sexta-feira, 7 de abril de 2017

Duchamp e a doutrina da arte contemporânea

Marcel Duchamp, ‘Fountain’ 1917, replica 1964
Fonte, Marcel Duchamp, 1917. Réplica 1964


Em 1917, a Sociedade dos Artistas Independentes decidiu realizar uma exposição coletiva cujo lema seria: “sem júri, sem prêmios”. Algo muito diferente do que acontecia naquela época, na qual o júri de seleção e as premiações eram os pilares de todos os salões de arte. Os organizadores da mostra estavam, ao mesmo tempo, ansiosos e orgulhosos para libertar a arte dos velhos tabus da beleza, do bom gosto, da destreza técnica, da correta imitação da natureza. Nesse sentido, não haveria necessidade de selecionar os trabalhos – tudo seria aceito. Tampouco poderia haver algum tipo de prêmio, afinal quem poderia reivindicar a autoridade de afirmar: isto é melhor do que aquilo? E baseado em que critérios? Todos os trabalhos estariam em pé de igualdade para a apreciação do público.

Marcel Duchamp, um dos organizadores da mostra, quis levar o lema da exposição até às últimas consequências e, assim, também testar o grau de independência e liberdade de seus colegas, inscrevendo uma obra intitulada A Fonte, sob o pseudônimo de R. Mutt. A obra era, de fato, apenas um urinol de louça, desses que se compra em lojas especializadas, para serem instalados e usados em banheiros, com um único diferencial: deveria ser exibida de cabeça para baixo, invertido, com o nome R. Mutti escrito.

Porém, Duchamp não estava apenas querendo debochar de seus companheiros, obrigando-os a expor um simples urinol, uma vez que não haveria nenhuma seleção dos trabalhos inscritos. Nem tampouco, pretendia ressaltar o aspecto agradável – belo – daquele produto industrial. Pelo contrário, com aquele objeto, ele buscava desencorajar as estéticas, questionando a importância que o mundo da arte concedia aos apelos visuais das obras, isto é, à beleza.

Para Duchamp, havia uma grande confusão entre arte e beleza a tal ponto que esta passou a ser sinônimo daquela. Porém, o urinol era um primeiro passo (de fato, o terceiro, pois o artista já havia apresentado outros dois objetos semelhantes anteriormente, porém sem ter alcançado a repercussão de sua Fonte) tanto para a revelação desse equívoco, quanto para a sua superação. O artista pretendia, assim, ampliar o horizonte da arte, reivindicando novas possibilidades de ação e de sentido.

Diferente de praticamente tudo o que já fora aceito como uma obra de arte, o urinol não havia sido feito pelas mãos de um indivíduo, não era constituído por aqueles materiais tradicionalmente ligados ao fazer artístico, nem tampouco consistia em uma imitação da natureza, mas era sim um simples produto industrial, feito em série, uma coisa do mundo real, pronta, à mão – um ready-made. Algo que o artista simplesmente encontrou e escolheu, não por questões estéticas. No entanto, se Duchamp não estava interessado em agradar as retinas de seu público, nem tampouco encanta-lo com suas habilidades técnicas, o que ele pretendia, então? Fazer com que o pensar se sobrepusesse ao ver, deslocando o interesse pelo aspecto visual para o potencial intelectual da obra. É por isso que, para Duchamp, mesmo o urinol sendo um produto industrial, sem nenhum apelo estético, ele é uma obra.

Quando vemos um urinol em um banheiro, de imediato sabemos o que ele é, sua serventia, e, de fato, se ele funcionar como deve, mal nos damos conta de sua presença – o objeto é diluído no uso que dele fazemos. Porém, esse mesmo urinol, posto de cabeça para baixo, dentro de uma galeria de arte, sob o título A Fonte, causa estranhamento, ou melhor, espanto. Quando nos espantamos, somos retirados do modo habitual com que lidamos com as coisas. Estamos diante de algo que não sabemos, de imediato, o que é nem para que serve. Não sabemos nem o que pensar sobre isso.

É como se ali na galeria, fora do contexto habitual desse objeto, estivéssemos, pela primeira vez, diante do urinol, sendo afetados por sua presença no mundo. Desse espanto, surge um novo ponto de vista acerca do que um urinol pode ser, principalmente quando começamos a elaborar possíveis relações entre esta coisa e o título que o artista lhe concedeu – Fonte. Nesse sentido, sendo um pouco mais radicais, se levarmos a ideia de Duchamp até às últimas consequências, esse espanto não fica restrito aquele urinol, mas faz com que seja ativado todo um questionamento acerca dos mecanismos que fazem com que algo seja isto e não aquilo: o que é uma coisa? Nesse momento, a realidade perde um pouco sua solidez e aparece como dúvida, questão, ou melhor, possibilidade de sentido.

O espanto, que sentimos diante de um urinol dentro de uma galeria de arte, vai ainda mais longe, pois além de nos fazer pensar sobre o que é uma coisa, ele nos faz questionar sobre o que é a própria arte. Apesar de muitas obras ali reunidas para a exposição pretenderem desafiar o gosto do público, todas se encaixavam dentro de certos critérios que garantiam seu lugar no mundo da arte – exceto o urinol. Como já dissemos, Duchamp não produziu esse objeto, mas simplesmente o escolheu. Ele não é uma pintura, uma escultura, uma gravura, não se encaixa em nenhuma linguagem artística previamente conhecida; nem se parece com nada que já tenha sido feito.

Contudo, se eu estou na galeria, diante desse objeto, talvez ele seja arte; mas, então, se isso é arte, arte deve ser algo um pouco diferente do que eu estou acostumada a pensar. Mas, eu realmente já parei para pensar o que é arte? Ou simplesmente, eu lido com as obras de arte, mais ou menos, como lido com urinóis em banheiro? Urinol, banheiro, urinar. Obra de arte, galeria, contemplar. E assim, de fato, meu conhecimento acerca do que é arte provém simplesmente de um hábito de tomar, assim de imediato, certos objetos como obras de arte? Todo esse questionamento não estava apenas latente, mas constituía a própria obra.

Com esse trabalho, Duchamp nos exige algo mais do que apenas nossas retinas, ele reivindica a nossa presença. Saímos, então, da esfera visual da beleza, e entramos no horizonte do que chama o pensar. Apesar de parecer algo óbvio, na maioria das vezes, não estamos presentes nas situações e muito dificilmente nos pomos a pensar. Estamos aqui, mas com a cabeça lá; parados diante de uma coisa, mas sem de fato percebê-la. Olhando, parecemos cegos; ouvindo, parecemos surdos – o dito lhes atesta: presentes estão ausentes. Na maioria das vezes, seguimos no mundo ausentes de nossa própria presença. Impessoais, indiferentes, alienados.

Nesse sentido, podemos afirmar que, por si só, A Fonte simplesmente não é uma obra. Para de fato existir, ela precisa da presença do espectador – de seu esforço reflexivo. É nesse sentido que a obra é um veículo, pois ela só está completa quando há esse movimento do pensar. Não que antes dos ready-mades não houvesse pensamento na arte, mas ele, de um modo geral, era algo derivado da obra, não a própria obra. Com isso, Duchamp realiza uma série de operações que viriam a transformar nossas compreensões da arte, de maneira radical e profunda. Ele desvincula arte e beleza – algo pode ser considerado uma obra de arte sem ser necessariamente belo. Elimina a necessidade de o artista ser o autor, isto é, o produtor de sua obra – ser artista se torna muito mais uma questão de atitude e intenção, do que de habilidade técnica. Destrói as limitações do que pode ou não ser considerado obra. Rompe a barreira entre arte, como um deleite para os sentidos, e pensamento, como algo abstrato. Ver é pensar.

E assim, como um sopro de liberdade, ele estimulou toda uma nova geração de pessoas a fazer e pensar a arte fora do discurso hegemônico dos juízes do gosto, dos doutores da estética. E assim, o que parecia ser muito claramente arte, até o final do século XIX, sofre uma imensa reviravolta no século XX. Contudo, de certa forma, aquele gesto desafiador de Duchamp, hoje, parece ter se convertido em um tipo de doutrina. Algo que, ao contrário de estimular a criação acaba por limitá-la a determinados modos de fazer e pensar – um fenômeno semelhante ao que a estética representou para o próprio Duchamp.

Em muitos textos que lemos sobre arte contemporânea, é possível perceber uma tentativa de definir o que é a arte desde a perspectiva do caso do urinol. Como se houvesse algum tipo de teleologia, que tenha orientado o curso dos acontecimentos, de modo a haver um desenvolvimento sistemático e necessário desde então. Tudo que não se insere dentro dessa narrativa não é suficientemente contemporâneo e passa a ser menosprezado. Do mesmo modo, é notório o número de artistas que justificam suas produções tendo em vista o que Duchamp fez ou pensou, como se reivindicassem um lugar nessa imensa árvore genealógica da arte contemporânea – a segurança da paternidade.

Quase como uma necessidade patológica, há uma busca intensa para se definir o que é a arte contemporânea, como se o contemporâneo aí fosse um adjetivo para a arte, ao qual os artistas tivessem que adequar suas produções. É preciso ser contemporâneo, estar à altura da sua época, de suas exigências, interesses, desígnios. Se Duchamp, e tantos outros de sua geração, tivessem se preocupado com as exigências de sua época, muito provavelmente isso que orgulhosamente chamamos de arte contemporânea jamais teria acontecido.  Foi justamente contra esse tipo de limitação e autoridade que Duchamp se voltou. Quem são esses juízes que se acham no direito de decidir o que é ou não contemporâneo, tão rapidamente quanto se esquecem de pensar o que é arte? De onde veio esse seu poder de compreender nossa época e decidir o que ela quer ou não quer; o que se deve ou não produzir?

Se há um ensinamento que podemos aprender com Duchamp, sem dúvida, não é o jeitinho contemporâneo de fazer arte, nem tampouco a obediência ao que o status quo espera de nós, mas algo muito mais sutil e desafiador: o aprender a pensar. E pensando, decidir o que e como criar, sem se preocupar com as opiniões e expectativas dos doutores da arte. É possível, assim, de certa forma, imaginar seu desapontamento em ver seu ato criador se cristalizar em doutrina. Talvez, algo dito por Nietzsche, fosse mais ao encontro das expectativas do artista: quando ninguém mais se reunir em torno de meu nome, aí sim estarei dentre vós.


Nenhum comentário:

Postar um comentário