"Já só um Deus pode ainda nos salvar"
Capa da edição da revista Der Spiegel que traz a publicação da entrevista de Heidegger. |
A entrevista, realizada em 23 de Setembro de 1966, foi conduzida pelo diretor e editor de Der Spiegel, Rudolf Augstein, em presença de George Wolff e H. W. Petzet, mediante o acordo de apenas ser publicada após a morte do filósofo. Desse modo, a entrevista foi publicada no nº23 da revista, em 1976.
DER SPIEGEL: Senhor Professor Heidegger, temos constatado
repetidas vezes que a sua obra filosófica é, de certa maneira, ensombrada por
acontecimentos pouco duradouros mas nunca esclarecidos da sua vida, seja por
orgulho da sua parte, seja porque o senhor não considerou adequado
pronunciar-se acerca deles.
M. HEIDEGGER: Refere-se a 1933?
DER SPIEGEL: Sim,
ao que antecede esse ano e ao que sucede depois. Gostaríamos de situar esses
acontecimentos numa conjuntura mais ampla, como ponto de partida para a
formulação de certas perguntas que nos parecem importantes, no estilo de: que
possibilidade há de agir sobre a realidade – inclusive, sobre a realidade
política – a partir da filosofia? [Ainda existe esta possibilidade? E, se a há,
como se consegue?]
M.H.: São questões bem importantes e não sei se serei capaz de
responder. Mas devo, em primeiro lugar, dizer que antes de ser reitor eu não
tinha participado de nenhuma maneira em actividades políticas. Durante o
semestre de inverno de 1932/1933 tinha estado de licença e passado a maior
parte do tempo no meu refúgio.
DER SPIEGEL: De que maneira veio a tornar-se
reitor da Universidade de Friburgo?
M.H.: Em Dezembro de 1932, fora eleito
reitor o meu vizinho von Möllendorf, catedrático de Anatomia. A tomada de posse
do novo reitor realizou-se a 15 de Abril nesta Universidade. Durante o semestre
de Inverno de 1932/1933, tinhamos amiúde conversado acerca da situação não só
política, mas, sobretudo, da Universidade e da falta de perspectivas dos
estudantes. A minha apreciação era a seguinte: tanto quanto posso avaliar, a
única possibilidade que nos resta é a de procurar tirar proveito do processo
que se avizinha com as forças construtivas que ainda estão realmente vivas.
DER
SPIEGEL: Via, assim, uma conexão entre a situação da universidade alemã e a
situação política em geral da Alemanha?
M.H.: Como é natural, estava atento aos
acontecimentos políticos ocorridos entre Janeiro e Março de 1933 e falara
ocasionalmente disso com colegas mais jovens. Mas o meu trabalho tinha-me
permitido realizar uma interpretação mais ampla e mais rica do pensamento
pré-socrático. Voltei a Friburgo a princípios do semestre de Verão. Entretanto,
a 16 de Abril, o Professor von Möllendorf tinha tomado posse do seu cargo. Duas
escassas semanas depois, foi destituído pelo então Ministro da Cultura de Baden
[Wacker]. O pretexto – que se supõe ansiado – para esta decisão consistiu no
facto de o reitor ter proibido que se afixasse na Universidade o chamado
“cartaz dos judeus”.
DER SPIEGEL: O Senhor von Möllendorf era
social-democrata. Que fez ele depois de ser destituído?
M.H.: No próprio dia em
que foi deposto, veio ter comigo e disseme: “Agora o Heidegger tem que aceitar
o reitorado.” Eu respondi, considerando que não tinha nenhuma experiência no
campo administrativo. O então vice-reitor Sauer (de Teologia) tambem me forçou
a que me candidatasse às novas eleições para reitor, pois corria-se o risco, se
assim não fosse, de que fosse nomeado reitor um funcionário. Colegas mais
jovens, com quem, desde há vários anos, vinha comentando problemas da estrutura
universitária, também me assediaram para que aceitasse o reitorado. Durante
muito tempo, hesitei. Finalmente, dei a conhecer que só no interesse da
Universidade estava disposto a aceitar o cargo, se pudesse contar com certeza
com o assentimento unânime do Plenário. Não deixei, contudo, de ter dúvidas
quanto à minha aptidão para ser reitor, pelo que, na manhã do próprio dia
marcado para as eleições, me apresentei na Reitoria e participei ao colega
destituído von Mollendorf, ali presente, e ao Professor Sauer que não podia
aceitar o cargo. Ambos me responderam que a eleição estava preparada de tal
maneira que eu agora já não podia retirar a candidatura.
DER SPIEGEL: Foi por
isso que assentiu definitivamente? Como se desenvolveu a sua relação com os
nacional-socialistas?
M.H.: Dois dias depois da minha tomada de posse, apareceu
na Reitoria o dirigente dos estudantes (Studentenführer) com dois
acompanhantes, exigindo de novo a colocação do “cartaz dos judeus”. Recusei. Os
três estudantes afastaram-se com a advertência de que avisariam a Direcção de
Estudantes do Reich do indeferimento. Alguns dias
depois recebi uma chamada telefónica dos Serviços Universitários das SA,
pertencentes à Direção Suprema das SA, da parte do Dr. Baumann, chefe de
grupo das SA. Exigia a colocação do cartaz, tal como se fizera já noutras
universidades. Em caso de recusa, deveria contar com a demissão, senão mesmo
com o encerramento da Universidade. Procurei ganhar o apoio do Ministro da Cultura
de Baden para o meu indeferimento. Ele explicou-me que não podia fazer nada
contra as SA. Mesmo assim, não levantei a proibição.
DER SPIEGEL: Até hoje não
se sabia que as coisas se tivessem passado dessa maneira.
M.H.: O motivo
[fundamental] que me decidiu a assumir o reitorado está já presente na minha
lição inaugural, dada em Friburgo em 1929, “O que é a Metafísica?”: “Os âmbitos
das ciências estão muito afastados uns dos outros. O modo de tratar os seus
objetos é profundamente distinto entre si. Esta absurda variedade de
disciplinas só se encontra hoje reunida pela organização técnica das
universidades e faculdades e pelo fim prático que dá sentido às especialidades.
Em contrapartida, o enraizamento das ciências no solo da sua essência
desapareceu”. Aquilo que eu procurei conseguir durante o meu período de
exercício do cargo, no que diz respeito a esta situação da Universidade – que,
entretanto, veio a extremar-se nos nossos dias – está exposto no meu discurso
reitoral.
DER SPIEGEL: Tentamos averiguar se e como essa declaração de 1929 é
congruente com o que diz no discurso inaugural como reitor, em 1933, de cujo
contexto extraímos esta frase: “A tão cantada ‘liberdade acadêmica’ é repudiada
pela universidade alemã, pois esta liberdade não era real, mas apenas
negativa”. Cremos que esta afirmação expressa, pelo menos em parte, uma
concepção da qual ainda hoje se não afastou.
M.H.: Sim, ainda defendo o mesmo.
Na verdade, esta “liberdade acadêmica” era demasiado frequentemente negativa: liberdade
face ao esforço por aceitar aquilo que o estudo científico exige de reflexão e
consciência. No entanto, a afirmação escolhida não deveria ser lida
isoladamente e sim no seu contexto, pois então ver-se-ia claramente o que eu
pretendia dizer com “liberdade negativa”.
DER SPIEGEL: Bem, isso compreende-se.
Cremos, todavia, encontrar um tom novo no seu discurso como reitor, quando,
quatro meses depois da nomeação de Hitler como chanceler do Reich, fala da
“grandeza e do esplendor deste movimento”.
M.H.: Sim, também estava convencido
disso.
DER SPIEGEL: Poderia estender-se um pouco mais neste ponto?
M.H.:
Naturalmente. Eu então não via nenhuma outra alternativa. Entre a confusão
geral de opiniões e das tendências políticas de 22 partidos, era importante encontrar
uma tomada de posição nacional e, sobretudo, social – algo no sentido de
Friedrich Naumann (1) . Só a título de exemplo, poderia citar um
artigo de Eduard Spranger, que vai muito mais longe que o meu Discurso de
Reitor.
DER SPIEGEL: Quando começou a ter em conta as relações políticas? Os
22 partidos há muito que existiam. E desde 1930 que também havia milhões de
desempregados...
M.H.: Nessa altura, ainda me encontrava ocupado com as
questões que aparecem desenvolvidas em Ser e Tempo (1927) e nos escritos e
conferências dos anos seguintes, que também têm que ver, mediatamente, com os
problemas nacionais e sociais. Como professor universitário tinha imediatamente
presente a questão do sentido das ciências e, por conseguinte, a definição da
missão da universidade. Esta preocupação aparece explícita no título do meu
Discurso reitoral, “A auto-afirmação da Universidade alemã”. Nenhum outro
discurso reitoral daquela época ousou denominar-se assim. Contudo, terá havido
entre aqueles que polemizaram contra este discurso alguém que o tenha lido em
profundidade, que o tenha meditado e interpretado a partir da situação daqueles
tempos?
DER SPIEGEL: Não resultou algo inadequado falar da “autoafirmação da
“universidade” naquele momento turbulento?
M.H..: Porquê? “A auto-afirmação da
Universidade” opõe-se à chamada “ciência política”, que já então era defendida
pelo partido e pela associação de estudantes nacional-socialista. Essa
designação tinha, nessa altura, um sentido completamente diferente do atual.
Não significava, como agora, “politologia”, mas sim que o saber
enquanto tal, o seu sentido e valor, se
aprecia em função da sua utilidade fática para o povo. No meu discurso
reitoral expressa-se a posição propositadamente antagônica desta politização do
saber.
DER SPIEGEL: Não sei se o compreendemos bem. Quer dizer que, ao mesmo
tempo que incluía a universidade naquilo que sentia como um movimento, pretendia,
em contrapartida, reafirmar a universidade contra aquelas correntes que, de
outro modo, poderiam talvez chegar a tornar-se prepotentes, impedindo-a de
manter a sua especificidade?
M.H.: Exatamente. Mas a auto-afirmação devia, ao
mesmo tempo, atribuir-se a missão [positiva] de devolver à universidade um
sentido renovado, contrário à mera organização técnica desta, com base na
consciência da tradição do pensamento europeu ocidental.
DER SPIEGEL: Significa
isso que o Senhor Professor pensava poder conseguir um saneamento da
universidade juntamente com os nacional-socialistas?
M.H.: Não é isso. Não era
em conjunto com os nacional-socialistas que a universidade se devia renovar,
mas pela própria reflexão, mediante a qual deveria adquirir uma posição sólida
face ao perigo da politização do saber, no sentido antes mencionado.
DER
SPIEGEL: Foi por isso que no seu discurso reitoral exaltou estes três pilares:
“serviço do trabalho”, “serviço militar” e “serviço do saber”? Pretendia,
assim, elevar o “serviço do saber” ao mesmo nível dos outros, ao contrário dos
nacional-socialistas que o não tinha reconhecido dessa maneira?
M.H.: Não se
trata de “pilares”. Se se lê com cuidado, compreende-se que embora o “serviço do
saber” seja nomeado, efetivamente em 3º lugar, de acordo com o sentido
ocupa o primeiro. O que se dá a pensar é que tanto o trabalho como o serviço
militar se fundam, como todo o fazer (Tun) humano, num saber e são por ele
esclarecidos.
DER SPIEGEL: Ainda em relação a isto, temos que recordar – com o
que pomos fim às desagradáveis citações! – uma afirmação que não podemos
imaginar que o Senhor Professor ainda hoje subscrevesse. Dizia o Senhor
Professor em 1933: “As regras do vosso ser não são doutrinas nem ideias. Só o
próprio Führer constitui hoje e no futuro a realidade alemã e a sua lei.”
M.H.:
Essas frases não se encontram no discurso reitoral, mas apenas no jornal local
dos estudantes de Friburgo, no início do semestre de Inverno de 1933/34. Ao aceitar
o reitorado, tinha plena consciência que não poderia sobreviver sem
compromissos. Hoje não teria escrito as mencionadas frases. Mas já desde 1934
que não voltei a pronunciá-las. [Mas voltaria a repetir hoje, e hoje mais
decididamente que nunca, o discurso sobre “A auto-afirmação da universidade
alemã”, sem dúvida à margem da referência ao nacionalismo. O lugar do povo
ocupa-o hoje a sociedade. Mesmo assim, hoje como outrora, o discurso teria o
destino das palavras lançadas ao vento.]
DER SPIEGEL: Permita-nos que lhe
ponhamos uma questão, de certa maneira intermédia. Até agora ficou claro nesta
entrevista que, em 1933, a sua atitude se movia entre dois polos. Em primeiro
lugar, tinha que dizer muitas coisas ad usum Delphini. Esse era um dos polos. Mas
o outro era bem mais positivo e o Senhor expressa-o da seguinte maneira: sentia
que havia ali algo novo, que havia um movimento. [Foi o que disse.]
M.H.: Assim era, realmente. Não foi só
para aparentar que o disse. Eu, então, via mesmo essa possibilidade (2) .
DER
SPIEGEL: Sabe que é acusado de ter colaborado nessa conjuntura com o partido e
as associações nazis e que tais acusações continuam a considerar-se
publicamente indesmentidas. Atribui-se-lhe, por exemplo, o ter participado em
queimas de livros das juventudes hitlerianas ou das associações estudantis.
M.H.: Essa projetada queima de livros, que deveria ter lugar diante da
universidade, foi por mim proibida.
DER SPIEGEL: Também se Ihe imputou o ter
mandado retirar da Biblioteca ou do Seminário de Filosofia os livros de autores
judeus.
M.H.: Como diretor do Seminário só podia dispor da biblioteca deste.
Não dei seguimento a nenhuma das repetidas ordens de retirar os livros de autores
judeus. Os antigos participantes das aulas do Seminário podem hoje testemunhar
que não só não foram retirados os livros de autores judeus, como, pelo
contrário, estes autores, sobretudo Husserl, continuaram a ser citados e
comentados, tal como antes de 1933.
DER SPIEGEL: A que atribui o surgir de tais
boatos? A má fé?
M.H.: Pelo que conheço das suas
fontes, gostaria de acreditar que assim fosse. Mas os princípios que movem a
calúnia são mais profundos. Provavelmente, o ter aceitado o reitorado não foi
mais que um pretexto, e não a razão determinante. É por isso, provavelmente,
que a polêmica contra mim se reacende sempre que houver um pretexto.
DER
SPIEGEL: Mesmo depois de 1933 continuou a ter estudantes judeus. A sua relação
para com alguns destes estudantes judeus (talvez não com todos eles) parece ter
sido cordial, inclusive depois de 1934.
M.H.: A minha atitude não se modificou
depois de 1933. Uma das minhas alunas mais antigas e de mais talento, Helene
Weiss, que posteriormente emigrou para a Escócia, veio a doutorar-se em
Basileia, quando deixou de ser possível fazê-lo na nossa faculdade, com um
trabalho sobre “Causalidade e acaso na filosofia de Aristóteles”, que foi
publicado em 1942 em Basileia. Ao final do prefácio, a autora diz o seguinte:
“O ensaio de interpretação fenomenológica que apresentamos na 1ª parte deve
muito às interpretações ainda inéditas de M. Heidegger sobre a filosofia
grega.” Aqui tem o exemplar com a dedicatória da própria autora. Visitei muitas
vezes a Dra Weiss em Basileia, antes da sua morte.
DER SPIEGEL: O Senhor
manteve uma longa amizade com Jaspers. A partir de 1933, esta relação começou a
nublar-se. Diz-se que esta alteração se deveu ao facto de a mulher de Jaspers
ser judia. Quer referir-se a isto?
M.H.: [Isso que menciona é mentira.] Eu
era amigo de Karl Jaspers desde 1919. No semestre de Verão de 1933, visitei-os,
a ele e à mulher, com ocasião de uma conferência em Heidelberg. Karl Jaspers
enviou-me todas as suas publicações entre os anos 1934 e 1938, “com
cumprimentos cordiais”. [Aqui tem as obras.]
DER SPIEGEL: [Aqui diz: “Com
cumprimentos cordiais.” Bem, os cumprimentos não seriam cordiais, se antes
tivesse havido uma perturbação. Outra pergunta do mesmo tipo:] O Senhor foi
aluno do seu predecessor judeu na cátedra de Friburgo, Edmund Husserl. Foi ele
quem aconselhou a Faculdade a contratá-lo como seu sucessor na cátedra. O
Senhor não pode deixar de se sentir agradecido em relação a ele...
M.H.: Conhece,
sem dúvida, a dedicatória de Ser e Tempo... (3) Em 1929, redigi o volume comemorativo do seu 70º
aniversário e, na
festa que se celebrou em sua casa, pronunciei o discurso que depois foi impresso
em Maio do mesmo ano nas comunicações acadêmicas.
DER SPIEGEL: Naturalmente.
Mas, mais tarde, a relação deteriorou-se. Quer contar-nos porque se desfez essa
relação?
M.H.: As diferenças do ponto de vista teórico agudizaram-se. A
princípios dos anos trinta, Husserl teve um ajuste de contas público com Max
Scheler e comigo, cuja clareza não deixava dúvidas. Nunca cheguei a saber o que
levou Husserl a desautorizar assim, publicamente, o meu pensamento.
DER SPIEGEL: Quando foi isso?
M.H.: Husserl [Husserl falou na Universidade de Berlim ante uma assistência de 1600
pessoas. Erich Mühsam fez a reportagem do
acontecimento num dos jornais mais importantes de Berlim. (4)
DER SPIEGEL: A
polêmica propriamente dita não nos interessa agora. O que interessa é que essa
polêmica não teve nada que ver com o ano 1933.
M.H.: Absolutamente nada.
DER
SPIEGEL: Imputou-se-lhe o fato de ter retirado da 5ª edição de Ser e Tempo a
primitiva dedicatória a Husserl.
M.H.: É verdade. Eu aclarei esse assunto no
meu livro A Caminho da Linguagem. Aí digo o seguinte: “Em ordem a desmentir
certas informações incorretas e amplamente difundidas, faço notar
expressamente que a dedicatória de Ser e Tempo – recordada na pag. 92 do
diálogo – também figurava na 4ª edição da obra, em 1935. Quando, em 1941, o editor
viu dificultada a 5ª edição, tendo chegado a temer que o livro fosse proibido,
chegou-se finalmente a um acordo, a conselho e por desejo de Niemeyer, de
suprimir a dedicatória nesta edição, embora com a condição expressa pela minha
parte que se mantivesse a nota da página 38, na qual se justifica aquela
dedicatória e cujo conteúdo e o seguinte: “Se a presente investigação avança alguns
passos no sentido da exploração das coisas mesmas, o autor agradece-o, em
primeiro lugar, a Edmundo Husserl que, com a sua penetrante orientação pessoal
e a maior das confianças, familiarizou o autor, durante os seus anos de
formação em Friburgo, com investigações suas, inéditas, em diferentes campos da
análise fenomenológica.”
DER SPIEGEL: É inútil, então, perguntar-lhe se é
verdade que o Senhor, na sua qualidade de Reitor da Universidade de Friburgo,
proibiu ao Professor emérito Husserl a entrada ou a utilização da biblioteca da
Universidade ou da do Seminário de Filosofia...
M.H.: Isso é uma calúnia.
DER
SPIEGEL: E não há, então, nenhuma carta em que essa proibição seja mencionada?
Como é que surgiu esse boato?
M.H.: Eu também não sei. Não tem explicação. Que
tudo isso é impossível pode demonstrar-se mediante algo que também não é
conhecido. Durante o meu reitorado, defendi perante o Ministro tanto o
Professor Thannhauser, diretor da Clínica Médica, como o posterior Prêmio
Nobel von Hevesy, catedrático de Química Física, ambos judeus, que o Ministério
queria demitir. É absurdo que eu tivesse apoiado estes dois homens e atuasse,
ao mesmo tempo, de forma indigna contra o Professor emérito Husserl, que era o
meu mestre. Também impedi que estudantes e docentes realizassem uma
manifestação contra o Professor Tannhauser [ante a sua clínica. Na participação
de morte que a família Tannhauser mandou publicar no jornal local, lê- se: “Até
1934 foi diretor respeitado da clínica médica universitária de Friburgo.
Brockline, Mass., 18/12/1962.” Sobre o Professor Von Hevesy apareceu a seguinte
notícia nas Folhas da Univ. de Friburgo, v. l l/Fev. 1966: “Entre 1926 e 1934,
von Hevesy foi diretor do Instituto de Físico-Química da Universidade de
Friburgo.” Após a minha renúncia como Reitor, ambos os diretores foram afastados dos
seus postos.] Havia então muitos Privatdozenten (5) que tinham ficado sem lugar e
que pensaram ser então boa altura para voltar à universidade. Mandei embora
toda essa gente que se me veio apresentar.
DER SPIEGEL: Contudo, não foi ao
funeral de Husserl, em 1938.
M.H.: Quanto a isso, tenho a dizer o seguinte:
acusa-se-me de ter cortado relações com Husserl, o que não tem fundamento. Em
Maio de 1933, a minha mulher escreveu uma carta, em nome de ambos, a Frau
Husserl, em testemunho do nosso agradecimento inalterado, e enviou esta
carta com um ramo de flores a casa de Husserl. Frau Husserl respondeu
brevemente, com um agradecimento formal, dizendo que a relação entre as nossas
famílias se tinha cortado. O não ter voltado a manifestar uma vez mais o meu
agradecimento e a minha admiração por Husserl com ocasião da sua doença e
morte, foi uma falha humana, pela qual roguei numa carta a Frau Husserl que me
perdoasse.
DER SPIEGEL: Husserl faleceu em 1938. Ora, tinha sido em 1934 que o
Senhor tinha renunciado ao reitorado. Como se chegou a essa situação?
M.H.:
Para responder a essa pergunta tenho que recordar algo. No semestre de Inverno
de 1933-1934 e com a intenção de superar a organização técnica da Universidade,
ou seja, para renovar as Faculdades de dentro para fora, nas suas missões
específicas, eu tinha proposto que se nomeasse como decanos a colegas mais
jovens e, sobretudo,
destacados na sua especialidade, sem ter em conta a sua posição relativamente
ao partido. Foi assim que chegaram a decanos: na Faculdade de Direito, o
Professor Erik Wolf; na de Filosofia, o Professor Schadewaldt; na de Ciências
Naturais, o Professor Soergel; e na de Medicina, o Professor von Möllendorf,
que a princípios do ano fora destituído como reitor. Todavia, já pelo Natal de
1933, eu tinha compreendido que não poderia levar avante a renovação da
universidade, tal como eu a via, contra a resistência dos colegas e contra o
partido. Os colegas levaram-me a mal, por ex., o ter integrado os estudantes
nas responsabilidades da administração universitária – exatamente como hoje
acontece. Um dia fui chamado a Karlsruhe, onde o Ministro, por intermédio do
seu Conselho e em presença do dirigente comarcal dos estudantes
(Gaustudentenführer), me exigiu que os decanos das Faculdades de Medicina e de
Direito fossem substituídos por colegas do agrado do partido. Eu recusei-me a
aceitar esta ingerência e apresentei a minha demissão do cargo de Reitor, uma
vez que o Ministro manteve a sua exigência. Foi mesmo assim. Isto passou-se em
Fevereiro de 1934: eu retirei-me depois de 10 meses de exercício do cargo,
quando os reitores de então permaneciam como tal 2 anos ou mais. Enquanto que a
imprensa nacional e estrangeira tinha comentado das mais diferentes maneiras a
tomada de posse como Reitor, a minha renúncia foi silenciada.
DER SPIEGEL: Teve
alguma oportunidade nessa época de comunicar ao Ministro do Reich de então as
suas ideias acerca da reforma da universidade?
M.H.: A que época se refere?
DER SPIEGEL: Referimo-nos a uma viagem
que Rust [o então Ministro Nacional-socialista da Educação] realizou em 1933 a Friburgo.
M.H.: Trata-se de dois acontecimentos
distintos. Em Schönau i. W., por ocasião de um festival, tive oportunidade de o
cumprimentar brevemente, de modo formal. Em segundo lugar, falei com o Ministro
em Berlim, em Novembro de 1933. Comuniquei-lhe a minha concepção da ciência e
da possível organização das Faculdades. Ele tomou nota de tudo
cuidadosamente, pelo que fiquei esperançado que a comunicação pudesse dar os
seus frutos. Mas não aconteceu nada. Não entendo como se me pode censurar esta
conversa com o então Ministro da Educação do Reich, quando nessa mesma altura
todos os governos estrangeiros se apressavam a reconhecer Hitler e a
manifestar-lhe a habitual reverência internacional.
DER SPIEGEL: A sua relação
com o Partido Nacional-Socialista altera-se depois de ter renunciado a ser
reitor?
M.H.: Depois de deixar o reitorado, limitei-me à minha atividade
docente. No semestre de Verão de 1934, lecionei Lógica. No semestre seguinte
(1934/1935), dei o primeiro curso sobre Hölderlin. Todos os que
sabiam ouvir, compreenderam que se tratava de um enfrentamento com o nazismo.
DER SPIEGEL: Como decorreu a transferência de poderes? Não tomou parte na
cerimônia?
M.H.: Sim, neguei-me a participar na cerimônia de transferência do
cargo de reitor.
DER SPIEGEL: O seu sucessor era militante do partido?
M.H.:
Era jurista. O Alamano, jornal do partido, anunciou a sua nomeação como reitor
com a legenda: “o primeiro reitor nacional-socialista da universidade”.
DER
SPIEGEL: Como se comportou o partido em relação a si?
M.H.: Passei a ser
vigiado permanentemente.
DER SPIEGEL: Dava por isso?
M.H.: Sim, deu-se o caso
do Dr. Hancke.
DER SPIEGEL: Como chegou a dar por isso?
M.H.: Porque
foi ele próprio quem veio ter comigo. Ele acabara de se doutorar no semestre de
Inverno de 1936/37, e no semestre de Verão de 1937 participava no meu Seminário
Superior (Öberseminar). Tinha sido lá enviado pelo Serviço de Segurança para me
vigiar.
DER SPIEGEL: E a que propósito é que, de repente, resolveu ir
falar consigo?
M.H.: Por ocasião do meu seminário sobre Nietzsche, no semestre
de Verão de 1937, e do modo como o trabalho decorreu, ele afirmou-me que não
podia prosseguir a vigilância que lhe estava encomendada e queria dar-me a
conhecer esta circunstância, com vista ao futuro da minha atividade docente.
DER SPIEGEL: O partido tinha-o, portanto, sob vigilância?
M.H.: Eu sabia apenas
que os meus escritos não podiam ser comentados. Foi o caso, por exemplo, do meu
trabalho sobre “A doutrina da verdade em Platão”. A conferência que dei em
Roma, no Instituto Germânico, a princípios do ano de 1936, sobre Hölderlin foi
atacada de mau modo no jornal Vontade e Poder, das Juventudes hitlerianas. Os
interessados deveriam reler a polêmica inserida contra mim no jornal de E.
Krieck, Povo em Devir, no verão de 1934. No Congresso Internacional de
Filosofia de Praga, em 1934, não pude participar como delegado pela parte alemã
[e nem sequer fui convidado a participar]. Também tive de ficar à margem do
Congresso Internacional sobre Descartes (Paris, l937). Isto pareceu tão
estranho em Paris, que a direção do congresso – o Professor Bréhier, da
Sorbonne – tomou a iniciativa de se pôr em contacto comigo para saber porque é
que eu não integrava a delegação alemã. Eu respondi à direção do congresso que
só o Ministério da Educação do Reich poderia informar sobre isso. Algum tempo
depois chegou de Berlim um convite para que me integrasse, adicionalmente, na
delegação, ao que me neguei. Os escritos O que é a Metafísica? e Da essência da
verdade venderam-se à socapa, sem título. O discurso reitoral foi retirado
das livrarias, imediatamente depois de 1934, por ordem do partido. [Só se
autorizava que fosse discutido nos acampamentos de docentes do Partido, como
objecto de polêmica político-partidária.]
DER SPIEGEL: Ainda chegou a ser pior
a situação?
ª
M.H.: No último ano de guerra, 500 dos mais significativos
cientistas e artistas ficaram livres de todo o serviço de guerra. Eu, pelo
contrário, encontrava-me entre os que o não foram e, no Verão de 1944, fui
obrigado a fazer trincheiras nas margens do Reno.
DER SPIEGEL: Do outro lado,
do lado suíço, estava Karl Barth a fazer trincheiras.
M.H.: O que interessa é como se chegou aí. O reitor tinha
convidado todos os docentes, perante os quais fez um breve discurso com o
seguinte conteúdo: aquilo que ele ia dizer era fruto de um acordo com o
dirigente regional e com o dirigente comarcal do Partido Nacional-Socialista.
Todos os docentes seriam repartidos em 3 grupos. Em primeiro lugar, estavam
aqueles de que se podia prescindir totalmente; em segundo, aqueles de que só em
parte se podia prescindir; em terceiro, os imprescindíveis. Dos que pertenciam
ao primeiro grupo, o primeiro a ser nomeado foi Heidegger; dos do seguinte, G.
Ritter. No semestre de Inverno de 1944/45, depois de terminar o trabalho de
trincheiras no Reno, dei um curso sob o título “Poetar e pensar”, que em certo
sentido era prolongamento do meu curso sobre Nietzsche, ou seja, do
enfrentamento com o nacional-socialismo. Após a 2ª lição fui mobilizado,
tendo sido o mais velho dos membros do corpo docente que foram alistados.
[DER
SPIEGEL: Creio, Senhor Professor, que não é necessário que nos conte o que
sucedeu até à sua reforma de facto ou, digamos, até à sua reforma legal. São
amplamente conhecidos.
M.H.: Assim tão conhecidos, não são. É um assunto pouco
agradável.
DER SPIEGEL: A menos que deseje acrescentar algo a esse propósito...
M.H.: Não.]
DER SPIEGEL:
Resumindo: em 1933, o Senhor que, em sentido estrito (não em sentido lato) é
apolítico, vai parar à política deste movimento...
M.H.: ... no âmbito da
Universidade...
DER SPIEGEL: ... através do âmbito universitário.
Aproximadamente um ano depois, renuncia à função que então aceitara. Todavia,
em 1935, num curso que foi publicado em 1953, como Introdução à Metafísica,
disse: “Aquilo que hoje” – ou seja, em 1935 “se anuncia como filosofia do
nacional-socialismo, mas que não tem nada que ver com a verdade interna e a
grandeza deste movimento (concretamente, com o encontrar da técnica definida a
nível planetário e do homem moderno) lança o anzol nas águas turvas dos valores
e das totalidades”. As palavras entre parênteses foram acrescentadas só em
1953, aquando da publicação – no sentido de explicitar ao leitor de 1953 onde
residia para si a “verdade íntima e a grandeza deste movimento” ou seja, do
nazismo – ou esse parêntesis esclarecedor já existia em 1935?
M.H.: Já estava
no manuscrito e refere-se justamente à compreensão que eu então tinha da
técnica, e não à minha interpretação posterior da técnica como Ge-Stell
(composição). Se não o pronunciei, foi porque estava seguro de que os meus ouvintes entenderiam
corretamente. Só os estúpidos, os provocadores e os espias o compreenderiam de
outra maneira... a seu gosto.
DER SPIEGEL: Com certeza, também vê na mesma
linha o movimento comunista...
M.H.: Sim, absolutamente, como determinado pela
técnica planetária.
DER SPIEGEL: E o americanismo também?
M.H.: Sim,
igualmente. Entretanto, de há 30 anos para cá, tem vindo a tornar-se mais claro
que o movimento planetário da técnica moderna constitui um poder cuja grandeza
historicamente determinada dificilmente pode sobrevalorizar-se. Hoje, é para
mim uma questão decisiva saber em que medida é que um sistema político (e qual)
pode realmente ser conforme à era técnica. Não tenho nenhuma resposta para tal
pergunta. Não estou convencido que seja a democracia.
DER SPIEGEL: Bem, “a”
democracia é um conceito que reúne em si representações muito diferentes. A
questão está em saber se ainda é possível uma transformação desta forma
política. Depois de 1945, o Senhor tem-se pronunciado sobre as aspirações
políticas do mundo ocidental, entre elas da democracia, da mundividência cristã
expressa em política, assim como do estado de direito. E designa todas estas
aspirações como “meias-tintas” (Halbheiten).
M.H.: Peço-lhe,
em primeiro lugar, que me diga onde é que eu falei da democracia e de tudo isso
que mencionou. Mas considerá-las-ia mesmo como “meias-tintas”, visto que não
vejo que nenhuma delas se enfrente realmente com o mundo técnico, pois, do meu
ponto de vista, ainda partem da concepção de que a técnica, na sua essência, é
algo que o homem tem na mão (6). Na minha opinião, isto não é possível. A
técnica, na sua essência, é algo que o homem por si mesmo não domina.
DER
SPIEGEL: Qual das correntes enunciadas é, na sua perspectiva, a mais adequada
aos tempos que correm (zeitgemässe)?
M.H.: Não sei. Mas vejo aí uma questão
decisiva. Haveria, em primeiro lugar, que esclarecer o que é que se entende por
“adequado aos tempos que correm”, o que é que significa aí “tempo”. Mais ainda:
seria de perguntar se a adequação aos tempos dá a medida da “verdade íntima” do
agir humano, se essa medida não vem dada pelo agir do pensar e do poetar, por
mais heterodoxa que esta viragem possa parecer.
DER SPIEGEL: [Ora, é evidente que, em todos os tempos, o homem nunca chegou a controlar seus instrumentos], veja-se o aprendiz de
feiticeiro. [Nestas condições, não é um pouco pessimista demais dizer: nós nunca chegaremos a controlar este instrumento, sem dúvida gigantesco, que é a técnica moderna?]
M.H.: Pessimismo não. O pessimismo
e o otimismo são tomadas de posição demasiado superficiais no âmbito da
reflexão de que nos ocupamos. E, sobretudo, a técnica moderna não é um
“instrumento”, nem tem já nada que ver com instrumentos.
DER SPIEGEL: E porque
é que havemos de estar tão fortemente subjugados pela técnica?
M.H.: Eu não
digo subjugados. O que eu digo é que ainda não encontramos um caminho que
co-responda à essência da técnica.
DER SPIEGEL: Poderia replicar-se-lhe, com
toda a ingenuidade: o que é que há aqui que precise ser dominado? A verdade é
que tudo funciona. Cada vez se constroem mais centrais eléctricas. Produz-se de
forma competente. Os homens estão bem acomodados nesta zona altamente
tecnificada da Terra. Vivemos com bem-estar. Falta-nos, por ventura, alguma
coisa?
M.H.: Tudo funciona. É precisamente isso que é inquietante: tudo
funciona, e o funcionar arrasta sempre consigo o continuar a funcionar, e a
técnica arranca o homem da terra e desenraíza-o cada vez mais. Eu não sei se não
os assusta – seja como for, a mim assusta-me – ver agora as fotografias da Terra
feitas da Lua. Não é preciso nenhuma bomba atômica: o desenraizamento do homem
já está aí. Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que
o homem hoje vive. Há pouco tempo, tive uma longa conversa, na Provença, com o
poeta e combatente da resistência René Char. Estão a construir bases para
mísseis na Provença e a região desertifica-se de uma maneira inimaginável. O
poeta – que, com certeza, não é suspeito de sentimentalismo, nem de uma
adoração tola do idílio – dizia-me que se o pensar e o poetar não
conseguem alcançar o poder da não-violência, o desenraizamento que se está a
dar do homem será o fim.
DER SPIEGEL: Mas temos que dizer que, apesar disso,
preferimos estar aqui e que, de todos os modos, não poderemos deixar de
pertencer ao nosso mundo. E quem sabe se o homem está destinado a estar nesta
Terra? Seria pensável que o homem não estivesse destinado mesmo a coisa
nenhuma. E também se poderia ver sempre como uma possibilidade do homem o
lançar-se a outros planetas, a partir desta Terra. Com certeza que já não
estamos longe disso. Onde é que está escrito, afinal, que o sítio do homem seja
este?
M.H.: Se estou bem informado, de acordo com a nossa experiência e
história humanas, tudo o que é essencial, tudo o que é grandeza surgiu do homem
ter uma pátria e estar enraizado numa tradição. A literatura contemporânea, por
exemplo, é excessivamente destrutiva.
DER SPIEGEL: Perturba-nos que mencione
aqui a palavra “destrutiva”, até porque o termo adquiriu justamente por seu
intermédio e na sua filosofia conotações niilistas, num contexto totalmente
englobante. Choca-nos ouvir a palavra “destrutiva” em relação à literatura, que
possa vê-la ou tenha que vê-la absolutamente como parte desse niilismo.
M.H.:
Devo dizer que a literatura a que me referi não é niilista nesse sentido
pensado por mim. [Nietzsche II, pp. 335 e seg.]
DER SPIEGEL: De acordo com o
que disse, vê manifestar-se uma tendência que conduz ao Estado absolutamente
técnico ou que já nele desembocou. É assim?
M.H.: Sim! [Mas o estado técnico é,
justamente, o que menos se corresponde com o mundo e a sociedade determinados
pela essência da técnica. O estado técnico seria o mais servil e cego dos
esbirros do poder da técnica.]
DER SPIEGEL: Bem, nesse caso, naturalmente,
põe-se-nos o problema de se o homem corrente ainda pode influir sobre esta
engrenagem do curso inevitável das coisas, ou se é a filosofia que pode ter
essa influência, ou se são ambos em conjunto, na medida em que a filosofia leva
o indivíduo ou vários indivíduos a uma determinada ação.
M.H.: [Com essa
pergunta, voltamos ao início do nosso diálogo.] Se se me permite expressar-me
com brevidade e até, de certo modo, brutalmente, embora com base numa longa
reflexão, a filosofia não pode provocar nenhuma alteração imediata do atual
estado do mundo. Isto não é válido apenas em relação à filosofia, mas também a
todas as meditações e anseios meramente humanos. Já só um deus nos pode ainda
salvar. Como única possibilidade, resta-nos preparar pelo pensamento e pela
poesia uma disposição para o aparecer do deus ou para a ausência do deus em
declínio; preparar a possibilidade de que [em vez de que, dito brutalmente,
“estiquemos o pernil”] pereçamos perante o deus ausente.
DER SPIEGEL: Há alguma
conexão entre o seu pensamento e o advento (Heraufkunft) desse deus? Há aí, na
sua maneira de ver, uma relação causal? Crê que nos podemos aproximar do deus
pelo pensamento?
M.H.: Não o podemos atrair mediante o pensar. Podemos, quando
muito, despertar a disposição a esperá-lo.
DER SPIEGEL: Mas podemos ajudar?
M.H.: O
dispor-se a estar disposto deveria ser a primeira ajuda. O mundo não pode ser
aquilo que é e tal como é apenas mediante o homem, mas também não pode sê-lo
sem o homem. Do meu ponto de vista, isto liga-se a que aquilo que eu designo
por uma palavra há muito tradicional, multívoca e hoje desgastada, o “ser” (7),
precisa do homem para a sua manifestação, custódia e configuração. Vejo a
essência da técnica naquilo a que chamo Ge-Stell (com-posição), expressão amiúde ridicularizada e talvez infeliz. O vigorar da
composição (Ge-Stell) significa que o homem é situado, solicitado e provocado
por um poder (Macht) que ele próprio não domina. Ajudar a que isto chegue a ser
compreendido: não se pode pedir mais do pensar. A filosofia chega ao seu fim.
DER SPIEGEL: A princípio – e não só a princípio – pensava-se que a filosofia
tinha uma forte ação indireta (raramente direta), que indiretamente podia
agir de forma importante e ajudou a que irrompessem novas correntes. Se
pensarmos – sem sair do âmbito alemão – nos nomes de Kant e de Hegel até
Nietzsche, para não falar de Marx, pode comprovar-se que a filosofia tem
exercido uma imensa influência por caminhos transversos. Crê que esta ação da
filosofia chegou ao fim? E quando diz que a antiga filosofia está morta, que já
não existe, quer também dizer que essa influência, se é que existiu, hoje, pelo
menos, já não se dá?
M.H.: [Acabo de
o dizer:] É possível uma ação mediata, por intermédio de um outro pensar. Mas
uma ação direta, de tal maneira que o pensar fosse simultaneamente a causa de
uma transformação do mundo, não é possível.
DER SPIEGEL: Desculpe. Nós não
queremos pôr-nos a filosofar, que a tanto não chegamos. Mas temos aqui a charneira
entre a política e a filosofia. Perdoe-nos, por isso, se o metemos em tal
conversa... Acaba de dizer-nos que a filosofia e o indivíduo não podiam fazer
nada senão...
M.H.: ... preparar-se para este estar-disposto a manter-se aberto
para a chegada ou a falta do deus. A experiência desta falta não é um nada, mas
sim um libertar-se do homem daquilo que em Ser e Tempo denominei “a queda
(Verfallenheit) no ente”. A reflexão sobre o que hoje acontece é inerente a uma
preparação do mencionado estar-disposto.
DER SPIEGEL: Mas, nesse caso, teria
mesmo que dar-se o famoso impulso do exterior – Deus ou quem quer que fosse.
Crê, então, que o pensar, hoje, já não poderia agir a partir de si mesmo e de
forma auto-suficiente? Antigamente, fazia-o, na opinião dos contemporâneos e
também, segundo creio, na nossa.
M.H.: Mas não de forma imediata.
DER SPIEGEL:
Já mencionamos Kant, Hegel e Marx como pontos de partida de grandes movimentos.
Mas também de Leibniz partiram impulsos para o desenvolvimento da física
moderna e, dessa maneira, para o surgir do mundo moderno em geral. Cremos que o
Senhor disse algures que já não contava com uma efectividade desse tipo.
M.H.: Da parte da filosofia, já não. Os papéis que a filosofia
desempenhava até agora foram hoje assumidos pelas ciências. Uma aclaração
suficiente do “efeito” do pensar exigiria que explicitássemos o que “efeito”
(Wirkung) e “ter efeito sobre” (Bewirken) significam aqui. Seria necessário
distinguir mais em profundidade entre motivo, impulso, estímulo, ajuda,
impedimento e cooperação, se bem aclaramos o princípio de razão. A filosofia
desintegra-se em ciências particulares: a Psicologia, a Lógica, a Politologia.
DER SPIEGEL: E quem ocupa agora o posto da Filosofia?
M.H.: A Cibernética.
DER
SPIEGEL: Ou o devoto que se mantém em atitude de abertura?
M.H.: Mas isso já
não é filosofia.
DER SPIEGEL: Então o que é?
M.H.: Eu chamo-lhe “o outro
pensar”.
DER SPIEGEL: Chama-lhe “o outro pensar”. Não se importa de formular isso
mais claramente?
M.H.: Não estava a pensar na frase com que termina a minha
conferência “A pergunta pela técnica”: “o perguntar é a devoção do pensar”?
DER SPIEGEL: Encontramos nas suas lições
sobre Nietzsche uma frase que nos pareceu convincente. Dizia: “É porque no
pensar filosófico reina a maior ligação possível que os grandes pensadores
pensam todos o mesmo. Mas aquele é, porém, tão essencial e tão rico, que nenhum
indivíduo o esgota, ligando cada um a cada um mais intimamente ainda”. Para si,
até este edifício filosófico parece ter chegado a um termo certo.
M.H.:
Terminou. O que não quer dizer que, para nós, se tenha desfeito em nada. Antes
pelo contrário, volta a estar presente pelo diálogo. Todo o meu trabalho nas
aulas teóricas e práticas, ao longo dos últimos 30 anos, consistiu apenas e
fundamentalmente numa interpretação da filosofia ocidental. O retroceder até
aos fundamentos teóricos do pensar, a meditação sobre os problemas que desde a
filosofia grega ainda não foram problematizados – nada disto é uma dissolução
da tradição. Eu digo, porém, que os modos de pensar da metafísica tradicional,
que chegou ao seu termo com Nietzsche, já não oferecem possibilidade nenhuma de
fazer a experiência de pensar os traços fundamentais da era técnica, que só
então começou.
DER SPIEGEL: Há aproximadamente dois anos, em diálogo com um
monge budista (8), falou de um “método totalmente novo do pensar” e disse deste
novo método que, “a princípio só poderia ser consumado por poucos homens”.
Queria com isso dizer que só em muito pouca gente poderá chegar a dar-se essa
compreensão que, no seu ponto de vista, é possível e necessária?
M.H.: “Dar-se”
no sentido mais absolutamente originário em que possa ser dito.
DER SPIEGEL: Sim, mas a sua efetivação (Verwirklichung)
também não foi explicitamente exposta por si nesse diálogo com o budista.
M.H.:
É que eu também não posso torná-lo visível. Eu não sei nada acerca de como este
pensar “tem efeito” (wirkt). Bem pode ser que o caminho do pensar se dirija
hoje ao silêncio, para proteger o pensar de ser depreciado dentro de um ano. E
também pode ser que sejam precisos 300 anos para que ele “faça efeito”.
DER
SPIEGEL: Compreendemos muito bem. Mas como, dentro de 300 anos, nós já não
estaremos vivos, e, pelo contrário, vivemos aqui e agora, está-nos vedado
calar-nos. Nós, políticos, meio-políticos, cidadãos de um Estado, jornalistas,
etc., temos constantemente que tomar decisões, sejam elas quais forem. Temos
que tomar posição face ao sistema em que vivemos, temos que procurar
modificá-lo, temos que tentar vislumbrar o exíguo acesso a uma reforma, ou o
ainda mais exíguo a uma revolução. Dos filósofos esperamos ajuda, ainda que
esta seja, como é natural, indireta, ajuda por caminhos transversos. Ora o que
ouvimos é: eu não posso ajudar-vos!
M.H.: E é verdade que não posso.
DER
SPIEGEL: Isso tem que ser desanimador para quem não é filósofo.
M.H.: Não
posso, porque as questões são tão difíceis que seria contrário ao sentido desta
missão do pensar o começar simultaneamente a predicar e a emitir valorações
morais. Talvez se possa aventurar o seguinte: ao mistério da superpotência
planetária da essência impensada da técnica moderna responde a provisoriedade e
a insignificância do pensar, que procura refletir sobre este impensado.
DER SPIEGEL: Não se considera entre
aqueles que, se ao menos fossem escutados, poderiam indicar um caminho?
M.H.:
Não! Eu não conheço nenhuma via de alteração imediata da situação mundial
atual, se é que tal modificação é humanamente possível. Mas parece-me que este
ensaio de pensar poderia despertar, esclarecer e assegurar o já mencionado
“estar disposto”.
DER SPIEGEL: A única resposta clara que o pensador pode e
deve dar é, então: “aguardai, que dentro de um prazo de 300 anos algo se nos
há-de ocorrer”?
M.H.: Não se trata apenas de esperar até que, de aqui a 300
anos, o homem chegue a descobrir algo. Trata-se antes de pensar de antemão
(vordenken) os tempos que hão-de vir, sem pretensões de profecia, a partir das
linhas fundamentais e quase impensadas da era atual. O pensar não é
inatividade; é ele mesmo o agir (Handeln) que, em si mesmo, está em diálogo
com o destino do mundo (Weltgeschick). A mim parece-me que a distinção entre
teoria e práxis, de proveniência metafísica, e a representação de uma
transmissão entre ambas destroçam o caminho que conduz àquilo que eu entendo
como pensar. Se me permitem, remeteria aqui para um dos meus cursos, publicado
em 1954 com o título O que significa pensar. Talvez também seja signo do
nosso tempo o fato de que, entre todos os meus escritos, seja este o que é menos
lido.
DER SPIEGEL: [Naturalmente, sempre foi um erro da filosofia pensar que o
filósofo pode ter, através da sua filosofia, alguma ação direta.] Voltemos ao
princípio. Não seria de pensar que o nazismo foi, por um lado, a realização
desse “encontro planetário” e, por outro, o último, o pior e, simultaneamente,
o mais forte e o mais impotente dos protestos contra esse encontrar-se com a
“técnica definida planetariamente” e com o homem moderno? É evidente que o
Senhor manifesta uma contradição na sua pessoa, na medida em que muitos dos
produtos complementares da sua atividade só podem explicar-se como um apego a
diversos aspectos da sua maneira de ser que não têm que ver com o núcleo
filosófico, e que o Senhor, como filósofo, sabe não terem conteúdo – refiro-me
a conceitos como “pátria”, “enraizamento” e parecidos. Como conjuga “técnica
planetária” e “pátria”.
M.H.: Não estou de acordo. Parece-me que está a tomar a
técnica de uma maneira demasiado absoluta. Eu não vejo a situação do homem no
mundo da técnica planetária como uma dependência impossível de desenvencilhar e
de separar. Considero, pelo contrário, que a missão do pensar, dentro dos seus
limites, consiste precisamente em contribuir para que o homem chegue a
conseguir estabelecer uma relação suficientemente rica com a essência da
técnica. Efetivamente, o nazismo seguiu essa via, mas essa gente era demasiado
incapaz de pensar para conseguir estabelecer uma relação realmente explícita
com aquilo que acontece hoje em dia e há já três séculos que vinha a caminho.
DER SPIEGEL: Essa relação explícita tê-la-ão hoje os americanos?
M.H.: Não,
também não têm. Ainda estão dentro de um pensar que, enquanto pragmatismo,
favorece o operar e o manipular, mas que, simultaneamente, esquiva a via de uma
reflexão sobre a peculiaridade da técnica moderna. Embora nos EUA também haja
tentativas esporádicas de libertar-se do pensamento pragmático-positivista. E
quem sabe se um dia não se irão despertar na Rússia e na China tradições
ancestrais de um “pensar” que contribua para a possibilitação de uma relação
livre do homem com o mundo técnico?
DER SPIEGEL: Se
ninguém o tem e o filósofo não o pode dar...
M.H.: Até onde chegou a minha
tentativa de pensar e de que maneira ela possa vir a ser aceite no futuro e tornada
frutífera, é algo acerca do que não me compete a mim pronunciar-me. Ainda em
1957, numa conferência comemorativa do jubileu da Universidade de Friburgo, que
tem por título “O princípio de identidade”, procurei mostrar, em poucas
passadas, em que medida uma experiência pensante daquilo que constitui a
peculiaridade da técnica moderna pode abrir a possibilidade de que o homem da
era técnica experimente a vinculação a um apelo, que ele está capacitado para
ouvir, e ao qual, sobretudo, ele mesmo pertence. O meu pensamento está
iniludivelmente vinculado à poesia de Hölderlin. Não considero Hölderlin um
poeta qualquer, cuja obra foi tematizada, como muitas outras, pelos
historiadores da literatura. Hölderlin, para mim, é o poeta que indica o
futuro, que aguarda o deus e que, por isso, não deve ser considerado apenas
como objeto de investigação hölderliniana no âmbito da história da literatura.
DER SPIEGEL: A propósito de Hölderlin, e escusando-nos por ter que voltar à
leitura de citações, dizia o Senhor no seu curso sobre Nietzsche, que “a
oposição, conhecida de diversas maneiras, entre o dionisíaco e o apolíneo,
entre a paixão sagrada e a exposição sóbria, é uma lei oculta e silenciosa da
caracterização histórica dos alemães e que nos tem, um dia, que encontrar
dispostos e preparados para lhe dar figura. Esta oposição não é uma mera
fórmula para nos ajudar a descrever o que se entende por cultura (Kultur). Com
esta oposição, Hölderlin e Nietzsche faziam terminar com um signo de interrogação a missão que os alemães têm de encontrar historicamente a sua essência.
Chegaremos a entender este signo? Uma coisa é certa: a História far-nos-á pagar caro, se o não entendermos”. Não
sabemos em que ano escreveu estas palavras. Cremos que em 1935.
M.H.: É
provável que a citação pertença ao curso sobre Nietzsche intitulado “A vontade
de poder como arte”, que é de 1936/193737 . Mas também pode ter sido dita nos
anos seguintes.
DER SPIEGEL: Importa-se de as explicitar um pouco? A citação
permite-nos concretizar uma definição dos alemães, partindo de uma via
genérica.
M.H.: Eu poderia dizer o mesmo da seguinte maneira: estou convencido
de que só partindo do mesmo sítio do mundo onde surgiu o mundo técnico moderno,
se pode preparar uma inversão. Esta não pode acontecer mediante a adoção do zen budismo ou de outras experiências do mundo oriental. Para que haja uma
revolução no pensamento (Umdenken), precisamos da ajuda da tradição europeia e
de um novo apropriar-se desta. O pensar só pode ser modificado pelo pensar que
tem a mesma proveniência e a mesma determinação.
DER SPIEGEL: Na sua opinião,
tem que ser justamente nesse lugar em que o mundo técnico surgiu, que este...
M.H.: ... seja superado, sem sentido hegeliano (não eliminado, mas sim
superado). Mas o homem não pode consegui-lo sozinho.
DER SPIEGEL: Atribui aos
alemães uma missão (Aufgabe) especial?
M.H.: Sim, no sentido do diálogo com
Hölderlin.
DER SPIEGEL: Crê
que os alemãs estão especialmente qualificados para levar a cabo esse inversão?
M.H.: Penso no especial parentesco íntimo entre o idioma alemão e o idioma
grego e os seus pensadores. É o que os franceses me reafirmam atualmente,
repetidas vezes. Quando começam a pensar, falam alemão. Asseguram que com a sua
língua não seriam capazes.
DER SPIEGEL: É assim que explica que tenha tido uma
influência tão forte nos países latinos e, em especial, sobre os franceses?
M.H.: Eles vêem que, com toda a sua enorme racionalidade, já não penetram no
mundo atual, quando se trata de o compreender na origem da sua essência. Tão
difícil é traduzir poesia, como traduzir um pensamento. Dito de outra maneira:
quando se pretende traduzir à letra, tudo se altera.
DER SPIEGEL: Esse
pensamento é inquietante.
M.H.: Seria bom que essa inquietude fosse tomada a sério e
que, finalmente, se refletisse sobre essa alteração, tão rica em
consequências, que o pensamento grego experimentou ao ser traduzido para o
latim romano – acontecimento que ainda hoje nos impede de meditar com
suficiente profundidade as palavras fundamentais do pensamento grego.
DER
SPIEGEL: Mas, Senhor Professor, a verdade é que nós temos que partir do
otimismo de que há algo que pode ser comunicado e, igualmente, traduzido, pois
quando se acabe o otimismo de acreditar que os conteúdos de pensamento se
podem comunicar, mesmo para além das fronteiras idiomáticas, estaríamos sob a
ameaça do provincianismo.
M.H.: Chamaria “provinciana” a diferença do
pensamento grego em relação ao modo de representação do mundo romano? As cartas
comerciais podem ser traduzidas para todas as línguas. As ciências – que para
nós, hoje em dia, são também precisamente as Ciências da Natureza, com a Física
Matemática como ciência fundamental também são traduzíveis para todas as
línguas. Ou melhor: não se traduzem, visto que todas falam a mesma linguagem
matemática. Roçamos aqui um campo demasiado amplo e difícil de medir.
DER
SPIEGEL: O que vamos dizer talvez também pertença a esse tema. Vivemos
atualmente, sem exagero, uma crise do sistema democrático parlamentar. Há
muito que ela está presente na Alemanha, mas não apenas na Alemanha. Também
existe nos países clássicos da democracia, como a Inglaterra e a América. Em
França, já nem sequer é uma crise. A questão é: não poderíamos esperar da parte
do pensador, como um produto secundário, digamos, indicações no sentido de
que este sistema deveria ser substituído por outro novo e como deveria ser, ou
que é possível uma reforma, e indicações de como seria possível. De não ser
assim, o homem sem educação filosófica – que,
normalmente, é quem tem as coisas na sua mão (ainda que as não determine) e
quem está na mão das coisas – chegará a tomar decisões erradas, e até talvez
demasiado terrivelmente limitadas. Não deveria, pois, estar o filósofo pronto a
meditar de que modo os homens podem organizar a sua convivência neste mundo por
ele próprio tecnificado e que, quiçá, o tem subjugado? Não é com razão que se
espera do filósofo que dê uma orientação acerca de como ele se representa uma
possibilidade de vida? E não falta o filósofo a uma parte, na minha opinião
modesta, do seu ofício e da sua vocação, se não tem nada para dizer acerca
disso?
M.H.: Pelo que vejo, não há um único pensador que esteja em condições de
perscrutar, pelo pensamento, o mundo na sua totalidade, de forma a poder dar
indicações práticas – e isto até mesmo em relação à sua missão de encontrar de
novo uma base para o próprio pensamento. O pensar já está sobrecarregado
simplesmente com o tomar a sério a grande tradição; quanto mais não estaria se,
além disso, se atribuísse a si próprio o pôr-se a dar orientações dessa ordem.
Com que autoridade procederia assim? No âmbito do pensamento não há proposições
de autoridade. A única medida para o pensamento vem dada pela própria coisa a
pensar. Mas isso é o que mais problemático é. Para tornar compreensível esta
contextura seria, sobretudo, necessária uma meditação sobre a relação
filosofia-ciências, cujos êxitos técnico-práticos fazem parecer cada vez mais
supérfluo um pensar no sentido do filosófico. A difícil situação em que se
encontra o pensar no que diz respeito à sua missão própria reflete-se, por
isso, numa estranheza perante o pensar, que é alimentada precisamente pela
posição de força das ciências, e que nega necessariamente a possibilidade de
uma resposta às perguntas práticas relativas à visão do mundo.
DER SPIEGEL: No
âmbito do pensar não há proposições de autoridade... Então também não é nada
surpreendente que a arte moderna tenha dificuldade em dar normas. Ora,
o Senhor, ao mesmo tempo, chama-a “destrutiva”. A arte moderna interpreta-se
habitualmente a si mesma como arte experimental. As suas obras são ensaios...
M.H.: Tenho muito gosto em aprender...
DER SPIEGEL: ... ensaios que surgem de
uma situação de isolamento do homem e do artista, e entre 100 ensaios sempre se
encontra algum acerto.
M.H.: A questão importante é, justamente esta: em que
situação se encontra a arte? Qual é o seu sítio?
DER SPIEGEL: Bem, mas então o
Senhor espera da arte algo que já não espera do pensamento.
M.H.: Eu não espero
nada da arte. Limito-me a dizer que é problemático o sítio que a arte ocupa.
DER SPIEGEL: É porque a arte desconhece o seu sítio que é destrutiva?
M.H.:
Bom, risque isso. Mas quero reafirmar que não vejo aonde apontam as vias da arte
moderna, tanto mais que continua obscuro onde é que, para a arte, está aquilo
que lhe é mais próprio, ou pelo menos, o que é que ela busca.
DER SPIEGEL:
Também o artista carece de vinculação com a tradição. E quando se depare com os
produtos desta dirá: sim, seria assim que há 600 anos se pintava, ou talvez há
300, ou até há 30. Mas agora já não pode ser assim. Mesmo que ele quisesse, já
não poderia. Senão, o grande artista não seria mais que o genial falsificador
Hans van Meegeren, aquele que fosse capaz de pintar “melhor” que os outros. Mas
já não é assim. Por isso, o artista, o escritor, o poeta estão numa situação
semelhante à do pensador. Quantas vezes, enfim, temos que dizer: fecha os
olhos?
M.H.: Se enquadrarmos a arte, a poesia e a filosofia no âmbito dos
“assuntos culturais”, é certo que estão numa situação idêntica. Mas se se
pergunta não só por tais “assuntos”, mas também por aquilo que “cultura”
significa, a meditação desta problemática integra o âmbito do pensar e da sua
missão, cuja miséria parece inconcebível. Mas a maior das misérias do pensar
reside em que, hoje, segundo vejo, não há ainda nenhum pensador suficientemente
“grande” para levar o pensamento, de modo imediato e de forma pregnante, ao seu
tema e, portanto, ao seu caminho. Para nós, homens de hoje, a grandeza do que
deve ser pensado é demasiado grande. Talvez devamos esforçar-nos por construir
uma passagem por sendas mais estreitas e de mais curto alcance.
DER SPIEGEL:
Senhor Professor Heidegger, estamos-lhe muito agradecidos por esta entrevista.
Notas
1. Friedrich Naumann (1860-1919), político de enorme influência na Alemanha
de princípios do século XX, cuja orientação básica se resume numa política de
carácter social e nacional, de base cristã e liberal. Tendo partido da sua experiência
dos problemas sociais nas missões evangélicas, adere ao movimento social-cristão
dos trabalhadores, cujas juventudes lidera em sentido progressista. Em 1896, cria
a Associação Nacional Social, que propugnava a democratização do Estado e o proteccionismo económico como garantias de uma política social eficaz. Em 1910
funda, com a esquerda da Associação Liberal, o Partido do Povo, que mais tarde
está na origem do Partido Democrático, fundado em 1918, de que era presidente e
representante na Assembleia de Weimar, quando faleceu.
2. A redação de Der Spiegel resume nesta intervenção única duas intervenções
de Heidegger e uma pergunta da revista, que na versão II aparecem do seguinte
modo:
M.H.: Assim é realmente.
DER SPIEGEL: Entre estes dois polos... Partindo da situação é totalmente credível...
M.H.: Certamente. Mas devo sublinhar que a expressão ad usum Delphini
diz bem pouco. Eu nessa altura acreditava que da discussão com o nacional-socialismo
podia abrir-se uma nova via, a única via de renovação ainda possível.
3. “A Edmund Husserl, com admiração e amizade. Pelo 8 de Abril de 1926.”
Husserl celebrava nessa data o seu 67º
aniversário.”
4. Tratava-se de uma conferência de Husserl dada em 10/6/1931, sob o título de
“Phänomenologie und Anthropologie”, editada pela primeira vez por Marvin Faber
em Philosophy and Phenomenological Research, v. II, no1 (Set. 1941), pp. 1-14.
5. Doutores habilitados com a venia legendi, mas que, embora leccionem de
facto numa universidade, o fazem a título privado, não estando contratualmente
vinculados a nenhuma, mas em situação de aguardar o ser chamados por alguma
universidade a integrar o seu corpo docente.
6. Em Die Frage nach der Technik, Heidegger distingue a sua concepção daquela
que designa como “definição instrumental e antropológica da técnica” (ed. cit.,
p. 6). Esta vê a técnica como um simples meio ou instrumento para os fins do
homem, prolongamento da mão deste (como defendia Spengler), mediante a qual
dá sentido ao que o envolve como conjunto de Zuhandene (do que está à mão)
e que, desse modo, crê ter na mão. Apesar de admitir a “inquietante correção”
desta definição da técnica, Heidegger considera que ela só traduz a representação
superficial e inautêntica – que o homem moderno tem do seu pretendido poder ou
domínio, ocultando desse modo a sua verdade e essência próprias. Para Heidegger,
a essência da técnica não consiste no seu ser-instrumento, mas em ser um modo
de aletheia, de desencobrimento ou acontecimento do ser, a cuja figura epocal da
modernidade em ocaso chama Ge-Stell.
7. A partir deste ponto e até ao final desta intervenção de Heidegger, o texto constitui um resumo, bastante fiel à letra e espírito do autor, de seu conteúdo original, de que é a mais significativa e ampla alteração: [O termo, que ouvido pela primeira vez se presta a equívocos, se pensado correctamente, indica um retorno à história mais íntima da metafísica, que determina ainda hoje o nosso ser-aí. O vigorar da com-posição significa que o homem é situado, solicitado e provocado por um poder que se revela na essência da técnica. E, justamente, ao fazer a experiência deste ser- situado do homem por algo que não é ele próprio e que ele próprio não domina, que se lhe mostra a possibilidade de compreender que o homem é usado (gebraucht) pelo ser. Naquilo que constitui o mais autêntico da técnica moderna encobre-se, precisamente, a possibilidade da experiência do ser-usado e do estar-pronto para estas novas possibilidades. Ajudar a que isto chegue a ser compreendido: não se pode pedir mais do pensar. A filosofia chega ao seu fim.]
8. [Trata-se da entrevista com o monge Bhikku Maha Mani, que ocorreu em 1965. Disponível em: Entrevista de Heidegger II]
Fonte: Lusosofia e Revista Tempo Brasileiro, nº 50, Julho - Setembro de 1977
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