicologicamente – de consciencialização.
Por exemplo, o viver assim ao léu, na onda dos acontecimentos, não é propriamente comportamento. Vegetar na vida também não é comportamento.
No comportamento há sempre uma ex-posição.
Uma tomada de posição, a partir de um despertar para o que está além do estado factual de mim mesmo.
Vamos ilustrar o que dissemos com um exemplo.
Estou no refeitório e, no meio de um zunido indefinido, murmuro sem entusiasmo o Pai  Nosso. O meu pensamento anda não sei onde, um cansaço agradável de estômago cheio toma conta de mim e o Pai Nosso que estou pronunciando não é outra coisa do que o murmúrio confuso no qual flutuo meio sonolento, entediado.
Você abre um livro – relatório do campo de concentração em Saigon. Câmaras de tortura, fossa de concreto armado, onde os prisioneiros vivem – se é que isso ainda é viver – um estado infra-animal. Você abre o jornal: guerras, lutas, seqüestros, assassínios, injustiça, roubo, destruição absurda e cruel. Você abre o livro de História: uma corrente ininterrupta de matança, prepotência, opressão dos pobres. Você abre os olhos ao seu redor. E de repente passa-lhe pela cabeça a oração: Pai Nosso... a tese: Deus é Amor... o slogam: Deus é bom, é Pai... tome a sério a realidade-noite da Terra dos homens. Tome a sério que cada uma dessas pessoas esmagadas é seu pai, sua mãe, seu irmão, sua irmã, seu filho, sua filha. E reze então o Pai Nosso... chame a Deus que tudo isso permite, de Pai, se você puder... Ele é Pai? Não é também todo-poderoso?
A oração Pai Nosso se me torna infinitamente difícil, pesada. Ele se manifesta como realidade, nitidamente, brutalmente como um soco no estômago. Para você dizer Pai Nosso, você se expõe a uma tremenda aventura de auto-superação. Antes, o Pai Nosso era um epifenômeno, uma sensação de sonolência indiferente, irreal do meu eu. Agora, de repente, estou como que colocado na parede, encurralado, na iminência de me expor ao que é manifesto, de assumi-la, isto é, de ‘entregar-se ao caráter de ser revelado’. Você está numa situação onde é colocada a exigência: diga Pai se você pode! Esse poder é uma nova relação com você mesmo. É um novo comportamento para com você mesmo.
Você deve assumir todo seu ser de até então, para se ex-por à nova abertura que lhe dita a medida de decisão. É, pois, a Liberdade. Na medida em que você pode ‘entregar-se’ ao que se manifestou como Pai, na medida em que você se auto-supera e se transcende para o revelado, na medida em que consegue se abrir à face terrível do Pai, você ex-siste, você é.
Esse ex-sistir é, portanto, um recuo. Quando você rezava no refeitório, você não recuou diante do ente. Vivia num simbiose amorfa, sem ‘consciência’ do que é o Pai Nosso. Agora, nessa exposição, o ente Pai se lhe manifesta como objeto da sua decisão, se manifesta nitidamente como a realidade a que você deve se expor, colocando em cheque o eu, para se abrir à estrutura da auto-superação como a transcendência de si mesmo na entrega ao ‘revelado’. Recuo no sentido de tensão-despertadora que faz aparecer o objeto nitidamente diante de você como exigência de decisão.
Essa estrutura que Heidegger chama de Da-sein (ser-aí), Ex-sistência, Transcendência, é a essência da Decisão, isto é,  da Liberdade, e constitui a ‘experiência de um fundamento original oculto do homem’!


Sugestão de trabalho para a seguinte reunião:

1. Ler o capítulo 4, à mão dessa apostila.
2. Ler especialmente analisando frase por frase o texto:
“A liberdade foi primeiramente determinada como... --- abertura do aberto, isto é, a ‘presença’ (o ‘aí’) é o que é”.
3. Tentar então compreender o que significa: deixar-ser o ente.
4. consegue na sua própria vida e-vocar uma experiência onde você deixou-ser o ente?
5. Em grupo, peço fazer um trabalho que talvez seja um tanto difícil, mas que é bastante fascinante, ao menos para mim:

O Punhal.
À Margarida Bunge.
Numa gaveta há um punhal.
Foi forjado em Toledo, em fins do século passado:
Luís Melian Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego segurou-o algumas vezes.
Aqueles que o vêem sentem necessidade de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o estavam buscando; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a folha obediente e poderosa movimenta-se com precisão dentro da bainha.
O punhal quer outra coisa.
É mais do que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de um certo modo eterno, o punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar sangue brusco.
Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, o punhal conta interminavelmente o seu simples sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige, porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para o qual os homens o criaram.
Às vezes me dá pena, tanta dureza, tanta fé, tão tranqüila ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.
Borges, Nova Antologia Pessoal p. 66.

Este trecho é do escritor e filósofo argentino: Jorge Luís Borges. Aqui temos um exemplo de ‘deixar-ser o ente’. Borges deixa-ser o punhal naquilo que é manifesto como punhal.
Refletindo o que Heidegger diz de Liberdade como deixar-ser o ente, será que você consegue ‘ver’ por que esse texto é um exemplo para o ‘deixar-ser-o-ente’, portanto para a liberdade?
Ler o texto de Borges, tentando entrar no coração do punhal...! E tente intuir o que é manifesto. Se você conseguir ver, então você mesmo nesse intuir está deixando o punhal ser. Depois disso, consegue dizer o que você viu?
Para a seguinte reunião, cada grupo poderia apresentar uma descrição do que viu, para ilustrar os textos abstratos de Heidegger sobre a liberdade como deixar-ser o ente, entregar-se ao desvendado, etc.


9. Reunião: Da Essência da Verdade

Reflexão acerca do 4 capítulo:
1. Na nossa leitura, talvez você tenha percebido um fato muito importante; importante para a compreensão do estudo da filosofia.
Você inicia a leitura, disposto a buscar a resposta para a pergunta: o que é Verdade? Motivo, talvez curiosidade. Talvez um mero desejo de informação ou simples ocupação. Talvez uma verdadeira sede de saber, cultura; ou, quem sabe, uma dura necessidade de resolver a dúvida que se apossou de sua mente.
Cada qual, a partir de uma atitude em frente ao texto, começa a entrar no processo de leitura. Atitude em frente ao texto que é expressão da sua atitude perante a filosofia, perante o estudo em geral. Esta, por sua vez, se entrosa numa tomada de posição talvez inconsciente perante a sua vida. Toda essa rede de atitudes, da qual a sua atitude perante o texto é somente uma das articulações, não é apenas uma atitude moral. É antes uma pré-compreensão. Algo como ocular, enfoque preestabelecido que você carrega consigo. É uma tomada de posição intelectiva. O processo de leitura em vez de responder à pergunta: o que é a verdade, leva você a se confrontar com essa sua pre-compreensão. Ficar confuso, por exemplo, é uma confrontação. Pois, se o texto o deixou confuso você está colocado diante da pergunta: por que fiquei confuso? Talvez, a minha atitude intelectual esteja bitolada no sentido de achar que o estudo deve dar respostas prontas às minhas perguntas, à quisa do catecismo da doutrina cristã. Ou talvez o que possuo de cabedal de conhecimento não passe de meros conceitos recebidos, jamais refletidos, uma espécie de etiquetas que uso para ordenar as situações ao redor de mim. Verdade, liberdade, será que já travei uma luta corpo a corpo com esses conceitos, confrontando-os com a realidade que eu vivo, que nos cerca? Afinal, como vivo? Qual é a minha ex-sistência? O grau de transcendência? Qual a minha existência intelectual? O grau de confronto com teologia, filosofia? Receptiva na atitude dócil, filial, sem distanciamento da conscientização confrontal? Atitude de aluno que é informado. Informação. Erudição. Cabedal de conhecimento. Para mais tarde usá-lo etc…
Mas, … e você mesmo?
O texto de Heidegger, se você consegue entrar em luta com ele, leva-o necessariamente a um confronto. Em vez de me responder às perguntas e dissipar as dúvidas, ele começa a me revelar a minha estrutura mental. Começa a me mostrar que jamais pensará com res-ponsabilidade sobre a realidade muito séria e pesada como, por exemplo, verdade, liberdade. O texto começa, então, a sacudir, a abalar meus pré-conceitos, mostra a necessidade de me dispor para a transformação do pensar. Transformação, aliás, que traz consigo o risco de revisar todo o meu modo de ser, ver, sentir e julgar. Nesse sentido, talvez, a reflexão é uma coisa bastante perigosa e não algo inofensivo e abstrato. Talvez, é necessário estudar, refletir como quem salva a sua pele…
Um tema para a reflexão individual: por que sou tão insensível para o peso de tudo quanto lemos, pensamos e estudamos? Parece que me envolve uma nuvem de leviandade acadêmica que considera como material de informação, erudição, saber, instrumento de pastoral as realidades explosivas e periculosíssimas da Vida como: Deus, liberdade, verdade, mal etc. Donde vem que temos ao redor de nós um mundo de conceitos, etiquetas e pré-conceitos que nos fazem cegos e insensíveis para a Experiência, da Realidade na qual estamos metidos até o pescoço? Donde vem que tantos anos de estudos nos tiram a capacidade de admirar, de nos angustiar, de nos surpreender? De nos deixar atingir? Por que perdemos o vigor, o frescor, a vulnerabilidade do espírito? Donde vem essa tendência em mim de nivelar tudo no ‘já-conhecido’, de ‘nos acostumarmos a tudo’, de não conseguirmos mais dar a nitidez e a plasticidade às coisas ao nosso redor? Essa tendência de ‘acostumar-se’, em que o frescor da experiência originária decai para o cotidiano monótono, tedioso e sem colorido está intimamente ligada com o que Heidegger chama de: não-verdade no desvelamento, isto é: o encobrimento ou o erro.

2. Heidegger afirma na que a reflexão sobre o relacionamento fundamental entre a verdade e a não-verdade nos leva ao questionamento da essência do homem etc.
Experimente ver bem o processo. Você começa uma reflexão pegando a ponta do fio de um problema: o problema da essência da verdade. Um problema nunca está só. O fio de um problema nos leva imediatamente às suas implicações. Logo que você começa a des-fiar uma questão, vem junto toda uma rede de outros problemas. Com outras palavras: a busca da essência da verdade é ao mesmo tempo busca da essência da liberdade, essa é ao mesmo tempo a busca pela essência do homem. E essa, por sua vez, uma pergunta pelo ser. Na filosofia é necessário ter a paciência e coragem de assumir esse des-fiamento em diferentes direções ao mesmo tempo. De aceitar como algo natural esse estilo de investigação no qual, quando você começa num ponto surgirá aos poucos todas as implicações ali contidas.

3. Heidegger chama o fundamento latente essencial do homem: Da-sein. Da-sein é tradução literal do termo latim: Ex-sistência.
Na linguagem comum e nas ‘filosóficas’ que se baseiam no senso comum, usamos o temo existência para indicar algo que é real em contraposição ao fictício, ao irreal. Existência é aquilo que faz com que algo seja real, e não fictício ou irreal.
Em Heidegger o termo significa a estrutura de profundidade fundamental do ser-homem.
Ele escreve: ex-sistência.
Sistência no ex. Sistir no ex significa: constituir-se e manter a sua consistência (sistência) a partir de uma abertura (ex).
Tomemos um exemplo da coragem. Coragem não é uma coisa que você adquire como objeto já existente diante de você. A coragem é uma abertura, um modo de ser no qual você tomando todo o seu ser deve entrar. Mas, esse entrar não é entrar no ‘espaço’ já existente. É um abrir-se e manter-se renovando-se sempre de novo nessa abertura. Aqui surge a estrutura que poderíamos caracterizar como contínua auto-assumpção, renovação contínua, na qual cada passo que você dá deve reassumir todo o seu ser passado e se expor de novo à abertura coragem que vai se tornando cada vez mais nítida que vai se desvelando no que ela é;  e ao se revelar exige por sua vez o engajamento renovado e potenciado. É o transcender-se a si mesmo, a auto-superação. É nesse momento dinâmico que vai se constituindo cada vez mais plástica e nitidamente o eu-coragem ou o eu-corajoso e esse eu-corajoso é uma espécie de ocular que me faz ver ao meu redor todo um mundo de valores de coragem.
Essa estrutura da ex-sistência no fundo é uma compreensão originária do que coisisticamente chamamos de estrutura sujeito-objeto.
Portanto, Heidegger não quer eliminar a estrutura sujeito-objeto. Aqui ele pretende é ver o fundamento originário dessa estrutura. Ou, em outros termos: a estrutura sujeito-objeto como nós estamos acostumados a entender não é outra coisa do que uma compreensão fossilizada e ingênua, coisificada de uma estrutura originária que se chama ex-sistência.
4. Na raiz de Da-sein, de Ex-sistência está sempre uma experiência originária que é como uma abertura toda nova, na qual eu entro e devo me sustentar na ex-posição, para eu poder ‘ex-sistir’.
Algumas perguntas:
a) É necessário que vivamos nesta tensão da ex-sistência, da ex-posição? Não é possível um modo de ser no qual não é necessário essa ‘tomada’ de consciência, essa re-novação contínua ex-sistencial para que subsistamos? Cf. Índios, plantas, animais, crianças etc.
Será que não é possível viver funcionando simplesmente? Ou vegetando? Donde vem que a humanidade entrou a viver nesta estrutura dinâmica de transcendência?
Se eu identifico este modo de ser (ex-sistência) com a História, podemos formular a mesma pergunta: não é possível um modo de ser que não seja histórico?
b) Existem diversas experiências originárias. Heidegger cita uma delas, a experiência da physis grega.
Existe uma experiência originária ‘mais originária’ que seja como que o fator fundamental das diversas experiências originária? Como se relacionam as totalidades, os modos que surgem cada vez diferentes a partir dessas experiências originárias?

Sugestão de trabalho para a seguinte reunião:
1. Individualmente: ler de novo o capítulo 4, procurando entender o que é ex-sistência e que relação tem com a História.
2. Cada grupo trazer um exemplo concreto, onde se mostra a estrutura da ex-sistência.


10 . Reunião: Sobre a Essência da Verdade

Ainda algo sobre o capítulo 4:
Reflexão sobre a verdade nos leva a refletir sobre a liberdade. A reflexão sobre a liberdade nos leva a refletir sobre a essência do homem. A reflexão sobre a essência do homem como liberdade só é possível se nos abrirmos à experiência de uma dimensão original oculta no homem, a experiência do ser-aí. Essa experiência nos leva a, ou melhor, é o âmbito, o lugar onde a essência da verdade se revela originariamente.
Dissemos: experiência do ser-aí.
Peço conferir o texto à p. 31. O texto diz: “…nos garantirá a experiência de um fundamento original oculto do homem ( do ser-aí).”
Esse genitivo: do ser-aí, está no lugar de: do homem? Ou está no lugar de: de um fundamento original oculto do homem? Portanto: “…nos garantirá a experiência de um fundamento original oculto (do homem) = (do ser-aí); ou nos garantirá a experiência (de um fundamento original oculto do homem) = (do ser-aí)?”
Nós vamos interpretar o texto na Segunda acepção. A experiência do ser-aí é a experiência de um fundamento original oculto do homem.
Em vez de ser-aí, Heidegger também usa o termo: ek-sistencia, ser-aí ek-sistente (cfr. p. 35).
Embora uma análise minuciosa do texto nos mostre nuances e distinções, para facilitar a compreensão, vamos falar a grosso modo, sem detalhes, à quiçá de esboço fundamental.
Nessa perspectiva, são praticamente sinônimos: ser-aí (p. 31), ek-sistente (p. 33), abandono ek-sistente, presença, ek-sistencia (p. 34), ser-aí ek-sistente (p. 35).
O nosso interesse é de saber em que consiste a essência da verdade. Partindo da verdade da enunciação chegamos a ver que a liberdade é a essência da verdade. Por isso, a pergunta pela essência da verdade se transformou na pergunta pela essência da liberdade. Mas a pergunta pela liberdade se revela como uma pergunta pela experiência de um fundamento original oculto do homem: a pergunta pela experiência do ser-aí, experiência da ek-sistência.
A formulação: a experiência da ek-sistência, no entanto, pode insinuar uma falsa pista na reflexão, pois ao ouvir esta formulação podemos imaginar o estado de coisa da seguinte maneira: o homem como o sujeito de uma experiência psicológica do estar aberto ao mundo de coisas. Esse modelo deve ser afastado da nossa mente.
A experiência da ek-sistência não é uma experiência sobre um objeto chamado ek-sistência. É antes uma experiência a partir da estrutura fundamental chamada ek-sistência. A ek-sistência é ela mesma a experiência originária e fundamental, a partir da e na qual o homem se torna homem como livre. A ek-sistência é a essência do ser-homem livre; a ek-sistência é a essência da liberdade. A ek-sistência é liberdade.
O capítulo 4 tenta descrever a estrutura da ek-sistência como liberdade. Com outras palavras: aquilo que faz com que o homem seja homem é a estrutura fundamental originária oculta do homem chamada liberdade ou ek-sistência.
Mas, atenção: a ek-sistência não é uma coisa-substância, algo que existe como ‘coisa’ debaixo da aparência chamada homem, à maneira de um núcleo ‘fundamento’, fundo. A ek-sistência é experiência. Ela é só no acontecimento, no processo, no viver.
Toda a dificuldade de compreensão provém do esquema usual coisista do nosso modo de pensar. Quando falamos de experiência, viver, etc., logo perguntamos: quem vive? Quem Experimenta? E imaginamos o homem como uma substância que tem o ato de viver, ato de experimentar. Você percebe que para Heidegger é necessário abandonar esse esquema, é necessário se dispor ‘para a transformação do pensamento’ (p. 31).
Pois, aqui no nosso caso, não é o homem que tem a ek-sistência, mas a ek-sitência é que possibilita o ser – homem. O modo ‘fundamental’ do ser – homem, a maneira originária do ser – homem, não consiste em ele ser algo, ser uma substância, mas sim em: ser ele vida. Vida jamais é coisa, ela é processo, experiência.
Mas o termo vida é também ambíguo. Pois posso entendê-lo na objetivação biológica.
Vamos, portanto, que as palavras não conseguem exprimir sem ambigüidade essa realidade fundamental que denominamos: ek-sistência, liberdade, vida.
O capítulo 4, usando termos e expressões que a cada momento pode ser interpretados inadequadamente como indicativos de fenômenos psicológicos, tenta mostrar em que consiste essa ‘realidade’ essencial.
Esse processo, essa vida foi concebida desde o seu início pelo pensamento ocidental com a palavra alétheia: o desvelamento.
Desvelamento, como processo, no qual os entes se manifestam, enquanto entes, é o processo, a estrutura dinâmica fundamental, que impregna e está na fonte do pensamento ocidental. Trata-se, portanto, do modo de ser fundamental.
Hoje, quando falamos de ente, logo pensamos no objeto, na coisa diante de mim.
Essa coisa, dizemos nós, me está presente, me aparece, se me revela, se me manifesta, me surge, se me coloca em frente, está ali como o manifesto etc.
O pronome ‘me’ indica o sujeito a quem o ente se manifesta. Mas esse sujeito ele mesmo também é somente enquanto está presente, aparece, se revela, se manifesta, surge, se coloca em frente, está aqui como manifesto, isto é: enquanto ente.
Surge assim a pergunta: em que consiste, pois, o processo em que tudo – incluindo o próprio sujeito a quem tudo se manifesta – se torna presente como ente?
Esse processo, dissemos, chama-se desvelamento.
O homem somente se torna homem, quando se abandona, se abre a esse desvelamento. Somente então ele é ek-sistente. Abandonar-se, abrir-se, deixar-se levar pelo processo de desvelamento é expor-se (ex-por) à manifestação do ente, pois o desvelamento é o processo no qual o ente se manifesta como tal. Esse abandono ao desvelamento se chama ek-sistência. É, portanto, na ek-sistência que o homem surge como homem no meio dos entes que se lhe manifestam como tais. Ex-sistência liberta o homem como homem, tornando-o o lugar de manifestação do ente.
Mas como é, em que consiste essa experiência originária do ek-sistente, de ex-por-se ao desvelamento?
Os gregos a denominaram: alétheia, o desvelamento. Esse processo-vida chamado desvelamento é o que os gregos entendiam por physis, natureza.
Para nós que entendemos a natureza como o mundo de entes opostos ao espírito, ao sujeito, portanto dentro do esquema sujeito – objeto, torna-se difícil entender o que seja physis, natureza como o processo de ‘presença que eclode’ (p. 34).
Trata-se da experiência originária na qual, pela qual tudo nasce (natureza nascer), vive, se torna vida, se manifesta, se liberta para a vida.
Sempre sob o risco de sermos entendidos psicologicamente, de nos expressarmos inadequadamente com termos ‘coisistas’, vamos procurar intuir o como dessa experiência originária, por meio de exemplos, mas o modo de ser, o ‘como’ insinuado.
Depoimentos de Eugêne Ionesco tirados do livro: Diálogos com Eugêne Ionesco, Claude Bonnefoy, Editora Mundo Musical Ltda, Rio, 1970.
“Eu morava numa casa muito bonita, muito antiga. Não era um castelo, era uma velha herdade que se chamava ‘O Moinho’. Na verdade, era um velho moinho declarado sem utilidade pública depois de cem anos... Esta casa ficava num local extraordinário, no cruzamento de três ou quatro caminhos, um lugar rodeado de colinas, de todas as pequenas colinas, de bosque... Era exatamente um ninho, um abrigo. Eu tinha lá, naquela casa sobremodo sombria, como todas as casas do campo o eram naquele tempo, um sentimento extraordinário de conforto... Tudo se prestava à simbolização. Como morávamos no fundo do pequeno vale, devíamos, para ir ao povoado, subir um pequeno outeiro que chamava de ‘Le Roquest’. O que principalmente se avistava ao escalar-se este outeiro era, alto, o campanário. Lembro-me de certa manhã muito feliz, muito luminosa, em que eu ia em trajes domingueiros rumo à igreja. Vejo ainda o céu azul, e, recortando-se no céu, a agulha da torre da igreja. Os campanários, eu os entendo. Havia  o céu, havia a terra, a união perfeita do céu e da terra. Creio que certos psicanalistas, os adeptos de Jung, dizem que sofremos porque sentimos em nós a separação do céu e da terra. Ora, lá havia verdadeiramente a união do céu e da terra. É agora que tento explicar-me porque a gente se sente assim feliz. Naquela época, eu vivia aquele paraíso. Havia as cores, as cores estimulantes dum frescor e duma intensidade que nunca mais terão, ganvílias na primavera, o caminho que se abria. Aquilo também era misterioso, aquilo também tinha uma significação profunda, uma verdade elementar. No inverno, o caminho era lamacento, verdadeiramente fechado. Não se podia atravessá-lo. Depois, de repente, havia como que uma transfiguração da paisagem. Tudo se enchia novamente de flores vivas, de esquilos, de pássaros canoros, de insetos dourados... Era  realmente, eu o sentia, a ressurreição daquele mundo de lama, de árvores petrificadas, das quais os braços se estendiam, retornando à vida” (pp. 8-9).
“A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na primavera, a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infância. De uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável. Quando eu era mais jovem, possuía reservas luminosas. Isso começa a minguar... eu me encaminho para a lama. Lembro-me que certo dia um pessimista chegou a minha casa. Naquele tempo, eu morava num rés-do-chão, à Rua Claude Terrasse. Minha filha era ainda um bebê e não dispúnhamos de muito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de casa. Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida, que a vida não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, que tudo era sórdido, que nossa casa era triste e feia etc... E eu no cordel ao meio do quarto – “é muito bonito isso”. O amigo olhou, admirado e desdenhoso”.
“Sim – insistia eu – basta saber olhar bem, é preciso ver. É admirável. Não importa qual seja a maravilha, tudo é uma epifania gloriosa, o mais pequeno objeto resplandece”. Porque, repentinamente, eu tivera a impressão de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insólita, o mundo virgem, refulgente. Eu conseguira vê-la com olhos de pintor para suas qualidades de luz. A partir disso, tudo parecia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, veja essa casa em frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares. Pois bem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa vontade; quero dizer, ela se ilumina subitamente, é um fato que se manifesta. Todo o mundo pode ter essas impressões (pp. 22-23).
Frescor, nitidez, vivacidade, luminosidade, limpidez, pureza, originariedade, a nascividade: isto é o desvelamento como vida.
Tudo isso não são qualidades objetivas estáticas da coisa, não são projeções subjetivas do eu-sujeito-aqui, mas sim processo – vivo, presença que eclode, tornando manifesta cada coisa na sua nitidez, frescor e vivacidade, na sua identidade, revelando o ente enquanto tal. Como processo é movimento, ele vai e vem, ora abrindo para a manifestação luminosa, ora fechando para a opacidade. Esse movimento revelador e vivificador é a ‘natureza’ no sentido de physis, a nascividade.
Mas por que o termo des-velamento? Desvelar é desencobrir algo escondido. O que é escondido? O que é que se revela? Como entender o desvelamento em relação ao frescor, vigor, nascividade da physis?
Rosto de uma mulher. Pálpebras fechadas, serena leve vibração de pudor, séria mas não rigorosa. Aqui percebemos um ‘encobrimento’. O rosto está ‘fechado’, virado para o interior, palpita suavemente numa vivacidade contida para dentro. Nesse ‘encobrimento’, nesse ‘esconder-se para o interior de si mesmo’ se torna presente, se manifesta, se desvela a interioridade feminina.
De repente ela sorri levemente. Dizemos: o rosto se abriu num sorriso. Brilham os olhos na sua profundidade. O rosto parece emergir do profundo ‘esconderijo’. O sorriso se revela, se manifesta, se desvela. Mas ao se desvelar como um sorriso no seu frescor e inocência, torna-se o que ele é nele mesmo, na consistência viva de um sorriso; há portanto um ‘encobrimento’, um ‘fechamento’. Pode-se observar isso nos rostos que aparecem na televisão: rostos de criança, de jovem, da mulher, do homem, dos velhos, dos funcionários, dos artistas, etc. e tentar ver em que consiste o fechamento e abertura em cada caso.
Abrir-se e fechar-se; desvelar e velar; dar-se e conter-se; livrar-se e reter; ex e sistência, o equilíbrio harmonioso, sensível desses dois movimentos no presente de uma presença viva, límpida, cristalina e nítida, eis o que constitui o movimento (ex) que insiste (sistência) como a manifestação do ente como ente. Desvelamento, portanto, não significa des-cobrimento de algo existente escondido, mas sim o movimento contínuo de Vida que, ao desvelar, se constitui como ente.
Ek-sistir é, por isso, deixar que aconteça esse equilíbrio da Vida, deixar-se carregar por esse ritmo e essa pulsação de equilíbrio do des-velamento-velamento que é a Vida, o suco, a essência, o vigor, a energia do ente, a sua manifestação.
Só quem palpita nesse movimento vive como homem.
Viver assim é abrir-se ‘ao ente em sua totalidade, percebido sob a forma de uma presença que eclode’.
Viver assim é ser livre, não livre no sentido de poder fazer isso ou aquilo, mas de deixar-ser-o-ente, como desvelamento da Vida, como o lugar da libertação do ente na sua manifestação.
O desvelamento do ente em sua totalidade, como Vida, marca o início da História. Pois essa estrutura ek-sistencial do ser-homem como Liberdade é ela mesma a estrutura da História.


Para a seguinte reunião:

1. É favor ler o texto do capítulo 4 à luz dos exemplos acima esboçados para ver se você consegue entender em linhas gerais o que é o desvelamento.
2. E embora seja difícil, examinar no texto pp. 35-36 que relação tem a ek-sistência com a História.
3. Na seguinte reunião sugiro: cada grupo apresentar os textos que não entenderam e dizer o que descobriram sobre o relacionamento da ek-sistência com a História.


11. Reunião: Sobre a Essência da Verdade

Que relação existe entre a Ek-sistência e a História?
O texto: “Se, entretanto, o ser – aí ek-sistente, como deixar-ser do ente, libera o homem para a sua ‘liberdade’, quer oferecendo à sua escolha alguma coisa possível (ente), quer impondo-lhe alguma coisa necessária (ente), não é então o arbítrio humano que dispõe da liberdade. O antes, pelo contrário: a liberdade, o ser – aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem e isto tão originariamente que somente ela permite a uma humanidade de inaugurar a relação como o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda história. Somente o homem eksistente é historial. A ‘natureza’não tem história” (p. 35).
Peço ter bem presente o que dissemos nas reflexões anteriores sobre a ek-sistência.
Ela é abandonar-se ao processo de desvelamento da physis. Ela é deixar-se carregar pela pulsação da nascividade libertadora dos entes. É deixar-se impregnar pela luminosidade da manifestação dos entes.
O modo de ser ek-sistencial é portanto receptividade, algo como disponibilidade à nascividade que vem de ‘dentro’, é algo como deixar-se conduzir, ou melhor eduzir.
Quando falamos de liberdade na linguagem comum, imaginamos essa liberdade como o meu poder (possibilidade) de fazer isso ou aquilo, de não fazer isso ou aquilo, fazer ou não fazer assim. Tudo quanto limita esse poder é algo necessário (necessidade). Possibilidade e necessidade indicam, portanto, o âmbito dentro do qual o meu poder de escolha, o arbítrio humano dispõe da liberdade, campo de ação.
Mas, donde vem esse ‘poder’? Donde vem esse âmbito do meu poder, dentro do qual algo aparece como possível, algo como impossível, outro algo como necessário?
Que eu, dentro desse âmbito tenha a escolha, é explicável pelo arbítrio humano. Mas que este âmbito com sua regra de jogo e espaço, sua possibilidade e necessidade me é dado, não posso mais explicar pelo arbítrio humano.
Esse âmbito eu não o escolhi. Pois escolher me é só possível já dentro desse âmbito de possibilidade e necessidade. O âmbito da minha liberdade, a possibilidade, a impossibilidade, a necessidade do meu poder já está ali aberto, dentro do qual eu me livro para o meu arbítrio de escolha.
A abertura do âmbito da minha liberdade de arbítrio não a possuo eu, ele não está sob o meu poder. Antes pelo contrário, é ele que me tem sob o seu poder, sob sua condução, e disponibilidade. Liberdade é, portanto, a disponibilidade à condução do poder que me domina como Vida dos entes, como o desvelamento dos entes.
Mas o que tem a ver tudo isso com a História? Como entender a frase de Heidegger: “A liberdade, o ser – aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto tão originariamente que somente ela permite a uma humanidade de inaugurar a revelação com o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda a História” (p. 35)?
Notemos que o texto diz: a liberdade, o ser – aí, ek-sistente e desvelador. Aqui, pelo modo de dizer, a liberdade, a Ek-sistência e o Desvelamento são uma e mesma ‘coisa’.
Liberdade, Ek-sistência, Desvelamento são três termos para indicar a experiência de um fundamento original oculto do homem, a experiência do ser – aí (p. 31).
Essa experiência do ser – aí nós a caracterizamos na reflexão anterior como pulsação da vida ou Vida simplesmente.
Essa vida chamamos também de physis, natura no sentido de nascividade.
O exemplo do depoimento de Ionesco nos serviu para evocar os traços de uma tal experiência originária em nós mesmos. Mas todo o problema de compreensão reside nisso que ao tematizarmos os traços de uma tal experiência, ao usarmos palavras como Vida, pulsação da Vida, Vivacidade, Luminosidade, Transparência, Nitidez, Vigor etc. Sem o querer os concebemos como estáticos, como ‘algo’.
Se, porém, sem deixarmo-nos fixar por tais tendências estatizantes, temtarmos ficar na evidência da experiência, talvez consigamos observar o seguinte: a vivacidade, a luminosidade, a transparência, a nitidez, o vigor é por assim dizer a plenitude de tensão, o equilíbrio da pulsação. O que percebemos como estático, por exemplo, a transparência, nitidez, luminosidade não é propriamente estático, parado, mas sim o resultado de uma energética contida, a tensão da serenidade de uma energia armazenada, carregada que está prestes a saltar a cada convite. Com outras palavras, atrás da serenidade se esconde a tremenda tensão do equilíbrio entre a energia de expansão e a energia de contenção. Se a tensão perde o seu meio do equilíbrio e tende a acentuar a expansão, a Vida se esvai, o sentido da vida se torna inflacionário, ameaça a morrer na inanição, no esvaziamento, ou desbotamento. Se a tensão perde o seu meio de equilíbrio e tende a acentuar a contenção, a Vida se fossiliza, o sentido da vida se torna asfixiante, fechado, na linha do endurecimento, falta de espaço vital, estarrecimento.
Como porém, conceber esse equilíbrio – tensão, a fonte da pulsação vivificadora, a fonte da luminosidade e nitidez na vivacidade?
Em geral, como nós só percebemos a superfície serena, a face harmoniosa do equilíbrio, esquecemos o processo e as fases de movimento armazenados no interior da tensão harmoniosa.
Se os colocarmos por dentro de uma tal plenitude de tensão, percebemos que ela não é simplesmente um espaço homogêneo cheio de energia contida, mas sim um mundo de tendências, oposições, níveis e camadas de energia, articulados entre si, mundo coeso e organizado numa totalidade de única como concreção.
E se seguirmos a gênese dessa concreção percebemos que os passos dessa concreção para a totalidade se realiza num movimento que poderíamos chamar de superação.
Em que consiste pois essa estrutura de superação?
Talvez um exemplo possa nos mostrar o modo de ser na superação.
Você é dramaturgo. Um dia de repente, ocorre-lhe uma idéia estranha. A idéia de um homem que não consegue morrer. Ele morre, mas quando todos o consideram morto, ressuscita. Essa idéia o fascina. Você lhe dá osso e carne. Ele vai se chamar Wolfgang Schwitter, um eh..., digamos sim, talvez... bem, esse Schwitter vai ser o portador do prêmio Nobel, já que estamos na época da coleção de troféus.
Schwitter vai dar o primeiro passo da sua estória. Para onde vai? Digamos para o atelier de um pintor. Já que deu o primeiro passo, esse condicionamento implica num passado. Donde ele parte? Bem, digamos duma clínica. Espere ali, do necrotério de uma clínica moderna, Mas já que vai a um atelier, para esse passo deve haver no passado um motivo. Bem, vamos dizer que ele antes de começar a escrever foi um pintor. Pintor medíocre com pretensões. Fracassou e por isso começou a escrever e acabou ganhando o Prêmio Nobel. O primeiro passo, assim dado ao acaso, em direção do atelier de um pintor, acaba implicando num passado desse passo: Schwitter foi um pintor fracassado. Que se realizou na literatura. Mas por que volta ao atelier? O passo se dirige para o atelier. O passado do pintor fracassado implica no futuro do passo que deu na direção do atelier. Vai ali, para morrer ali. Quer morrer ali, porque a vida literária não lhe matou a saudade pelo primeiro amor da sua vida, a pintura. Entra no atelier. Ali vamos fazê-lo encontrar com um pintor que é também fracassado com pretensões. Schwitter entra, cambaleia e cai. Suor frio, olhos virados. O pintor se espanta. Leva-o à cama. Ali ao lado numa outra cama, uma mulher virada de costas nua, está sendo pintada, um modelo, portanto.
Todos esses passos e acontecimentos são condicionados pelo primeiro passo de Schwitter que implicou na criação de um passado como portador do Prêmio Nobel que é um pintor fracassado. Mas esses acontecimentos futuros ao primeiro passo implicam em novas facetas do passado do nosso herói. O homem está moribundo. Pudera, ela já estava no caixão. Ele saíra de gatinhas de baixo dos ramalhetes de flores que o enterravam, saíra do necrotério para morrer no atelier de pintura onde outrora trabalhara. A estória continua. Cada passo que acontece, traz nova revelação, novo sentido do passado de Schwitter, cria condições para novos acontecimentos futuros, estes por sua vez criam novas implicações do passado. Assim aos poucos a personagem fictícia que iniciou por assim dizer o seu passa do nada, como o primeiro passo vai se emaranhando num rede de sentidos, vai se formando ao redor dele todo um mundo de acontecimentos, encontros, pessoas, relacionamentos, coisas. Cada passo vai retomando a totalidade do sentido já constituído, portanto, do passado, vai criando novos arranjos como nova possibilidade do futuro, num processo de reintegração e aberturas de horizontes. Processo de contenção e expansão. Concresce assim o conteúdo do homem que queria morrer mas não conseguia morrer, conteúdo esse que vai se amarrando cada vez mais para um mundo de totalidade dos entes, cada vez mais coeso, unitário e necessário. Cada passo é superação do que já se passou, do que já se foi, e ao mesmo tempo abertura do âmbito de possibilidade que está implicada naquilo que se foi e se é. Cada passo é uma decisão que vai trançando o fio da estória desse hapening, fio esse que cada vez mais se tornando único e sem escolha.
É, portanto, um desdobrar que ao mesmo tempo implica no enrolamento para um todo chamado mundo. E quando esse processo chega à sua saturação, onde todas as implicações e explicações forem por assim dizer articuladas numa totalidade coesa, necessária, tensa mas equilibrada, o herói Schwitter surge como uma figura, uma Gestalt, como uma obra de arte dramático – cômica.
Esse processo de desdobramento que cria no movimento de auto-implicação e auto-explicação todo um mundo coeso na sua imanência a partir de um acaso, chama-se o processo de superação. Essa estrutura é a estrutura da estória. Visto de fora como totalidade essa figura cristalizada como a obra de arte dramática parece um bloco monolítico, pleno, vigoroso, transparente e nítido. Visto por dentro é todo um mundo de movimentos que se articulam numa estória. Ora, isto é a estrutura da História. Essa estrutura é a própria essência, o próprio processo da História. Vida, Nascividade é ser cada vez a coesão equilibrada, cheia desse processo complexo da História.
Se o processo me leva a uma coesão cristalizada do equilíbrio na totalidade de uma obra de arte, como mo caso de Meteoro, de Friedrich Dürremat, o qual usamos acima como o nosso exemplo, então há a nascividade da Verdade, então houve o ‘deixar – se – o – ente – na – sua – totalidade’, houve a Liberdade, o Desvelamento. Mas esse processo pode ficar bloqueado, pode endurecer, ou pode ficar frouxo e sem coesão interna na sua necessidade articulada. Nesse caso surge o erro, o velamento, o encobrimento, a dissimulação (p. 36).
Esse encobrimento ou velamento no entanto está sempre presente como condição da decisão, em cada passo que se dá nesse processo da estória. Pois cada passo que se dá, retoma aquilo que já foi, abre-lhe nova chance de ser, mas ao mesmo tempo no processo de reintegração o faz contrair para um novo é. O é atual do passo na decisão do presente é o fio infinitesimal de equilíbrio, onde na passagem do foi para o será se revela cada vez a implicação da totalidade do processo. Esse vislumbre da totalidade é o desvelamento. Mas esse desvelamento, simultaneamente com o seu fulgor momentâneo, já se contrai para um é, que logo após se tornará foi para a nova chance do será.
Entregar-se, abandonar-se ao desvelamento, el-sistir, ek-sistência, sistir no ex, significa portanto: abrir-se ao vislumbre infinitesimal do desvelamento no agora da passagem e contrair-se para o encobrimento do ‘é’ e ‘foi’, procurando fazer transparente essa contração à luz desse vislumbramento. A contração é a situação, a encarnação, a concretização que contrai a luminosidade do desvelamento. Essa concreção no entanto recebe a sua luminosidade do desvelamento numa concreção: isto é o erro como encobrimento. Essa concreção, no entanto, recebe a sua luminosidade somente a partir da luz do desvelamento. Quanto mais transparente se torna a contração à luz do desvelamento, tanto mais se adequa à essência da Verdade.
NB: sinto muito que essa reflexão se tornou obscura. Para mim, no entanto, é clara  até certo ponto. Peço ler essa reflexão e tentar à mão dela, compreender o texto de Heidegger, capítulo 4 e 5. Esse estudo é a preparação para a reunião que vem. Ali discutiremos o que não se entendeu.


12. Reunião: Sobre a Essência da Verdade

O capítulo 5 procura sucintamente dizer em que consiste a essência da verdade, à luz do que foi dito nos capítulos anteriores. E revela a essência da verdade como a presença do ente em sua totalidade que se manifesta na vibração do equilíbrio entre o desvelamento e o velamento.
O capítulo faz mais ou menos os seguintes passos de pensamento:
1. Resume o que foi dito nos capítulos anteriores:
- a essência da verdade = Liberdade.
- a liberdade = abandono ao desvelamento do ente em     sua totalidade e enquanto tal.
- esse abandono = disposição de humor.
2. Mostra que essa liberdade (disposição de humor) não deve ser entendida psicologicamente.
3. Mostra que o ente em sua totalidade, revelado pela liberdade (disposição de humor) não é a soma de entes realmente conhecidos. Não coincide com o ente em sua totalidade científica.
4. Mostra o modo da presença desse ‘o ente em sua totalidade’: o modo de presença é ambigüidade: desvelamento e velamento.
5. conclui, insinuando a tese: pertence à essência da verdade tanto o desvelamento como velamento.
Não sei se você já percebeu o seguinte: ao ler o texto, ao discutir, temos a dificuldade de compreender. Entendemos as palavras. Ligamos formalmente as frases, entendemos a seqüência, a lógica dos trechos. Mas, não vemos a ‘coisa’. As palavras como ek-sistência, desvelamento, velamento, o ente em sua totalidade vão e têm na nossa mente como fantasmas vagos, indeterminados, acompanhados de certas imagens esporádicas que nos dão a impressão de compreensão, mas que nos deixem insatisfeitos, pois, não temos nada de palpável na nossa mão.
Por isso, o pensar filosófico nos dá a impressão desagradável de abstrato, inutilidade, alienação.
É nesse sentido que lemos na p. 38: Este ‘em sua totalidade’ jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertença ele quer à natureza quer à história. Ainda que este ‘em sua totalidade’ a tudo perpasse constantemente com sua disposição, permanece, contudo, o não-disposto (não-determinado) e o não-disponível (indisponível, indeterminável) e é, desta maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente e menos digno de nota”.
Este afastamento do ‘ente em sua totalidade’ se chama dissimulação do ‘ente em sua totalidade’ (p. 38).
Essa dissimulação pertence à essência da verdade. Nós devemos contar com ela.
Mas na prática concreta da nossa leitura, o que fazer para não ‘boiarmos’ na vaguidade e indeterminação de um compreender casual, esporádico, uma espécie de anemia do pensamento?
A resposta, você mesmo pode descobrir seguindo as indicações dadas por sua própria experiência. Você, ao ler os termos como desvelamento, percebe imediatamente como  a sua mente a partir dessa palavra tende instintivamente a algo visível que possa dar um conteúdo sensível concreto ao conceito ‘abstrato’. Você procura ilustração, exemplos que podem ser fixos para ajudar a fazer mais nítido o que o pensamento lhe sugere vagamente. Essa fixação é necessária. Mas traz consigo o perigo de coisificar a intuição, confundindo o pensamento com o exemplo. Por isso é mister ficarmos continuamente no processo: seguir a tendência da concretização, trazer ante os olhos um exemplo, mas a partir da ilustração voltar ao pensamento. Ilustrar dali o pensamento e ao mesmo tempo iluminar o exemplo a partir do pensamento. Procurar, portanto, nos balancear num contínuo vai e vem entre o pensamento e exemplo. Não nos fixarmos em nenhum deles, mas entrar na jogada desse processo de abertura (pensamento) e fixação (exemplo) e fazer surgir desse jogo de vai – e – vem, uma intuição clara, dinâmica e viva daquilo que se manifesta, no processo. Percebe você que este processo de vai e vem entre a abertura e fechamento é justamente o processo descrito como a essência da verdade: desvelamento e velamento?
A seguir vamos tentar ilustrar o capítulo 5.
Vimos nos capítulos anteriores como a essência da verdade se desvelou como liberdade.
Em que consiste a liberdade?
Liberdade consiste em: “deixar-ser ek-sistente que desvela o ente”. Como entender isso?
Verdade, na acepção usual, é a adequação de uma enunciação com o ente. Enunciação é um comportamento seu em relação ao ente. O seu comportamento corresponde ao ente. Mas, para que o seu comportamento possa corresponder ao ente, tanto o seu comportamento como o ente já devem estar ‘afinados’ um para o outro, isto é, estar em harmonia. Devem, portanto, estar já pre-dispostos um ao outro.
Esta pre-disposição é o que o capítulo chama de ‘disposição de humor’.
É o que chamamos de abertura originária, ek-sistência, abandono ao desvelamento, liberdade.
Por que se chama: disposição de humor?
Por que essa abertura totalizante da liberdade que é abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade se deixa exemplificar de uma forma muito visível, no que chamamos de humor? Por exemplo você levanta com o pé esquerdo. Está de mau humor. O mau humor ‘afina’ todos os seus comportamentos, de ante-mão, com o sentimento de descontentamento. Predispõe cada um dos seus comportamentos do dia.
Esse comportamento desde a hora em que você acordou, já  estão por assim dizer dentro do âmbito do mau humor. E cada comportamento, no qual você se abre ao ente, vibra na freqüência da abertura totalizante do mau humor. E cada comportamento corresponde então ao modo mau humorado da manifestação do ente.
A disposição do humor é, portanto, a condição prévia, anterior, para que possa se estabelecer o relacionamento do meu comportamento mau-humorado com o ente  que se me manifesta também como tedioso, irritante, adverso.
Mas, a gente poderia objetar ao capítulo 5, dizendo que essa tal disposição de humor não é coisa velha, já conhecida aos psicólogos. Esta disposição de humor não é outro coisa do que a ‘vivência’, ‘o estado de alma’, ‘um sentimento’. No fundo uma tal explicação do desvelamento do ente em sua totalidade não passaria, segundo essa objeção, de explicação subjetivista do mundo. É claro  que a gente vê tudo preto, porque o estado da alma da gente está ‘escuro’ pelo mau humor. Explicação subjetivista, particular, privada, uma teoria ultrapassada do século XIX etc, etc.
Examine-se a si mesmo se você, ao ler Heidegger não está entendendo tudo, ainda ‘psicologicamente’. Uma compreensão assim seria ingênua.
Heidegger chama a atenção do leitor contra essa falsa interpretação daquilo que ele chama de liberdade como disposição do humor.
Na p. 37 Heidegger tenta refutar essa interpretação psicologista em algumas frases.
Gostaria de sugerir como tema da discussão para a seguinte reunião o seguinte:
a) Descobrir onde está o trecho em que Heidegger refuta essa interpretação errônea.
b) Em que consiste a argumentação de Heidegger?
- Colocar bem nitidamente o problema.
- dar a refutação de Heidegger
- dizer, se você se convenceu com a argumentação.
O exemplo de cima do mau – humor não nos ilustra muito bem, em que sentido a liberdade é o abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade. Como entender: em sua totalidade?
Se no dia do mau – humor, quando estou pre-disposto ao sentimento do mau – humor, o cachorro que brinca na rua se desvela como esse ente desgraçado que me agride com suas gracinhas caninas ridículas, merecedoras de um ponta – pé. A totalidade se refere ali ao meu mau – humor, a esse ‘algo’ envolvente, não porém ao ente na sua totalidade. O ente aqui é esse cachorro singular. Em que sentido ele aparece na sua totalidade?
Para ilustrar essa totalidade fosse talvez mais interessante pegarmos um outro exemplo.
Quirino, numa reunião mencionou a resposta laconicamente magistral do seu pai diante da majestade rochosa da montanha, via Paraná – Santa Catarina. Diante do entusiasmo poético – místico do filho, o pai: ‘não sei porque tanto barulho!... Lá não posso plantar nada’!
É necessário observar nitidamente essa resposta. O entusiasta pela paisagem dirá: “Paciência, não tem dimensão pelo belo. Aqui há um velamento de uma totalidade. O ente em sua totalidade chamado majestade, cristalizada na nitidez e grandeza dessa massa compacta de granito não se desvela ao camponês”.
Esse esteta, no entanto, deixa escapar uma coisa. Que nesse velamento, nesse esconder-se, houve de fato o desvelamento de uma totalidade. Ao se velar, se desvela uma totalidade: houve a dissimulação. Em que sentido?
O que significa: ‘Lá não posso plantar nada’?
Significa: essa pedra seca, deserta de vida, sem água, sem o humus negro e suculento da terra, não serve para o plantio. Isto é, só pode ver no granito majestoso a pedra inútil, quem está pre-disposto dentro de uma abertura vital, de vida e morte, que se chama plantar. Plantar para o camponês é o seu mundo. Sua vida. O seu sustento. O sol as vicissitudes da fome, suas famílias, vida ou morte dos seus filhos, negócio, a angústia da colheita incerta, a festa dos trigais ondulantes, educação dos filhos, a felicidade da sua mulher, seu prestígio etc.
Com outras palavras: na ausência da possibilidade de plantar, se desvela a totalidade do ente chamado plantio.
Depois desse excurso, vamos analisar como o ente em sua totalidade se desvela ao camponês.
Um camponês e o seu campo.
Campo é um ente. Plantar é um comportamento. Enunciação: esse campo é bom para plantar. O campo és este ou aquele ente particular. Não é totalidade. Relacionamento  ‘plantar’ nesse campo é um comportamento. Não é totalidade.
Isto, considerado à primeira vista. O próprio camponês ao plantar, só percebe esse seu comportamento e este campo particular diante de si. O ente em sua totalidade está velado. Está dissimulado.
Onde está, pois, o aberto? O ente em sua totalidade? A disposição do humor? A ex-posição ek-sistente?
Heidegger diz na p. 37: ‘todo o comportamento do homem historial, sentido expressamente ou não, compreendido ou não, está disposto e através desta disposição colocado no ente em sua totalidade’.
O plantar é um comportamento do homem historial?
O ato de plantar como o movimento físico, fisiológico, biológico, psíquico etc. não é historial. Mas todos esses ‘atos’ no comportamento concreto desse camponês estão por assim dizer antes de toda e qualquer interpretação, ‘científica’, encravados numa determinada situação que à a vida, isto é, a história de camponês.
Você percebe aqui, quando dizemos vida, pensamos na História de um homem e não na vida como bios, vida como sucessão de dados da biografia, mas algo concreto, real, anterior a todas essas interpretações ‘delimitativas’?
Para vermos o comportamento historial do plantio em cujo processo se desvela o ente em sua totalidade, vamos recordar a canção argentina do último festival:
Pedro trazia a manhã às costas,
Pensado no Joana para a sesta,
Nas mãos trazia o trigo madura,
Saboreando um, mate, infindo como o tempo,
Minha pátria é o sulco da terra, contava Pedro,
Pedro Arado,
Pedro Terra
Pedro Joana,
Pedro da Guitarra,
Pedro Ninguém,
Pedro, Pedro ... etc...

O campo alheio que Pedro lavra, para nós que estamos fora, é um ente ao lado do outro ente. Para Pedro no entanto é a presença de todo um mundo que é a Vida: Joana, Guitarra, Arado, Terra, Nada. O complexo de conflitos, lutas, amores, alegrias, humilhações, complexo que num processo de incorporação no plantar, nessa luta de vida ou morte pelo sustento e auto-realização, se torna o habitat, onde eclode todo um mundo de significações vitais. Nesse pedaço de terra alheia está, portanto, presente a totalidade que constitui o sentido desse ente chamado campo. Mas não somente desse campo para esse indivíduo chamado Pedro, mas sim o sentido do campo como tal, como o sentido que perfaz a essência de todos os campos enquanto campo.
Um problema difícil de compreender é que esse desvelamento do ente campo, em sua totalidade é a revelação do sentido não somente desse campo, para esse indivíduo Pedro, mas sim o sentido do campo em sua totalidade e como tal. Como tal significa: de todos os campos enquanto campo.
Volta aqui aquele problema, lançado na última reunião por Tiago: se a totalidade se torna presente nesse ente particular, na sua diferença singular, como é possível haver mais do que um único ente singular?
Heidegger na p. 37: ‘o grau de revelação do ente em sua totalidade não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos’.
Isto significa: para que haja a presença do ente em sua totalidade, não é necessário estar presentes todos os entes em sentido numérico. Ou melhor, a totalidade da presença desvelada é outra da totalidade numérica. Existem também graus de revelação, isto é, grau de intensidade da totalidade. A totalidade no desvelamento não se mede pela extensão, mas sim pela intensidade. Com isso, esse campo assim é o exemplar, o típico (Gestalt) para todos os outros campos. O típico não é o coeficiente comum, a média comum de todos os indivíduos, o típico não é também a soma dos indivíduos. O típico é a forma originária, da qual os outros recebem o seu modo de ser.
Deixar - ser o ente na sua totalidade é fazer aparecer no ente todas as implicações ‘historiais’ de uma vida, implicação que não se manifesta como explicitação desdobrada de algo já existente nesse espaço campo como que potências escondidas, mas sim na presença da concreção atuante. Essa presença da totalidade só se manifesta como processo, no qual devemos ‘andar’ juntos com o caminhar historial da estória de Pedro camponês.
Somente no processo factual e real da estória (História) se nos revela o ente campo em sua totalidade.
Uma tal revelação, não me traz o vasto conhecimento sobre a composição química da terra, sobre a sua ‘história’ no sentido: historiográfico, não me mostra qual o rendimento econômico optimal da área de X metros quadrados etc. ‘Não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos’, diz Heidegger.
Trata-se antes de uma experiência, sob aspecto científico rudimentar, mas que tem uma intensidade e concreção do ser muito maior do que a extensionalidade horizontal dos conhecimentos científicos.
O que dissemos antes da revelação do ente – campo em sua totalidade no processo da estória de Pedro pode ser mal entendida. A presença da totalidade não é propriamente a totalidade dos fatos que constituem a história particular da vida de Pedro. Por outro lado, porém, a presença da totalidade se revela no processo da vida concreta de Pedro.
A totalidade que constitui o campo alheio lavrado por Pedro, se torna presente como a concentração da presença do sentido cósmico da Vida. Esse sentido cósmico é que dá a nitidez e a transparência universal à vida particular de Pedro que se torna aqui um símbolo universal do camponês pobre.
Esse sentido se manifesta como disposição de humor, isto é, como Stimmung do ente em sua totalidade. É dessa ‘afinação’ que surgem os interesses, os comportamentos do camponês, aos quais correspondem os entes ‘agrícolas’.
Na vida cotidiana de Pedro no entanto, embora essa Stimmung esteja presente, o interesse imediato e vivencial está voltado para esse espaço do campo que hoje tenho de lavrar, esse arado, essas sementes, essa planta. Portanto, como este ou aquele ente. Que este ou aquele ente surja com o sentido na minha frente, isto está condicionado pela presença do ente em sua totalidade. Mas logo que se dá o desvelamento do ente em sua totalidade, justamente com esse desvelamento se dá a afluência concêntrica  da totalidade no corpo desse ente particular. Essa afluência particularizante é o fechamento da abertura numa objetivação. Com isso se da o velamento. Esse velamento é uma espécie de esquecimento em que se faz olvidar o âmbito da abertura, esquecimento que fixa o ente na sua aparência, hipostatizando-o como este ente particular. Esse velamento é dissimulação.
Com isso surge um conceito ambíguo de velamento.
O velamento como a gestaltização da abertura na nitidez transparente da presença universo – singular.
O velamento como a dissimulação: isto é, objetivação da Gestalt (o ente em sua totalidade presente como Gestalt) numa coisa.


13. Reunião: Sobre a Essência da Verdade

NB: essa reflexão serve para os dois seminários. Para o seminário de ‘Sobre a Essência da Verdade’ a reflexão tenta ilustrar o que seja o desvelamento, o deixar - ser  como liberdade e o historial.

Da morte livre.
A expressão a morte livre parece insinuar a morte livremente escolhida. Mas a rápida leitura do capítulo, deixa-nos em dúvida, se de fato o texto pensa na morte natural ou na morte livremente escolhida e causada por mim.
A morte, que fenômeno é esse, descrito por Nietzsche, seja ela suicida, seja natural?
Para ter acesso à morte a partir da qual o texto fala, é necessário examinar o horizonte dentro do qual acabamos de colocar a pergunta: a morte, que fenômeno é esse descrito por Nietzsche?
Essa pergunta pressupõe a morte como objeto da descrição. Um fenômeno observado no outro como objeto do meu conhecer. O homem nasce, vive e morre. Vida como um trecho de tempo, com o seu começo, meio e fim. A morte é o fim como o ponto final de uma linha que inicia com o nascimento. A minha morte, nessa perspectiva, eu a percebo também como objeto do meu conhecer. Certamente, esse conhecer não é a morte que eu morro, mas sim, a morte que eu concebo como antecipação, segundo o modelo adquirido através da observação da morte do outro.
A morte que eu observo no outro ou a minha morte concebida segundo o modelo da morte do outro; e a própria morte que eu vou morrer, morte que atinge também a possibilidade de eu conceber a minha morte como objeto…como se relacionam esses dois modos de ser da morte?
A nossa compreensão usual da morte quando dizemos ‘a morte, que fenômeno é esse? A morte daquela pessoa; a morte do meu pai; a morte de John Kennedy; depois da morte virá o juízo e a ressurreição; na morte tudo se acaba etc etc.’…Já opera dentro de uma pré-compreensão do tempo.
Poder-se-ia examinar a intencionalidade, por exemplo, das companhias de seguro, das empresas funerárias, as instituições clínicas, associações para o salvamento de vida etc. Provavelmente descobrimos como horizontes dessas objetivações, o mesmo modo de ser da morte, cuja pressuposição assinala uma determinada pré-compreensão do tempo que é idêntica com a nossa pré-compreesnão usual do tempo.
Esquematizando ao máximo o modo de ser desse tempo usual, teremos a estrutura acima insinuada de um trecho de linha, cujo começo é o nascimento, cujo meio é a vida e cujo fim é a morte. É o modelo de sucessão progressiva do passado, presente e futuro. A nossa compreensão usual da morte se constitui dentro desse esquema de sucessão.
Examine-se a si mesmo para se tornar nitidamente consciente de como nosso pensar está preso a esse modo de ser do tempo. E a partir dessa consciência, perguntar: será que a morte que eu vou morrer pode aparecer com a morte, dentro do horizonte de uma tal temporalidade?   
Peço também observar o processo da nossa indagação. A pergunta inicial: a morte, que fenômeno é esse, se transformou numa pergunta fundamental pela temporalidade da morte.
E a pergunta pela temporalidade não diz respeito somente à morte, mas também à vida. Pois, na compreensão usual da morte e vida, operamos dentro do horizonte da mesma temporalidade cuja estrutura se caracteriza como sucessão lineal de passado, presente e futuro.
Portanto, a pergunta se amplia numa outra pergunta: será que o horizonte da temporalidade sucessiva é o horizonte adequado, onde a vida e a morte podem se revelar como elas são na verdade?
Dentro do processo da nossa reflexão nietzschiana, a resposta é negativa. Pois, esse modelo de temporalidade usual já é o produto da vida. A morte é justamente a impossibilidade dessa vida que serve como fundamento e origem do esquema da temporalidade sucessiva. Como tal a morte não pode ser pensada a partir dessa temporalidade-produto. Como pode algo pensar através da categoria de algo a sua própria impossibilidade, o seu próprio nada?
Nietzsche diz no capítulo sobre a morte livre: “O ensinamento que diz ‘morre a tempo’ ainda nos soa estranho” (cfr. a tradução do livro…).
Na perspectiva do que dissemos acima: ‘morra a tempo’ nos diz: a morte tem o seu próprio horizonte de temporalidade. Temporalidade que não se estrutura no esquema de tarde (futuro) e cedo (passado), esquema esse familiar ao nosso pensar da metafísica. Por isso o tempo da morte é-nos estranho, ainda estrangeiro.
Essa impotência do pensar diante da morte, nos leva a perguntar: como é possível experimentar a morte? Talvez possamos responder com muita cautela: a morte é experimentada como o que nos sobrevem.
O que quer dizer isso? Por que é necessário a cautela?
A cautela se refere à formulação: a morte é experimentada como o que nos sobrevem. Essa formulação está dentro do esquema: experimento algo chamado morte como objeto.
Essa morte-objeto não é mais originária. É o produto do horizonte da temporalidade-sucessão acima mencionado.
A morte enquanto morte é antes ela mesma um horizonte. Uma abertura, uma disposição ontológica, estrutura fundamental da vida que possibilita as ‘experiências’. Porque a vida já tem no seu seio uma abertura fundamental chamada morte, podemos pensar algo como objeto morte.
Mas esse pensar algo como objeto morte, não é mais a experiência originária da morte. A experiência não é experiência de (sobre). É antes a própria abertura ontológica a partir da qual há experiência de alguma coisa.
Por isso a formulação de cima ‘a morte é experimentada como o que nos sobrevem’ deve ser corrigida. Possamos talvez dizer: a  morte é abertura fundamental da nossa vida, é a essência onipresente na nossa vida, é a própria estrutura da vida.
Mas essa estrutura tem o seu modo próprio de ser. Esse modo de ser pode ser caracterizado por um verbo: ‘sobrevem’.
Portanto: a morte é a estrutura da vida que tem o mode de ser da sobrevivência.
Para compreender o que acabamos de dizer, vamos recorrer a um termo que na filosofia contemporânea substitui o termo vida, a saber: existência que se escreve: ek-sistência.
Ek significa: abertura originária. Sistência significa: permanência, objetivação, corporificação.
A estrutura da vida humana é ek-sistência, isto é, a vida se constitui como o processo no qual se abre um horizonte dentro do qual surge, aparece, toma corpo aquilo que o homem é cada vez na sua concreção.
A dificuldade de compreender essa exposição vem, certamente, do meu modo desajeitado de formular, mas também de um pré-conceito que infecciona a nossa mente. Esse pré-conceito é o nosso bitolamento objetivista. Ou para ser mais exato: bitolamento subjecto-objetivista.
Bitolamento objetivista porque pensamos, a verdade para ser verdade deve ser ob-jectiva. E nem percebemos que o termo objetivo significa pro-jectivo. Ob-jecto é o que é pro-jectado. Projectado a partir donde? A partir de uma abertura, dentro de um horizonte.
Bitolamento subjetivista, porque ao ver que o ob-jecto é pro-jecto de abertura originária, dizemos: Ah! então tudo é subjetivo. E não percebemos que o subjetivo não é oposto ao objetivo. Quem diz objetivo, diz ao mesmo tempo subjetivo e vice-versa, como no caso da correlação: pai-filho, absoluto-relativo, dentro-fora, direita-esquerda etc. Além disso, quando você desconfiar pergunta: ‘não é tudo subjetivo?’ não percebe que você concebe o subjetivo como objeto, isto é: você está imaginando ou o outro ou a si mesmo como se esse sujeito ali, à maneira de coisa que tem seus atos psíquicos, com os quais se relaciona aos objetos, existentes em si. E não percebe que considera tanto o objeto como o sujeito (lá e cá) dentro de um único horizonte coisista: tanto objeto como sujeito são ‘coisas’. Com outras palavras: quando você diz objeto e sujeito, você pode dizer isso, porque você já está dentro de uma abertura, onde algo como o sujeito e algo como objeto se tornam possíveis, podem aparecer. Portento, você já é ek-sistente de um modo todo especial.
O horizonte, a abertura originária, por conseguinte, é uma dimensão anterior ao sujeito e objeto. Por isso devemo-nos acautelar continuamente de não interpretá-la como uma simples vivência subjetiva psicológica. Você pode vivenciar algo subjetivamente porque você está dentro da abertura originária.
Depois dessa reflexão preventiva contra uma falsa objetivação do horizonte, vamos voltar à estrutura da ek-sistência.
Dissemos acima: ek é abertura originária. Sistência é a permanência, a objetivação, a corporificação a partir e dentro dessa abertura.
Como devemos entender isso? Como num processo. Processo, como? Como História. Ou melhor: como estória. A vida é, pois, estorial. O modo de ser da vida humana não é o modo de ser da pedra, da planta, do animal.  Ele é estorial. Como?
Explicar o como do modo de ser estorial é muito difícil. Pois, sempre de novo se infiltra no pensamento de quem fala e de quem ouve conceito e imaginação objetivados.
No entanto, se quisermos compreender ao menos um pouco o modo de ser da filosofia, é necessário tentarmos ver essa estrutura do processo estorial.
Por isso, a seguir, uma tentativa de elucidação. Para isso vamos recorrer a uma figura desenhada por Paul Klee (cfr. uma das enciclopédias, sob o verbete Klee).
Paul Klee

Descrição:
A linha começa num ponto. É o zero do movimento, parado, ponto morto, como que a concentração de todas as energias da possibilidade desse ponto. Dou os primeiros passos, tateantes, indefinidos, inseguros. Começo a correr, aos poucos, a acelerar. Desse aceleramento, no ponto cento, no tempo certo, que nasce da acumulação do aceleramento, a partir dessa concentração energética dou uma guinada e levanto o vôo, não num vertical explosivo inflacionário, mas sim numa curva que economiza e ao mesmo tempo acumulada e retoma a energia já armazenada para um salto vigoroso e vertical para cima. Monto por assim dizer no vigor desse salto, deixo que o impulso me carregue até o ponto certo onde se esgota, aproveito então a curva da queda para montar num outro impulso cadente e deixo-me levar para um outro salto de âmbito maior que por sua vez, no tempo certo originante do impulso de curvatura, traça mais duas curvas que me impulsionam para um novo salto ascencional.
Esse salto resultante de todo o complexo dos saltos anteriores, é um pairar elegante que se esvai numa suavidade elegante e vigorosa da linha prolongada com ponta que não é um ponto final, mas sim a síntese de todo o processo.

Interpretação:
Comparando a linha de Klee com o traçado ao lado, vemos claramente a distinção. A linha de Klee tem história. O traçado geométrico, não.
Mas em que consiste a história ou melhor a estória?
Consiste na estrutura processual, em que cada passo nasce do outro numa implicação de progressão que não é simplesmente uma evolução, mas sim a constituição, a criação do destino. Nesse destino cada momento retoma os passos já percorridos para dar-lhes novo sentido dentro da totalidade que brota do acúmulo da energia da situação presente, decidindo com isso o rumo do passo seguinte.
O tempo nessa estrutura não é uma sucessão de trechos homogêneos cronológicos. Antes, cada passo constitui o Kairós, isto é tempo decisão. Há, portanto, momentos exatos de guinada, momento exato onde o impulso perde o seu fôlego, para deixar-se cair, há momento exato, onde a queda se transforma em novos impulsos, há também o momento exato, onde todo o elã  se esvai num esgotamento necessário. O momento exato é o tempo. O tempo da estória é o tempo da decisão. O tempo oportuno. A hora (cfr. a Bíblia).
Esse tempo oportuno não é previsível, não é calculável, ele nasce no seio de um processo que concresce (concreto!) de dentro como o acúmulo de vida que num certo ponto crítico salta para uma nova decisão, dando como o salto, uma nova orientação à totalidade do processo. O ponto oportuno deve ser por isso nem mais nem menos. Se for demais, é demasiadamente tarde, se for cedo, não é a tempo. (cfr. Nietzsche, Da Morte Livre).
O ponto final não é um ponto de chegada como no caso do traçado geométrico, mas como que a última ressonância da totalidade. Nesse último acordo - harmonia, está todo o presente na retomada que é mais um remate da obra de arte do que um ponto final. Quanto mais se avança, mais se torna presente o passado como a presença da totalidade. De tal sorte que o fim é lá onde se revela a vida como estória na sua totalidade.
Morte, nessa estrutura portanto, não é o fim, mas sim a revelação, o desvelamento da totalidade na sua estoricidade. Morte e Vida coincidem nessa estrutura.
Experimente agora imergir no movimento desse processo e andar (andar junto com o processo se exprime em alemão pelo termo: erfahren, er-fahren: andar junto. Ora erfahren significa: experimentar), o caminho dessa linha, concrescendo com a sua estória. Isso é experiência  originária. Você verá que os momentos da vida não são criados por mim, não estão sob o seu poder de dominação. Eles lhe sobre-vêm. Isto é, a sua atitude é de auscultar no caminhar. Qual o atleta que ao correr, vai auscultando a voz da energia que cresce em si para o salto decisivo. A sua atitude é de abandono, de obediência. A sua vida portanto é uma abertura (ex) que deixa-ser a vida, acolhe a sobreveniência do tempo oportuno, e nesse abandonar-se, se constitui (sistência) como a vida humana, isto é, como ex-sistência estorial. Isto é ser homem. Ek-sistência é ser homem, e ser homem é a abertura para a sobreveniência estorial.
Este abandonar-se à constituição estorial se chama liberdade.
Morte livre por conseguinte é um termo que resume essa estrutura do processo estorial.
A partir dessa estrutura, a partir desse modo de ser, desse horizonte você poderá compreender o capítulo da morte livre em Nietzsche, no qual ele descreve tipos deficientes do ser – humano, em que não se deu, não aconteceu essa sobreveniência, por terem sido intempestivos: cedo ou tarde demais, não no ponto oportuno da sazonamento.

Para a seguinte reunião:
Refletir em grupo: por que Nietzsche acusa a Jesus Cristo (o hebreu) de ter morrido cedo demais?
NB: a afirmação da terra é um tempo oportuno. Ao passo que a fuga romântica para o céu, é cedo demais!


14. Reunião:  Sobre a Essência da Verdade

Cap. 6: a não – verdade enquanto dissimulação.
Vamos fazer algumas considerações sobre o capítulo.
O capítulo tem duas partes: a primeira parte vai da 1a alínea da p. 39 até à 1a primeira alínea da p. 40 exclusivo: “o velamento do ente”.
A segunda parte vai da 1a alínea da p. 40 até o fim do capítulo: “A Liberdade – da verdade”.
O capítulo todo fala da não – verdade, do não – desvelamento, isto é, do velamento.
Na compreensão do velamento, porém, vibram dois momentos. O termo velamento é pois ambíguo.
O primeiro momento, tratado na Segunda parte diz: o velamento é o mistério do Ser.
O segundo momento, tratado na segunda parte diz: o velamento é o esquecimento do mistério do Ser.
O título do capítulo “A não – verdade enquanto dissimução”, traduz o termo alemão Verbergung com dissimulação. Pessoalmente haveria de traduzir o Verbergung com o termo: encobrimento. Pois, encobrir pode significar: cobrir para defender, guardar, proteger, por exemplo, as pálpebras fechadas encobrem as pupilas dos olhos: contém o mistério do olhar. Encobrir pode também significar: tapar, fechar, entulhar, fazer desaparecer, tolher.
Encobrimento como continência do mistério é o sentido do velamento na primeira parte do capítulo.
Encobrimento como tolhimento do mistério é o sentido do velamento na segunda parte do capítulo.
O capítulo é difícil de entender, pois a exposição para nós que não vemos, parece muito abstrata. Para ter alguns fios de condução, precisamos de fenômenos. Com a divida cautela em não se fixar demais nos fenômenos, eis aqui alguns fenômenos que ilustram o velamento como continência e o velamento como tolhimento.
O velamento como continência do mistério
Existe um filme japonês que se tornou célebre no Ocidente e ganhou a palma de ouro em Cannes; chama-se: A porta do inferno. O filme, baseado numa estória budista da Idade Média japonesa, narra a tragédia de Kessa, assassinada pelo General Morito, em defesa da fidelidade conjugal.
Kessa, esposa do nobre Wataru Saemon-no-jo, serve como dama de corte no palácio do senhor feudal, de quem o seu marido é general. Um dia o palácio é cercado pelos inimigos. Torna-se necessário salvar a princesa real, a quem os inimigos queriam capturar como refém. Diante da supremacia da força inimiga, não há possibilidade de romper o cerco, a não ser por uma estratégia. A estratégia consiste em atrair a atenção do inimigo para a saída oriental do palácio, aproveitar a confusão e fazer escapar a princesa real pela saída ocidental. Para isso Kessa, livremente se oferece para entrar na carruagem real, simular a fuga da princesa pelo portão oriental. Morito, jovem oficial, com um pelotão de guerreiros decididos a morrer, acompanha a carruagem falsa e atrai a atenção do inimigo. Mas numa luta feroz, Morito consegue romper o cerco e salvar a Kessa, que está desmaiada. Ao ver a dama da corte, inconsciente, Morito fica apaixonado por ela.
Voltam os dias de paz. Morito tenta aproximar-se de Kessa, esta o evita. Morito descobre que Kessa é a esposa do nobre Saemon-no-jo. Mas, a sua paixão por Kessa aumenta. Jura possuí-la a todo custo. Usando de um ardil, Morito consegue atrair a Kessa para a cada da tia dela, onde ameaça matar a ela e a seu marido, se não aceitar o seu amor.
Levada pelo cuidado pela vida do esposo, mas na decisão de jamais quebrar a fidelidade conjugal, Kessa decide a morrer no lugar do seu marido. Ela diz sim a proposta de Morito, mas com a condição de ele na mesma noite matar o seu marido. Ela promete deixar a porta do quarto de Saemon-no-jo aberta, para que morito o possa matar. (Na Idade Média, os casais dormiam em quartos separados). Volta à casa, finge alegria, convida o marido a tomar vinho, o embriaga, fá-lo dormir no quarto dela e a própria Kessa vai dormir no leito do marido. À meia-noite Morito assassina a Kessa, pensando ser Saemon-no-jo.
A cena do encontro, onde Kessa se decide a morrer é muito sóbria.
Não há violências externas. Há, porém, na expressão do rosto uma intensa luta de sentimentos.
A câmara mostra o rosto de Kessa. Delicado, profundamente feminino, aparentemente tranqüilo. Mas nessa serenidade de fraqueza impotente, perpassa um tremor quase imperceptível, qual um hálito de vento na superfície tranqüila do lago, e numa fracção de segundos se revela a agitação das profundezas.
Há um silêncio prolongado. Na tensão desse silêncio, Kessa pronuncia a palavra sim. Ao dizer sim, fecha os olhos, lentamente. Todo o rosto se vela numa tranqüilidade serena. Poder-se-ia dizer: o sim são as pálpebras fechadas numa concentração interior. As pálpebras cobre o abismo da dor que se rasgou por instantes, quando o tremor sacudiu a superfície do seu rosto. As pálpebras trêmulas numa vibração imperceptível, serenas, com-têm, cobrem, guardam todo o pudor da dignidade feminina ultrajada, dor, ternura do amor ao esposo, cuidado pela sua vida, medo, saudade, tristeza, ódio, a decisão inabalável de manter a sua fidelidade, o abandono da fraqueza entregue à ameaça da morte.
Esse encobrimento que ao guardar, ao fechar, revela o âmago do Ser, esse desvelamento no velamento é o que Heidegger chama de não – verdade, enquanto encobrimento. É o Mistério do Ser, a Presença da Totalidade do ente na sua interioridade, o reino ‘não-experimentado e inexplorado da Verdade do Ser’(p. 40).
Podemos, portanto, dizer que a não – verdade, isto é, o não – desvelamento, isto é, o velamento, o encobrimento pertence essencialmente ao desvelamento como o avesso do verso de uma folha. É por assim dizer anterior ao desvelamento, pois o mistério consiste na interioridade, na profundeza do Ser, donde a verdade eclode no desvelamento.
Um outro fenômeno do velamento como guarda e proteção da totalidade do Ser na sua interioridade é o botão de rosa. As pétalas, quais, pálpebras, encobrem a rosa que vai eclodir. Mas justamente nesse encobrimento, revela a Vida, as promessas de vida, todo o mundo de rosa na sua nascividade e frescor. O botão é nesse sentido mais rosa do que a rosa aberta. A rosa aberta está por assim dizer mais presente na proteção do encobrimento, nesse mistério do botão que na própria rosa aberta.
O velamento tem o modo de ser da revelação do pudor. Pudor originariamente é cobrir-se, não no sentido de esconder algo vergonhoso. Essa interpretação já é derivada, coisificada. O pudor é algo como a proteção que a integridade total da vida mantém para não volatilizar a unidade e a auto-identidade no seu vigor, na sua plenitude. A vida na sua interioridade só pode se desvelar no encobrimento.  É essa plenitude no vigor de sua totalidade que Heidegger chama de velamento como o mistério do Ser. Mistério em alemão se chama: Geheimnis. Geheimnis vem do termo Heim. Heim é o lar. É o em casa, o torrão natal de familiaridade. Heim é lá onde o humano vive como humano sem destorcer da sua nascividade. Desvelamento é o humano, e o humano é a casa do Ser.

O velamento como o esquecimento do mistério do Ser

Esse tipo de encobrimento em vez de ser revelador no seu encobrimento do mistério, tolhe, entulha justamente o caráter do mistério. Encobrir, portanto, não tem tanto o sentido de esconder um Ente. Antes pelo contrário, ele põe à luz nítida de um determinado enfoque o Ente. Mas, com isso, faz recuar o mistério do Ente na sua totalidade; para esquecer que o Ente só se revela no âmbito do desvelamento cuja origem é o encobrimento como mistério. No caso, por exemplo, do botão de rosa, o velamento como tolimento faz aparecer o botão dentro do enfoque bem claro e delimitado do objeto da botânica, objeto da venda etc. Com isso, no entanto, não deixa o botão ser no seu mistério como a interioridade do Ser. Ao mesmo tempo não consegue explicar, donde nasce o próprio enfoque botânico.
Ilumina o ente, este o aquele, perde-se nele, sem poder revelar a própria fonte da luz.
Quando esta tendência e o poder de saber nos toma conta e eu não mais percebo nem sequer a presença da ausência do mistério, é então que o próprio poder  do saber se torna ele mesmo radical impotência perante o mistério. É tão radical a sua própria impotência que nem sequer sabe da sua impotência.
É, portanto, na ausência da ausência que mistério se torna presente como aquilo que é radicalmente outro ao poder do pensar, com aquilo que não está à mercê da vontade do poder.
É bem possível que esta auto-consciência do saber como o poder, quando se torna tão radical que nem sequer consegue perceber a total impotência, tenha-se tornado a partir da sua interioridade um campo aberto onde a ausência do mistério se torna dolorosamente presente, como a impotência do poder do pensamento.


15. Reunião : Sobre a Essência da  Verdade

Capítulo 7: A não verdade enquanto errância

O capítulo 6 falou do velamento como contingência do mistério do Ser. No fim do capítulo começou-se a falar do modo, digamos, distorcido do velamento que nos levava ao tolhimento, ao esquecimento do mistério do ser.
O capítulo 7 fala mais especificamente desse esquecimento e o denomina de errância.
O termo errância, errar, devemos talvez ouvi-lo mais na acepção de vaguear errante fora do rumo originário. O termo alemão para errância é Irre. A palavra indica também a pessoa louca, tresloucada. ‘ Louco’ aqui entendido no sentido da expressão de G. K. Chesterton que fala de uma ‘verdade enlouquecida’. Você toma uma verdade, isola-a das outras, a absolutiza. A verdade por assim dizer se ‘desembesta’ e acaba se tornando falsa. Uma tal verdade enlouquecida é, por exemplo, a justiça que só quer ser justa a todo custo e nada mais: fiat iustitia et pereat mundus!
A liberdade como abandono ao desvelamento do mistério do ser é ek-sistência. Essa abertura nasciva não é uma abertura desbaratada, escancarada, mas algo como velamento sereno da superfície no lago profundo. Esse velamento tênue e fugaz no seu equilíbrio é a presença do ente na sua totalidade. Ek-sistir indica, portanto, a pulsação desta vida, a respiração tranqüila e plena desse equilíbrio. Como tal o desvelamento do mistério, é somente possível no movimento, no processo. Ek-sistir é sistir, isto é, ser como e em essa respiração.
A presença do velamento desvelador como o mistério do ser, no entanto, não está sob o domínio do nosso poder. Não podermos causar nem prever ou calcular o seu aparecimento. Pois, é justamente o mistério do ser que nos abre a possibilidade e a abertura da liberdade.
Não possuindo poder nem supervisão sobre a Presença do ente em sua totalidade, ek-sistindo no âmbito tênue do velamento, a nossa tendência é de perpetuar, assegurar, nos apoderar deste instante de nascividade. Fixamo-nos no ente, olvidando o seu nascimento como ente na sua totalidade. Esquecemos que é só à mercê da nascividade que nos é dado o ente. Na abertura da ek-sistência tomamos posição de asseguramento, in-sistindo no ente. A abertura que estava, por assim dizer, voltada para a gratuidade do mistério do ser, dá-lhe as costas e volta-se para o ente, não mais no abandono do deixar-se, mas sim, na preocupação de tomar medidas de asseguramento do ente, de ter a certeza do ente. O ente como fator de nossa segurança. O ente como preocupação se torna medida de nossa existência. Isto é in-sistência.
Esse dar às costas à nascividade, dirigir-se ao ente na busca da segurança, concatenar um ente com um outro na rede desse asseguramento e assim ir de um ente para o outro, criando todo um mundo de ocupações, tudo isso acontece ao mesmo tempo. É esse movimento que cria a História da Humanidade como existência ocidental. Essa odisséia do pensar ocidental se chama: errância.
O movimento de afastamento da nascividade para a in-sistência nos entes em particular como articulações do auto-asseguramento é irreversível. A errância pertence à essência do desvelamento. Nós, a Humanidade historial, estamos metidos nesse movimento. A errância como ex-sistência insistente é um destino, o nosso destino, isto é, a nossa História.
É como se fôssemos ondas circulares da superfície de um lago, que se afastam cada vez mais do centro onde se desencadeou o primeiro movimento ondulatório com a queda de uma pedra. Portanto, a raiz, o fundamento de todos os erros, está nessa estrutura historial da errância. Como tal, a errância pertence à essência da Verdade; como a expansão da onda pertence necessariamente ao impulso originário do centro ondulatório. E o esquecimento, o afastamento do mistério do ser pertence necessariamente à errância, como o afastamento das ondas do seu centro pertencem ao movimento da expansão.
O movimento da errância é, portanto, estrutura essencialmente à abertura do ser-aí, da ek-sistência. Ele domina, portanto, o homem (p. 44).
Por conseguinte, a partir da reflexão desse capítulo é necessário revisarmos tudo o que viemos dizendo até aqui sobre a abertura originária de liberdade.
O desvelamento na sua originária nascividade e limpidez não é mais possível à nossa época humanidade. Não é possível sairmos da nossa situação, do processo expansivo da errância, voltarmos ao arcaico-pretérito da origem no recolhimento.
Não podemos? Heidegger diz algo diferente. E di-lo de uma forma que nos leva a precisar a nossa reflexão: ‘mas pelo desgarramento a errância contribui também para fazer nascer essa possibilidade que o homem pode tirar da ek-sistência e que consiste em não se dixar levar pelo desgarramento. O homem não sucumbe no desgarramento se é capaz de provar a errância enquanto tal a não desconhecer o mistério do ser-aí’ (p.44). nós estamos, pois, metidos até os ossos nesse processo de errância. Não há para nós nenhuma possibilidade de sair dela. Sair seria uma tentativa tão absurda como saltar sobre a própria sombra, como a tentativa do barão Müchhausen de sair de um pantanal que o engolia, puxando-se pelos próprios cabelos.
Não se trata de sair da situação; antes, pelo contrário, trata-se de imergir nela. Mas ao imergir surge a chance de o Mistério do ser se desvelar como a ausência, de um movimento da errância, que nos carrega, nos faz ver no seu movimento, que ele é o movimento de desgarramento. A nossa situação é semelhante à de um astronauta que inteiramente fechado no seio escuro de um foguete, sem janelas, foi lançado no espaço. Não possuímos nenhum ponto de referência a não ser a nossa imanência. Pois, toda a comparação estabelecida com o passado, é uma comparação feita a partir da nossa imanência. Mas o lançamento originário imprimiu ao foguete uma aceleração (errância). Que tenha havido um lançamento não podemos saber de fora. Mas resta uma possibilidade ao nosso astronauta. Ao auscultar de dentro, imerso no movimento ele pode perceber aos poucos o aceleramento do foguete e descobrir que está se perdendo cada vez mais no espaço. Essa percepção é “provar (isto é, experimentar) a errância enquanto tal” (p. 44). Nessa experiência se manifesta o mistério do ser-aí, como ambigüidade, como presença do ser na ausência.
Com outras palavras: ao auscultar a aceleração da errância, o homem percebe a ausência do mistério do ser como ameaça de algo que lhe falta. Assim “a ameaça de desgarramento” que é a presença ameaçadora da ausência do mistério do Ser “mantém o homem na indigência do constrangimento” (p. 44).
Com outros termos, o homem começa a perceber a inanidade, a indigência, da sua segurança. Ele que vivia na errância, esquecido do mistério do Ser, portanto, ele que vivia na sua situação como um estado normal, sim, como progresso, desenvolvimento, conquista e vitória começa a perceber que tudo isto está se minando por dentro, em si mesmo, que está ficando vazio de sentido. Nesse vazio, isto é, na experiência da errância como errância, se revela o mistério do ser como ausência.
Assim, o homem começa a oscilar entre a sua total imersão na expansão errante e no vazio da ausência de sentido. Com isso ele não é mais o esquecimento do mistério do ser que nem se quer percebe o esquecimento. Ele se volta ao mistério do ser, não através de uma reviravolta, mas pela radicalização do esquecimento do ser. Avança tanto que no próprio afastamento começa a surgir o vácuo do afastamento como ausência, como indigência. O ser-aí como errância se transforma em, se torna um voltar-se para a indigência. Esse voltar-se para a indigência é a necessidade como transformação operada a partir do interior do próprio movimento da errância através da autoradicalização (p.44).  
Do capítulo 6 sabemos que ‘O desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo a dissimulação do ente em sua totalidade’ (p.44).
No entanto, essa afirmação deve ser entendida exatamente. O desvelamento do ente enquanto tal se dá originariamente como o velamento do mistério do Ser. Esse velamento não é o esquecimento do mistério do ser. Antes, pelo contrário, é a Presença do Ser. Mas essa presença que é o equilíbrio tênue só se torna presente com a ‘dissimulação do ente em sua totalidade’ (p. 44). Nesse sentido o desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo, isto é, simultaneamente, o esquecimento do ente em sua totalidade. Nessa simultaneidade, nessa ambigüidade está o ponto onde pode acontecer o declínio do desvelamento para a errância. O velamento como guarda do mistério se hipostatiza como este ou aquele objeto em particular, serve então como articulações (e) da abertura do auto-asseguramento da ek-sistência insistente, isto é, da errância.
Portanto: a dissimulação do que está velado (isto é, a entificação, a objetivaçào) e a errância (isto é, o desencadeamento do inter-esse assegurante) vão juntas e pertencem à essência originária da verdade (isto é, ao modo da presença atuante da verdade como ela se apresenta na situação epocal da atual humanidade). 
A Liberdade como abertura que deixa ser o ente na sua totalidade deve ser compreendida a partir da errância, do nosso destino historial, a partir da ek-sistência in-sistente do nosso ser-aí (p.44, última alínea).
No início do nosso seminário dizíamos: usualmente se define a essência da verdade como adequação da enunciação com o objeto, isto é, como conformidade da apresentação. Essa concepção da verdade, ou melhor, da presença atuante (essência no sentido verbal) da verdade.
É a concepção do ‘senso comum’ e vê a essência da verdade dentro dos moldes da errância. A coisa, o objeto é a medida da verdade. Mas, ao dizer isso, já se concebeu o ente como objeto. O ente não é mais visto como a presença encoberta do mistério do Ser, mas sim, como aquilo que dá e determina a certeza e o asseguramento da minha existência que consiste em saber. Eu não deixo mais o ente ser, mas o uso como medida de minha segurança. Isto já pressupõe um horizonte de pré-compreensão, a saber: ser homem não é estar ao mistério do Ser, mas sim ter conhecimentos certos. E ter conhecimentos certos é assegurar a minha existência, perpetuá-la, criando um mundo de entes, colocando-os sob normas e leis que possibilitam a previsão, provisão, o cálculo, o domínio, o progresso. 
Dizer: ‘o ente é a medida do meu conhecimento’ soa bem. Parece estar se dizendo: deixemos o ente ser ente. não se percebe no entanto que ao dizermos isso, tacitamente já acrescentamos: Objetivamente. E não damos conta de que atrás desse ‘objetivamente’ se esconde o inter-esse virulento de auto-asseguramento: somente o que é previsível, calculável, certo, assegurativo do meu saber tem o direito de ser ente. A ek-sistência obj-ectiva que perfaz a nossa estrutura historial está inteiramente ordenada, dominada pelo processo da errância como a vontade de dominação, de apropriação do ente para a nossa própria segurança, se embala na aceleração da errância. A nossa ek-sistência, o nosso ser-aí é in-sistência na objetivação. Libertar o ente, deixar-ser o ente, se entende como arrancá-lo do mistério para a dominação, para apropriação. Portanto, a adaequatio rei et intellectus se baseia nessa abertura da ek-sistência in-sistente, na abertura da errância!
Revisando o que dissemos e entendemos antes dessa análise do capítulo 7, podemos agora dizer: não é assim que por debaixo da fossilização objetivista do adaequatio rei et intellectus esteja imediatamente a abertura originária autêntica do deixar-ser-o ente como o desvelamento da liberdade?
Pois, o capítulo 7 nos mostra que a Liberdade na nossa situação epocal ocidental só atua como a presença ausente, como a errância que se chama objetivação ou vontade do poder.
Portanto, devemos procurar a ‘possibilidade’ da abertura originária no próprio processo historial da errância. Haverá essa ‘possibilidade’?
Heidegger responde: essa possibilidade é a própria opressão (constrangimento) da ameaça da indigência, que irrompe no próprio seio da errância como necessidade inelutável (p..44), como a ausência do mistério do Ser.
Com outras palavras: a liberdade, a abertura originária, o deixar-ser o ente em sua totalidade para nós que estamos perdidamente embalados no elã da errância, é a experiência da própria errância como um mistério (pp.44-45).
A exacerbação da vontade do auto-asseguramento, a aceleração do saber que é a dominação do ente, na proliferação frenética trans-cendente de medidas de segurança, organizações, cálculos e pro-gressos, começa a se reacender, volver-se para dentro de si mesma e experimentar a total gratuidade, a inanidade de sua im-posição. Com outras palavras, se experimenta a própria energética da errância como o mistério da errância que não está mais sob o meu poder. Isto é: o próprio poder no seu poder não se tem a si mesmo mesmo sob a medida do seu poder.
Dito de uma outra forma: o esquecimento do mistério do ser , se intui (intus esse) como mistério do esquecimento do ser.
Somente, quando a estrutura do conhecer assegurativo (adaequatio rei et intellectus) racha por assim dizer de dentro para fora e liberta a sensibilidade, isto é, a capacidade de uma abertura para o mistério, se torna possível “colocar mais origináriamente a questão da essência da verdade” (p. 45). Somente então “se revela afinal o fundamento da implicação da essência da verdade com a verdade da essência”.
Com outros termos, a essência, isto é, a presença atuante do desvelamento do ser está ligada intimamente com o modo de desvelamento dessa própria atuação que no nosso caso é ausência, silêncio, esquecimento, velamento, modo de ser esse que o saber da dominação desconhece.
Essa rachadura que liberta o campo aberto onde se coloca a questão da essência da verdade, onde se percebe a diferença onto-lógica entre o mistério do ser e seu esquecimento, entre ser e ente, é a ferida originária que nasce juntamente com o desvelamento do ser. Dessa ferida (Ur-sprung, salto originário) e rompe o abismo infinitesimal da Wende (versão, guinada), como o movimento da errância, como o desgarramento que embala a História da Humanidade na busca trans-cedental dissimulada de sua própria origem como Unidade da total Identidade. Esse movimento da trans-cendência que hoje se camufla na expansão imperialista e planetária chamada civilização científico-tecnológica é a Meta-física, lugar onde habita a questão do ser do ente (p. 45).
A Liberdade como ek-sistência in-sistente da errância na presença do desvelamento na ausência dissimulada é a filosofia. A essência da verdade é a essência da filosofia.



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