quinta-feira, 16 de abril de 2015

Morte, a companheira que me faz viver

Fernando Pessoa (14)

Entrevista de Fernando Pessoa concedida a Emília Manente 
Revista Universidade nº 1, março de 2013 - Ufes



morte
A companheira que me convida a viver”

Emília Manente


O poeta português Fernando Pessoa escreveu “a morte é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto”. Para entendermos um pouco sobre “essa curva da estrada” de que fala Pessoa, conversamos com um quase seu homônimo, o professor de Filosofia da Ufes Fernando Mendes Pessoa.

O Fernando daqui nasceu no Rio de Janeiro e começou a vida acadêmica estudando psicologia, curso que abandonou no segundo ano, se graduou em ciências sociais, fez dois mestrados, em comunicação e filosofia, doutorado e pós-doutorado em filosofia, e desde 1993 é professor desse departamento na Ufes. Do mestrado até o pós-doutorado os seus estudos se concentram em Martin Heidegger, o filósofo alemão que se tornou mais conhecido após a publicação, em 1927, do livro “Ser e tempo” obra na qual ele analisa a morte humana como um caminho para a descoberta do ser. E foi sobre Heidegger e a morte, passando pela finitude humana e infinitude divina e, principalmente, sobre a vida, que Fernando Mendes Pessoa conversou com a Revista da Ufes.

Uma síntese do que pensa o filósofo você confere a seguir.


Por que estudar Heidegger?

Eu acho que não há como fazer Filosofia hoje em dia sem estudar Heidegger, pois ele faz uma ruptura com toda a tradição filosófica. A Filosofia era uma coisa antes dele e passou a ser outra coisa depois dele. Você pode nem concordar com a crítica que ele faz, mas tem de compreender essa crítica até para discordar dela.

A Filosofia queria ser uma ciência. Na modernidade ela veio se constituindo como um sistema que visa à compreensão objetiva do real. E com isso ela foi se tornando cada vez mais acadêmica, mais teórica, mais conceitual. Mas a Filosofia não é uma doutrina, ela é sempre uma tarefa. E Heidegger vai fazer uma crítica a todo esse procedimento filosófico, trazendo a questão filosófica para a existência, para a questão da morte, da angústia.

O pensamento de Heidegger conduz o homem não para um âmbito teórico, mas para um desafio existencial.  Por isso, sempre falo para os meus alunos: nós vamos estudar Heidegger, portanto a nossa questão não é acadêmica, fazer prova, passar de ano. Nossa questão é existencial. O objetivo desse curso é promover com este estudo uma transformação de nossa compreensão de ser.




O ser

 Heidegger é um pensador que faz uma crítica a toda tradição filosófica, que, segundo ele, substancializou o ser. Ao pensar o ser como essência, ele acabou sendo concebido como aquilo que é eterno, a substância; o que não nasce nem perece, sendo sempre idêntico a si mesmo. Mas, ao contrário de um ente eterno, Heidegger quer mostrar que o ser não é, pois tudo o que é, é ente. Tudo o que é, é coisa, uma realidade. O ser não é coisa nenhuma. O ser se dá em tudo o que é, mas ele enquanto tal é uma vigência, é um aberto, é a possibilidade dos entes serem. Então o ser é a pura manifestação da realidade, sua temporalização. O ser não é um ente pela condição de finitude temporal da existência, pela morte.

Hoje em dia nós homens modernos vivemos numa crise, numa decadência, que é não compreender mais o sentido de ser. Por que nós somos? Qual é o sentido do mundo? Por que estamos vivos? Qual o sentido do casamento? Qual o sentido do filho, do pai, do amigo? Heidegger diz que essa descompreensão é o produto do esquecimento do ser. Por isso, é necessário, nesse império de esquecimento, recolocar a questão do ser, mas em um novo horizonte: para que o homem deixe de se compreender como sujeito, conforme ele veio a se compreender a partir da modernidade, e se compreenda como finitude, existência.


A morte e a finitude

A morte é minha companheira que me convida a viver, ela exige que eu não adie meus planos. Ela é a nossa instância ao mesmo tempo intransponível, intransferível e certa, porém indeterminada. Para Heidegger, a morte é o fundamento da finitude. A infinitude seria o eterno, o que é para sempre, o que não morre, o que permanece sempre igual a si mesmo: Deus. O contrário disso é o finito, que é marcado pelo tempo e não tem eternidade. E Heidegger diz que essa é a nossa condição. Não querer ser finito, não aceitar a nossa condição mortal, é rebeldia. O que estabelece a finitude e o que dá essa constituição ao homem é o fato de ele ser mortal: ao contrário dos Deuses, que são eternos, o homem morre.



Assim como a vida não é o que acontece quando nascemos, a morte também não é o que acontece quando falecemos. Vida e morte são uma tensão de ser e não ser entre nascimento e falecimento. Morte não é falecimento. A morte é o assumir a nossa condição finita. E assumindo a noss­a condição finita, saber que a gente precisa se esforçar para vir a ser, de novo, o que somos. Beethoven compôs a Quinta Sinfonia. Depois disso, ele poderia achar que não precisava fazer mais nada, como se o seu ser estivesse pronto, acabado. Mas não, ele sabia que, para tornar-se músico, o músico que ele foi, precisava ainda compor a sexta, a sétima, a oitava e a nona sinfonias, pois a vida só termina quando acaba.

Heidegger fala o seguinte: só o homem morre. Os animais fenecem, chegam ao fim. Por isso só os homens são mortais. Mas nós homens somos mortais não porque morremos e sim porque sabemos que vamos morrer antes de morrermos. Essa é a angústia do homem, o que o impõe ter que vir a ser o seu próprio ser.



A angústia como libertação

Para Heidegger, a angústia é uma relação com o nada da existência. Ele faz uma distinção entre angústia e medo e fala que o medo possui sempre um referencial a algo. Já a angústia não tem referencial determinado. Ela nos restitui uma tarefa própria, que precisamos cumprir para sermos o que somos. Geralmente a gente não quer saber dela, pois essa tarefa nos promove angústia.  Mas, para Heidegger, a angústia liberta, ela possibilita a apropriação existencial do homem.

Como a vida não está dada, pronta, o homem tem que construir a sua vida assumindo-a. Para Heidegger, assumir significa: “ser para a morte”. E assumir essa condição existencial é assumir a finitude, é assumir, em última instância, não o falecimento, mas a morte.  “A morte é a possibilidade da impossibilidade de toda a possibilidade”.

A imortalidade é a grande ilusão do homem moderno. Mas ele sabe que isso é uma fantasia, que ele adia a apropriação de seu ser para justificar o esquecimento. Com isso, ele posterga tanto a morte, quanto a responsabilidade pela sua vida. O que Heidegger diz é que a morte nos clama à vida. A compreensão da morte é um fator que nos exige uma responsabilidade para com a existência, pois sabemos, diante da morte, que, se nós não fizermos o que precisamos fazer para sermos o que somos, ninguém vai fazer, não vamos ser. Assim, a angústia é uma disposição que nos retira dessa lida impessoal com nosso ser.


Liberdade

Heidegger tem uma compreensão de que a liberdade é um movimento duplo, um negativo e outro positivo. A liberdade negativa é a independência, o “ser livre de”, necessário mas não suficiente para a total liberdade do homem, pois quando temos somente independência, apenas o horizonte aberto do possível, a gente não vem a ser nada; aquele que pode tudo, ainda não realizou nada. Sendo “livre de”, eu preciso agora ser “livre para”, e essa é a liberdade positiva, que engendra destino. Cada um precisa focar o horizonte existencial do possível na realização do que é necessário: ser músico, professor, cientista, jogador de futebol... A possibilidade da existência precisa ser realizada pela necessidade do destino.



A existência

Para o pensamento de Heidegger, essas questões que hoje em dia são vistas como tão bobas, como caráter, verdade, dignidade, ética, tudo isso se torna importante. Não em um sentido moralista, careta, mas num sentido de consumar a existência. A existência é esse presente que a gente não pode ficar bobeando, adiando – precisamos nos apropriar do que somos.


A arte

Uma frase famosa de Heidegger é: “A linguagem é a casa do ser”. E os poetas são os guardiões dessa casa do ser. É muito importante que o mundo contemporâneo, marcado fundamentalmente pela tecnologia, estabeleça um diálogo com a arte, para que o homem possa retomar o sentido existencial de seu ser.


O real é afeto

Nietzsche vai ser o primeiro pensador a fazer uma crítica ao pensamento tradicional, retomando o afeto como uma questão fundamental do pensamento. E Heidegger vai ser o herdeiro dessa crítica. Para eles, afeto não é essa coisa psicológica, subjetiva, individual. A mesma realidade se manifesta de um jeito para quem ama e de outro jeito para quem odeia. Então, não existe a realidade em si e depois a interpretação pelo amor ou pelo ódio. A realidade já se manifesta sempre no amor, no ódio, na angústia, no medo, no tédio, porque o real é afeto.




O cuidado

Não é o homem quem domina, quem tem a posse e é senhor da natureza, da realidade, tal como propõe o projeto moderno. Mas, pelo contrário, o homem tem que cuidar da realidade. Heidegger diz que o homem não é o “Senhor da Terra”, mas “o pastor do ser”, aquele que precisa reunir aquilo cuja tendência é se dispersar. Ele fala que nós não temos o controle sobre nós mesmos, sobre a realidade. Por isso, precisamos cuidar do que somos. Heidegger caracteriza essa nossa essência existencial como cura (Sorge), mas não no sentido de remediar, sarar. Pelo fato de sermos mortais, precisamos cuidar o tempo todo de nossa existência, essa condição perfaz a nossa essência como cura.


A modernidade e as tecnologias

A modernidade tem uma compreensão individualizante do homem, de que a liberdade de um termina onde a do outro começa. Pois, se é assim, nós não temos uma vivência comum de liberdade. Nós estamos confinados a um isolamento, pois, se a minha liberdade termina onde a do outro começa, só podemos ser livres individualmente. A liberdade passa a ser o se dar bem, obter poder individual. Essa é uma ideia equivocada de homem. O homem está decaído nos entes, por isso ele só quer ter. Pois acha que com esse domínio material ele tem um controle existencial, o que é um grande engodo. A finitude, que é a morte, gera uma angústia. E o homem não suporta angústia. Então, ele quer tamponar essa angústia, esse buraco, essa falta, criando tecnologias, novos produtos. E Heidegger faz uma crítica a essa pretensão de eternidade do homem, a essa necessidade de domínio, de asseguramento, tentando reconduzi-lo para a finitude.

Heidegger fala uma coisa muito interessante: a gente acha que a tecnologia é um meio para fins utilitários do homem. E ele diz que isso é balela. O homem não é senhor da técnica. Pelo contrário. A técnica é quem assenhora o homem. Os desenvolvimentos tecnológicos não são orientados por uma necessidade existencial, vital do homem e da terra. Eles são ditados por necessidades tecnológicas. Heidegger diz que a técnica, enquanto tecnologia, disponibiliza o real como matéria-prima e o homem como mão-de-obra. Ou seja, ela já coloca o real na perspectiva da produção. Isso para ele é produzido por um esquecimento de ser.



O luto

O luto é um sentimento de perda. Tudo na vida, por mais que as coisas estejam equivocadas, sempre tem uma forma de você cuidar, dar um jeito. Mas, como a morte é “a possibilidade da impossibilidade de toda a possibilidade”, quando ela se realiza, cessa a possibilidade da cura, a vida acaba. Fica então o sentimento de perda: não há mais a possibilidade de ser, a existência: “eu nunca mais verei aquela pessoa”. Portanto, há a morte para o outro e a morte para si, que são diferentes. A gente lida muito com a morte do outro e tende a esquecer a nossa morte.


Suicídio e Ansiolíticos

Acho que o suicídio é análogo ao ansiolítico. Ambos provêm do não suportar a condição de angústia, a finitude e aí apelar ou para a alienação anestésica ou para a desistência existencial. Eu acho que é covardia, tanto um quanto o outro, no sentido de buscarem facilitar a tarefa da vida, uma fuga existencial. Como Sartre diz: nós somos condenados à liberdade. Sim, a existência é esse ser fora de quem foi expulso do paraíso. Comer o pão com o suor de nossa testa é a nossa liberdade e a nossa miséria. Depende se a gente assume essa tarefa, vindo a ser com gosto o que somos, ou se não suportamos essa nossa condição.



O convite à vida

O destino, para Heidegger, é um chamado para você vir a ser o que o plenifica. E a morte, para ele, tem o sentido de vida. Ela é a plenificação da existência, a sua consumação. Existencialmente, morrer é se entregar para o que você é e ser todo, sem querer se poupar, sem querer se guardar para amanhã. A finitude não está relacionada à idade. A qualquer momento a gente pode deixar de ser, por isso devemos ser sempre plenamente o que somos.


2 comentários:

  1. Excelente abordagem ,muito clara e acessível.Igualmente a palestra no youtube.Obrigado pela exposiçao.

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