Fonte, Marcel Duchamp, 1917. Réplica 1964 |
Em 1917, a Sociedade dos
Artistas Independentes decidiu realizar uma exposição coletiva cujo lema seria:
“sem júri, sem prêmios”. Algo muito diferente do que acontecia naquela época,
na qual o júri de seleção e as premiações eram os pilares de todos os salões de
arte. Os organizadores da mostra estavam, ao mesmo tempo, ansiosos e orgulhosos para libertar a arte dos velhos tabus da beleza,
do bom gosto, da destreza técnica, da correta imitação da natureza. Nesse
sentido, não haveria necessidade de selecionar os trabalhos – tudo seria aceito.
Tampouco poderia haver algum tipo de prêmio, afinal quem poderia reivindicar a
autoridade de afirmar: isto é melhor do que aquilo? E baseado em que critérios?
Todos os trabalhos estariam em pé de igualdade para a apreciação do público.
Marcel Duchamp, um dos
organizadores da mostra, quis levar o lema da exposição até às últimas
consequências e, assim, também testar o grau de independência e liberdade de
seus colegas, inscrevendo uma obra intitulada A Fonte, sob o pseudônimo de R. Mutt. A obra era, de fato, apenas
um urinol de louça, desses que se compra em lojas especializadas, para serem
instalados e usados em banheiros, com um único diferencial: deveria ser exibida
de cabeça para baixo, invertido, com o nome R. Mutti escrito.
Porém, Duchamp não estava
apenas querendo debochar de seus companheiros, obrigando-os a expor um simples
urinol, uma vez que não haveria nenhuma seleção dos trabalhos inscritos. Nem
tampouco, pretendia ressaltar o aspecto agradável – belo – daquele produto
industrial. Pelo contrário, com aquele objeto, ele buscava desencorajar as
estéticas, questionando a importância que o mundo da arte concedia aos apelos
visuais das obras, isto é, à beleza.
Para Duchamp, havia uma
grande confusão entre arte e beleza a tal ponto que esta passou a ser sinônimo
daquela. Porém, o urinol era um primeiro passo (de fato, o terceiro, pois o
artista já havia apresentado outros dois objetos semelhantes anteriormente,
porém sem ter alcançado a repercussão de sua Fonte) tanto para a revelação desse equívoco, quanto para a sua
superação. O artista pretendia, assim, ampliar o horizonte da arte,
reivindicando novas possibilidades de ação e de sentido.
Diferente de praticamente tudo
o que já fora aceito como uma obra de arte, o urinol não havia sido feito pelas
mãos de um indivíduo, não era constituído por aqueles materiais
tradicionalmente ligados ao fazer artístico, nem tampouco consistia em uma
imitação da natureza, mas era sim um simples produto industrial, feito em
série, uma coisa do mundo real, pronta, à mão – um ready-made. Algo que o artista simplesmente encontrou e escolheu,
não por questões estéticas. No entanto, se Duchamp não estava interessado em
agradar as retinas de seu público, nem tampouco encanta-lo com suas habilidades
técnicas, o que ele pretendia, então? Fazer com que o pensar se sobrepusesse ao
ver, deslocando o interesse pelo aspecto visual para o potencial intelectual da
obra. É por isso que, para Duchamp, mesmo o urinol sendo um produto industrial,
sem nenhum apelo estético, ele é uma obra.
Quando vemos um urinol em um
banheiro, de imediato sabemos o que ele é, sua serventia, e, de fato, se ele
funcionar como deve, mal nos damos conta de sua presença – o objeto é diluído
no uso que dele fazemos. Porém, esse mesmo urinol, posto de cabeça para baixo,
dentro de uma galeria de arte, sob o título A
Fonte, causa estranhamento, ou melhor, espanto. Quando nos espantamos,
somos retirados do modo habitual com que lidamos com as coisas. Estamos diante
de algo que não sabemos, de imediato, o que é nem para que serve. Não sabemos
nem o que pensar sobre isso.
É como se ali na galeria,
fora do contexto habitual desse objeto, estivéssemos, pela primeira vez, diante
do urinol, sendo afetados por sua presença no mundo. Desse espanto, surge um
novo ponto de vista acerca do que um urinol pode ser, principalmente quando começamos
a elaborar possíveis relações entre esta coisa e o título que o artista lhe
concedeu – Fonte. Nesse sentido, sendo
um pouco mais radicais, se levarmos a ideia de Duchamp até às últimas
consequências, esse espanto não fica restrito aquele urinol, mas faz com que
seja ativado todo um questionamento acerca dos mecanismos que fazem com que
algo seja isto e não aquilo: o que é uma coisa? Nesse momento, a realidade
perde um pouco sua solidez e aparece como dúvida, questão, ou melhor,
possibilidade de sentido.
O espanto, que sentimos
diante de um urinol dentro de uma galeria de arte, vai ainda mais longe, pois
além de nos fazer pensar sobre o que é uma coisa, ele nos faz questionar sobre
o que é a própria arte. Apesar de muitas obras ali reunidas para a exposição
pretenderem desafiar o gosto do público, todas se encaixavam dentro de certos
critérios que garantiam seu lugar no mundo da arte – exceto o urinol. Como já
dissemos, Duchamp não produziu esse objeto, mas simplesmente o escolheu. Ele
não é uma pintura, uma escultura, uma gravura, não se encaixa em nenhuma
linguagem artística previamente conhecida; nem se parece com nada que já tenha
sido feito.
Contudo, se eu estou na
galeria, diante desse objeto, talvez ele seja arte; mas, então, se isso é arte,
arte deve ser algo um pouco diferente
do que eu estou acostumada a pensar. Mas, eu realmente já parei para pensar o
que é arte? Ou simplesmente, eu lido com as obras de arte, mais ou menos, como
lido com urinóis em banheiro? Urinol, banheiro, urinar. Obra de arte, galeria, contemplar.
E assim, de fato, meu conhecimento acerca do que é arte provém simplesmente de
um hábito de tomar, assim de imediato, certos objetos como obras de arte? Todo
esse questionamento não estava apenas latente, mas constituía a própria obra.
Com esse trabalho, Duchamp nos
exige algo mais do que apenas nossas retinas, ele reivindica a nossa presença. Saímos,
então, da esfera visual da beleza, e entramos no horizonte do que chama o
pensar. Apesar de parecer algo óbvio, na maioria das vezes, não estamos
presentes nas situações e muito dificilmente nos pomos a pensar. Estamos aqui,
mas com a cabeça lá; parados diante de uma coisa, mas sem de fato percebê-la. Olhando,
parecemos cegos; ouvindo, parecemos surdos – o dito lhes atesta: presentes estão ausentes. Na maioria das vezes,
seguimos no mundo ausentes de nossa própria presença. Impessoais, indiferentes,
alienados.
Nesse sentido, podemos
afirmar que, por si só, A Fonte
simplesmente não é uma obra. Para de fato existir, ela precisa da presença do
espectador – de seu esforço reflexivo. É nesse sentido que a obra é um veículo,
pois ela só está completa quando há esse movimento do pensar. Não que antes dos
ready-mades não houvesse pensamento
na arte, mas ele, de um modo geral, era algo derivado da obra, não a própria
obra. Com isso, Duchamp realiza uma série de operações que viriam a transformar
nossas compreensões da arte, de maneira radical e profunda. Ele desvincula arte
e beleza – algo pode ser considerado uma obra de arte sem ser necessariamente
belo. Elimina a necessidade de o artista ser o autor, isto é, o produtor de sua
obra – ser artista se torna muito mais uma questão de atitude e intenção, do
que de habilidade técnica. Destrói as limitações do que pode ou não ser considerado
obra. Rompe a barreira entre arte, como um deleite para os sentidos, e
pensamento, como algo abstrato. Ver é pensar.
E assim, como um sopro de
liberdade, ele estimulou toda uma nova geração de pessoas a fazer e pensar a
arte fora do discurso hegemônico dos juízes do gosto, dos doutores da estética.
E assim, o que parecia ser muito claramente arte, até o final do século XIX,
sofre uma imensa reviravolta no século XX. Contudo, de certa forma, aquele
gesto desafiador de Duchamp, hoje, parece ter se convertido em um tipo de
doutrina. Algo que, ao contrário de estimular a criação acaba por limitá-la a
determinados modos de fazer e pensar – um fenômeno semelhante ao que a estética
representou para o próprio Duchamp.
Em muitos textos que lemos
sobre arte contemporânea, é possível perceber uma tentativa de definir o que é a arte desde a perspectiva do
caso do urinol. Como se houvesse algum tipo de teleologia, que tenha orientado
o curso dos acontecimentos, de modo a haver um desenvolvimento sistemático e
necessário desde então. Tudo que não se insere dentro dessa narrativa não é
suficientemente contemporâneo e passa a ser menosprezado. Do mesmo modo, é
notório o número de artistas que justificam suas produções tendo em vista o que
Duchamp fez ou pensou, como se reivindicassem um lugar nessa imensa árvore
genealógica da arte contemporânea – a segurança da paternidade.
Quase como uma necessidade
patológica, há uma busca intensa para se definir o que é a arte contemporânea,
como se o contemporâneo aí fosse um adjetivo para a arte, ao qual os artistas
tivessem que adequar suas produções. É preciso ser contemporâneo, estar à
altura da sua época, de suas exigências, interesses, desígnios. Se Duchamp, e
tantos outros de sua geração, tivessem se preocupado com as exigências de sua
época, muito provavelmente isso que orgulhosamente chamamos de arte
contemporânea jamais teria acontecido. Foi
justamente contra esse tipo de limitação e autoridade que Duchamp se voltou.
Quem são esses juízes que se acham no direito de decidir o que é ou não
contemporâneo, tão rapidamente quanto se esquecem de pensar o que é arte? De
onde veio esse seu poder de compreender nossa época e decidir o que ela quer ou
não quer; o que se deve ou não produzir?
Se há um ensinamento que
podemos aprender com Duchamp, sem dúvida, não é o jeitinho contemporâneo de
fazer arte, nem tampouco a obediência ao que o status quo espera de nós, mas algo muito mais sutil e desafiador: o
aprender a pensar. E pensando, decidir o que e como criar, sem se preocupar com
as opiniões e expectativas dos doutores da arte. É possível, assim, de certa
forma, imaginar seu desapontamento em ver seu ato criador se cristalizar em
doutrina. Talvez, algo dito por Nietzsche, fosse mais ao encontro das
expectativas do artista: quando ninguém
mais se reunir em torno de meu nome, aí sim estarei dentre vós.
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