quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Entrevista de Gilvan Fogel à Revista Teias

REVISTA TEIAS, v. 14 • n. 32 • 228-238 • maio/ago. 2013 



 ENTREVISTA ‒ PROFESSOR GILVAN FOGEL

Affonso Henrique Vieira da Costa 
Carlos Roberto de Carvalho

Estamos eu, professor Affonso Henrique Vieira da Costa, e o professor Carlos Roberto de Carvalho, nessa bela tarde de sábado, na casa do professor Gilvan Fogel, professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de diversos livros, entre os quais destacamos: Da solidão perfeita, lançado pela editora Vozes em 1999, Conhecer é criar, lançado pela editora Unijuí em 2003, Que é filosofia, lançado pela editora Ideias e Letras em 2009, O homem doente do homem e a transfiguração da dor, lançado pela Mauad X em 2010 e Sentir, ver, dizer – cismando coisas de arte e de filosofia, lançado pela Mauad X em 2012.


Ao chegarmos a sua casa, o professor logo nos convidou para entrar conduzindo-nos até a sala, onde conversamos sobre os mais variados assuntos. Em seguida, nos chamou para o quintal, onde pudemos nos sentar em torno de uma mesinha de ferro, branca e redonda, repleta de pães e frios, além de uma garrafa de vinho. Foi então que a nossa entrevista se iniciou.


Revista Teias – O tema de nossa revista é Educação, filosofia e linguagem: uma experiência no deserto. Gostaríamos, a partir do tema proposto, que você começasse por nos dizer o que, em nossa época marcada pelo desenvolvimento técnico e tecnológico, pode-se entender por “deserto”.

Gilvan Fogel – Mais do que sugerindo, a pergunta já está dizendo o que se pode, talvez o que se deva entender sob deserto: “nossa época marcada pelo desenvolvimento técnico e tecnológico”. Bem, mas por quê? O que é pensado e subpensado, de modo a se ter o direito de se falar desta época como deserto? E o que é deserto? Como entendê-lo, aqui? Este fenômeno, era técnica e deserto, em linguagem de escola, talvez de sacristia, se refere ao fim, no sentido de plenificação ou de cumulação, da metafísica. Nietzsche diria: a vigência do niilismo, do niilismo europeu. Deserto estaria dizendo niilismo. Mas, de novo: o que é isso ― fim (plenificação, cumulação) da metafísica, niilismo europeu? Nietzsche, por exemplo., entende o niilismo como um processo histórico que ele denomina a desvalorização dos valores superiores. Estes valores, isto é, os princípios ou forças de organização, de cunhagem e de sustentação do real ― estes valores superiores ou supremos são, no fundo, os chamados valores cosmológicos, onde cosmo está falando mundo num sentido metafísico ou ontológico. São, pois, os valores de cunhagem e de sustentação de mundo, isto é, da realidade (histórica), que é o Ocidente, a Europa. Por outro lado, e isso é importante, tais valores, paradoxalmente, já são consequência ou obra deste mundo ocidental-europeu, que, portanto, os engendrou, ou criou. E estes valores, que se desfazem ou desmoronam, seriam principalmente: fim (finalidade), unidade e verdade (ser, substancialidade). É um longo e necessário percurso reflexivo-especulativo esclarecer, isto é, descrever e caracterizar, primeiro, que são propriamente tais valores e, segundo, o como e o porquê deste esvaziamento, deste desmoronamento ou desvalorização, que Nietzsche ainda entende como sendo a própria “lógica (istoé, necessidade) da história europeia”, do Ocidente.

Há um outro viés para se caracterizar ou se descrever este mesmo fenômeno histórico visado com a categoria deserto. Este outro viés, presente também em Nietzsche, tem sua grande fonte em Dostoievski, que, junto com Nietzsche e com Heidegger, é o maior pensador deste fenômeno da cultura europeia. Este deserto que é, que torna-se o Ocidente, a Europa, pode ser caracterizado como o fenômeno da transformação do espírito em inteligência ou intelecto. Esta formulação, que é de Heidegger, traduz concisa e incisivamente a compreensão de Dostoievski e de Nietzsche. Tal transformação passa a imperar, a dominar. Intelecto, inteligência, aqui, está dizendo um modo e ser assumido pelo homem, pela humanidade, marcado por uma razão ou uma racionalidade, que é inteligência ou intelecto. Esta é, sobretudo, a razão científica e tecno-científica e que é um modo de ser que estrutura, que organiza toda realidade possível de acordo com os princípios regentes desta racionalidade e que, basicamente, são os princípios de identidade, não contradição e de razão suficiente. Este fundo ou estrato constitui propriamente a razão desta racionalidade ― a razão matemática ou antecipadora de tudo enquanto e como número. Esta estrutura, a vigência ou a dominação deste modo de ser e de pensar, define cálculo. Não cálculo somente como um processo lógico-dedutivo, mas entendendo sob cálculo toda atitude e exigência de, previamente ou por antecipação, estar a criar condições de certeza, isto é, de controle e de asseguramento ou auto-asseguramento ― na antecipação, pela antecipação, pela planificação. Enfim, cálculo como um por antecipação poder e precisar contar com. Isso é deserto, ou seja, a vida, toda a vida sob a regência do cálculo (= inteligência, intelecto), quer dizer, da antecipação, da pré-visão, do planejamento, do controle e do (auto)asseguramento. Isso perfaz, pois, o mundo tecno-científico, o nosso mundo. Este modo de ser constitui ainda o lógos de nossa tecno-logia. Isso, hoje, no sentido filosófico-especulativo, constitui-se na chave para se entender o fenômeno da ocidentalização, da europeização, da planetarização e que, hoje, chegando aos níveis social, político e econômico, é denominado globalização. Esta uniformidade, esta unidimensionalidade (Marcuse) é o deserto europeu. E: “O deserto cresce, o deserto cresce ― ai daquele que guarda em si desertos!”, disse Nietzsche. “Ter” em si deserto é ter, antes, é “ser” a força de desertificação, a gênese de deserto ― isto é, a vontade de cálculo, a sanha, a hybris da inteligência ou do intelecto.

Por outro lado, seria preciso caracterizar espírito ― o que é espírito? Claro, não está em questão, aqui, a defesa e o culto de uma espiritualidade ou de um espiritualismo sentimental e piegas. Sobretudo nada de beataria místico-religiosa. Espírito não está se referindo a alguma entidade, certamente imaterial, localizada em algum lugar mais ou menos nobre do corpo ― na pineal, ou no cérebro, ou no coração, ou no estômago, ou no intestino, ou debaixo da unha. Só à guisa de aceno, espírito estaria se referindo a um modo de ser do homem, da vida ou da existência humana, marcado pelo relacionamento comedido com as coisas, com o real. A questão crucial, aqui, seria caracterizar este comedido ― qual seria a medida deste comedimento? E o que é coisa, real? Tal medida seria, é, a própria espiritualidade do que aqui é denominado espírito. E esta medida seria, sobretudo, a dimensão finita do homem (finitude, limite), ou seja, seu destino marcado por limite e a experiência, isto é, a evidência, do a-byssal (coisa que a inteligência, o cálculo, movidos por sanha, por hybris, não experimentam), ou seja, em última instância, a evidência, como o páthos de uma época, da absoluta insuficiência do princípio de razão suficiente. Aí começa o respeito à vida, às coisas, ao real ― a dimensão do mistério e do sagrado, sem pieguice. Neste elemento, neste médium, faz-se, cresce espírito. Mas muito, tudo!, aqui, teria que ser discutido, esclarecido, explicitado.

Revista Teias – De acordo com a sua resposta, o que seria ter ou estar disposto a uma experiência no deserto? O que seria, neste caso, uma experiência?

Gilvan Fogel – De certo modo, pelo fato de deserto, no sentido exposto, ser o nosso tempo, a nossa hora, não podemos não ser no e mesmo do deserto. Não podemos nos retirar para algum deserto, em mística de fuga, para evitar, para escapar do deserto que somos. Mas o modo como o tipo responsável, isto é, realmente comprometido com sua história e seu tempo, precisa ser no e do deserto é sob a forma de uma real experiência. E real experiência, aqui, quer dizer: entrar, afundar no tempo, que é o seu tempo; na hora, que é a sua hora, a saber, o deserto. Este entrar, afundar, como experiência significa entrar na compreensão, afundar no enraizamento e na gênese de tal fenômeno histórico, que é o nosso. Pensar. A hora é, no e desde o deserto, pensar o deserto ― o niilismo europeu. E: o que é pensar, como pensar? Seguro que não é calcular, que não é coisa de intelecto, de inteligência. Heidegger, mergulhado nisso, fala de pensar como meditar, como “besinnen”, que é entrar no sentido, na força, na gênese, na essência ― pela via do que se disse ser o afundar. Mas, entrar, afundar, pensar, meditar ― este é, precisa ser o caminho de conquista de nosso tempo. Aliás, este é o caminho de conquista de todo e qualquer tempo, de toda e qualquer época. E precisamos sempre conquistar o nosso tempo, pois precisamos sempre nos conquistar ― para sermos, para virmos a ser o que somos, o que precisamos ser, sempre e a cada passo, homens.

A experiência da qual aqui se fala não é nada de experimento ou de experimental. Nada de laboratório, de ensaio, de tentativa de verdade e de erro. Experiência, falando aquele entrar e afundar, fala de ser realmente tocado e tomado por uma, por nossa época. Experiência, aqui, fala, pois, de afeto, de afecção, de páthos. Como isso? Tarefa de nosso tempo, tema de nosso tempo, que é, pela via do pensamento (meditar?), da compreensão, conquistar-se. Uma coisa, porém, me parece segura: não é pela via da ciência, da pesquisa científica. Não será pela via de nenhum decreto, de nenhuma MP governamental. Não será pela via de nenhum engajamento político-social, comunitário. Não será nenhuma decisão econômica, nenhuma liberação de verba... Mas como, então? Deserto é lugar e hora de paciência. De aguentar, de suportar, de atravessar por perpassamento. O nome disso é também paciência. Será, seria esta a via do entrar, do afundar no sentido, no meditar, pelo meditar? Já disseram, em alguma grande obra de nossa literatura, que deus, o divino, o sagrado, é paciência e o contrário é o diabo. Talvez precisemos reivindicar um pouco, para nós, o que Cézanne dizia de si: “Sou lento, pesado e burro”. Nossa época, nosso tempo, é muito inteligente. Nélson Rodrigues, com ironia e causticidade, cobrava de certos diretores muito inteligentes que, em alguma hora, por generosidade para com Shakespeare, para com Ibsen, p.ex., fossem, se tornassem burros, um pouco burros. “Por favor, sejam burros, sejam burros!”, clamava ele. Mas burrice, aqui, é só a paciência de ser sem a pressa do cálculo, sem a pressurosidade da inteligência, e então, talvez, por esta via, entrar no sentido do tempo, afundar no modo de ser da hora. Isso é, isso será uma grande sabedoria.

Revista Teias – É inevitável que, nesse momento, lembremos de Husserl, o pensador que, no início do século XX, escreve uma obra com o título A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Como foi possível que, em meio ao imenso desenvolvimento científico dessa época, se falasse em “crise”? O que permitiu que Husserl falasse em crise já, de alguma maneira, não seria a presença daquilo que Nietzsche anteriormente diagnosticara como sendo niilismo e que determinou o pensamento de Husserl na direção da necessidade de fundamentação destas mesmas ciências?

Gilvan Fogel – É verdade. O que Husserl chamou “crise das ciências europeias” tem, sim, algum parentesco com o que Nietzsche denominou niilismo e o que Heidegger chamou esquecimento de ser. Husserl, na obra citada, observando o estranho que é falar de crise da ciência em plena época de sucesso e de euforia da ciência (sobretudo a segunda metade do século XIX e os albores do XX) ― enfim, Husserl fala de crise, i.é, abalo, principalmente no sentido de “crise do significado vital da ciência”, isto é, do saber, de modo geral ― desenraizamento do saber, da ciência. Isso, segundo Husserl, acontece, em nossa época, face à positividade, à legitimidade assumidas pelo saber (o saber pelo saber, a cultura, a erudição), isto é, sem que se saiba mais de seu enraizamento vital, existencial, dimensão esta que ele denominava “o mundo da vida”. É saber sem saber por quê e para quê saber. Reenraizar a ciência, o saber, de modo geral, seria, precisava ser o esforço de recondução da ciência, do saber, ao mundo da vida, às experiências ou vivências originárias. Tarefa que seria a de criação de uma “ontologia do mundo da vida”. De certo modo, é isso que faz Heidegger com sua analítica existencial ou ontologia fundamental, em Ser e Tempo. Mas Heidegger, Ser e Tempo, é muito mais. A fenomenologia de Husserl não tem o lastro e nem o élan e nem o alcance para pensar o que Nietzsche pensou como niilismo europeu e Heidegger como esquecimento de ser. Husserl, me parece, era ainda um otimista da ciência, da lógica, da razão. Nietzsche diria: “Um homem bom”... Não tanto como Ema Bovary, na sua última palavra, diz que seu marido, Carlos, é “um homem bom”. Mas um homem bom...

Revista Teias – Mas pode-se escapar do niilismo querendo, a todo custo, encontrar um fundamento para a realidade?

Gilvan Fogel – A todo custo buscar fundamento é alimentar a coisa, é conspirar com o chamado niilismo, pois, de fato, o niilismo é fim, morte da “vontade de fundamento”, da “vontade de verdade”, articuladas com intelecto, inteligência e, então, certeza, controle, (auto)asseguramento, enfim, cálculo. Como já se disse, é a experiência, isto é, a evidência, da insuficiência do princípio de razão ― de razão suficiente ou da necessidade de fundamento. Nietzsche, e também Heidegger, fazendo a necropsia da Europa, do Ocidente, constatam o mesmo que o legista, aqui do trópico, descobriu incrustado no cérebro do Quincas Borba ― “um grãozinho de sandice”. A vida, a existência, em última instância, é sandice, estultícia ― “Thorheit”, diz Nietzsche, e não culpa, “Schuld”. É isso que mostra a sua (da vida, da existência) gratuidade, a sua inocência. Que se veja e que se celebre isso sem má consciência, sem culpa, sem desespero. Culpa e desespero ― este é o problema do niilismo, frente à desvalorização dos valores e à perda de fundo, de fundamento. Que isso, no entanto, seja, sim, alegria e festa e não pesquisa...

Revista Teias – Ao falarmos de ciência, conhecimento, sabedoria, vem-nos sempre à mente a figura marcante dos gregos e da constituição de sua paideia. É fato que ao lermos Homero, sentimos uma imensa alegria diante daqueles heróis e de seus feitos que são produzidos a partir de suas virtudes, de suas capacidades mais próprias. Observamos também que a questão acerca do que é a virtude e se ela pode ou não ser ensinada se encontra em Platão e que, além disso, todo um debate em torno do éthos, da situação do homem no mundo e as possibilidades de constituição de seu modo de ser se faz presente de maneira muito forte entre os antigos. No entanto, ao olharmos para a nossa época atual, vislumbramos um total esquecimento destas questões ao lado da perda de sentido em se falar de Educação a partir da compreensão de uma Formação, no sentido mais próprio de paideia, pois ela está voltada hoje para atender às exigências mercadológicas. Diante desse breve quadro, será que é possível, na nossa época histórica, pensar em uma tarefa para o educador que se vê lançado na experiência da desertificação?

Gilvan Fogel – Sim. Se caracterizamos uma época, a nossa, como deserto, então, a tarefa do educador só pode ser no deserto, desde e com o deserto. Deserto é uma grande hora. Uma hora rara. Uma hora em que a vida vem, pode vir toda à tona, à luz. Deserto, evocando situação de limite, é também e principalmente lugar e hora de transformação, de virada, de metanóia, isto é, uma virada ou transformação de medida, de registro da e na vida. Trata-se do abrir-se, do despertar para um outro possível modo de ser, que entra como pontuador, como modulador da vida, da existência. Isso, claro, é algo lento, muito lento. Mas, já se viu e se disse, “Deus é paciência, o contrário é o diabo”.

Deserto evoca esterilidade, aridez, penúria ― dor. A vida finita, a vida pouca do homem, porém, é isso. Logo, isso, a saber, este modo de ser, precisa ser percorrido, atravessado. Atravessado, assumido e não evitado, exorcizado. Evitar, escamotear e exorcizar este fundo e este modo de ser foi o que a metafísica, a ciência sempre fez. No mais recôndito, no mais ermo do deserto, lá onde o deserto é mais deserto ― aí há vida, muita vida. Muita seiva. Aí se acha, sim, o fundo sem fundo da vida como medida do viver, do existir. Isso dá medida, dá contenção ao consumo, à avidez e ao progresso infinitos, pregados e propagados por uma sociedade, mais, por um projeto histórico enlouquecido na e pela cobiça, pela sanha do mais, mais e mais.

Imagino que seja justamente pela via da educação (qual outra poderia ser?!), da paideia, que se entra neste deserto, que se o assume, à medida que se o pensa; que se o vê como tal, realmente se o experimenta. Empreende-se sua travessia e, assim, abre-se a possibilidade de se o transfigurar, quer dizer, fazer dele lugar de moradia e hora, tempo de criação. Mas isso somente se esta educação o for visando transformação, isto é, criação. Toda criação é obra de dor que se transfigura. O deserto é um tempo, é uma hora e um lugar de dor. A educação, me parece, precisa sempre ser e estar voltada para a criação. Claro, criação não se ensina. Criação e liberdade. Liberdade também não se ensina. Uma e outra precisam ser apontadas, acenadas, insinuadas ― sempre como norte. Esse apontar, insinuar, tal como “a divindade que mora em Delfos”, será sempre tarefa do educador. Portanto, tarefa divina. O mito da caverna, de Platão, me parece, é a eterna epígrafe do pensamento e da pedagogia, que quer e que precisa pensar ou ser pensante. A eterna epígrafe ou o eterno moto da educação, da paideia. E isso à medida que é a articulação de ver, isto é, saber, verdade e liberdade. Não liberdade como uma propriedade dada pelos estatutos, assegurada pelos códigos e pelos regimentos, por este ou por aquele parágrafo da promulgação dos direitos humanos e assim reivindicada em tribunal e em cartório, mas liberdade como o abrir-se ou o liberar-se para ― como o despertar para uma atividade criadora, que haverá de dispor para a liberação, para a cunhagem de um próprio, de uma identidade. É uma ou a liberdade para criação. Este ideal, este sonho, precisa ser o sonho e o ideal desta vida, que Calderón de La Barca diagnosticou como sonho. Precisa ser sonho ― norte, meta, querer de educação, de educar.

Uma coisa, porém, me parece certa: o caminho não é o da técnica, isto é, do cálculo, que, hoje, toma conta de nossos projetos educacionais. Ainda que possa parecer estranho e mesmo absurdo, não me parece que devamos educar para o tempo, para a época, para a sociedade, com o intuito também de formar mão de obra para a fornalha técnica, para a caldeira e o caldeirão das exigências de mercado. Jamais educar para o sucesso. É importante que a educação, seguindo o fio condutor do bom pensamento, da boa reflexão, seja um pensar com o tempo contra o tempo. Isso, para arejá-lo, ventilá-lo, revolvê-lo ― isto é, para revolucionar. É claro, isso é uma tese e sei do difícil, do complicado que é tornar isso ação, atividade, prática ou exercício educacional. Mas, se isso for convicção e evidência, far-se-á ação. Mas, volto a dizer, parece-me que o bom caminho jamais se fará pela via da devoção e da beataria técnica. Por outro lado, isso não significa recusar, excluir recursos técnicos extraordinários conquistados. Fala-se aqui da devoção, da beataria técnica, que é quando se acredita nela tal como se acredita em São Judas Tadeu ou Santa Terezinha. Por exemplo, não acredito que o caminho seja o da reprodução e da transmissão, isto é, da informação, do passar adiante de clichês, de estereótipos, de dígitos. Educar não é informar. Informação não é conhecimento, não é saber, não é pensamento, não é criação. Criar não é combinar dados, não é análise combinatória a partir de estereótipos. Informação é dado, é coisa morta. Como ponto de partida, como necessário ponto de partida, precisa-se dela, sim ― para logo perdê-la, abandoná-la, superá-la, de maneira igualmente necessária. Uma época que identifica saber, conhecer (pelo menos conhecer e saber em sentido próprio e originário) com informação não pode ser levada a sério. Pior ainda se isso quiser ser, fundar uma pedagogia. Colocar, por exemplo, um técnico, um economista ou um administrador de empresas para ser o gestor da educação, que assume e, com ar cândido e simplório (ou será mesmo pedante?), diz: “Agora, esta Secretaria vai funcionar como uma empresa” ― isso, me parece, no mínimo estúpido. É a cumplicidade com a mediocridade, é compactuar e resignar-se justo com aquilo que precisa ser questionado, revirado, transfigurado ― superado. Superar, lembremos, não é abolir, eliminar, excluir, recusar pura e simplesmente. Superar é mesmo incluir, incorporar desde outra dimensão, desde outro registro. Isso é, será sempre uma tarefa, uma grande tarefa. Mas não coisa para técnicos, para especialistas, para vesgos.

Revista Teias – É muito comum hoje ouvirmos dos próprios professores a reclamação de que se sentem desestimulados, que a sua tarefa é ingrata, pois os alunos, muitas das vezes, dão às costas para o imenso programa que estão obrigados a cumprir. Mais ainda: seguir o programa tal qual é exigido torna-se para o professor algo repetitivo, onde ele perde a capacidade de criar e recriar os problemas e se lançar nas situações impostas pelo processo de ensino e aprendizagem. Em que medida, ao atender às demandas de uma sociedade que só enxerga a quantidade em detrimento da qualidade, o mercado em detrimento de uma formação total, confundindo, com isso, uma visão empresarial com o sentido de uma educação que vise à liberdade e à autonomia dos jovens, esquecemos do mais simples, a saber, do que é o aprender e do que é o ensinar?

Gilvan Fogel – Me parece, é preciso levar em consideração as condições precárias, desrespeitosas (por muitos e muitos motivos) e, às vezes, até aviltantes em que os professores trabalham ― penso na rede pública oficial, para o segundo grau, principalmente. Considerado isso e feito o desconto, é da natureza humana, muitas vezes, recorrer a choradeiras, lamúrias, desculpas para se esquivar de esforço, de tarefa própria, de responsabilidade. Isso à parte, há, me parece, as dificuldades do tempo, da hora. Estas dificuldades sempre aconteceram, sempre acontecem. Há o lado premente, dramático, que é quando a ou as dificuldades são as nossas ― o calo dói no nosso sapato, a pimenta arde no nosso olho.

Quanto a programas, me parece, isso costuma cercear demais a atividade do professor, sobretudo porque, quase sempre, são preparados e impostos por técnicos, especialistas, o que na maioria dos casos torna-os estúpidos e fora dos gonzos, isto é, descompassados com a realidade da sala de aula e dos alunos ali presentes e atuantes. A cobrança quase sempre, me parece, é visando o quantitativo ou pelo menos reduzindo qualquer avaliação ao quantitativo, uma vez que sempre transformado em dígito. E, por falar em dígito, quanto a obstaculizar ou impedir a criação, a recriação de problemas e de situações, pelo menos grande parte disso computo nos autos da choradeira, no livro da lamúria esquiva.

Quanto ao que você menciona a respeito de visão empresarial da educação e a desconsideração de uma formação visando liberdade e criação ― isso já ficou, de algum modo, considerado em respostas anteriores. O ensinar e o aprender, sobretudo a ideia que ensinar é fazer aprender o aprender, melhor, acenar para isso, insinuar e convidar para este modo de ser ― isso é algo que vai junto com o compromisso de formação ou de educação para a liberdade para a criação, onde o lento, a paciência, precisa ser o tempo, a medida. Pressa, correria, o espírito de nosso tempo (a sanha das/nas avaliações quantitativas), não leva a nada, não gera nada.

Revista Teias – Em nossa pergunta anterior falamos de perda de capacidade de criação e de esquecimento do que é o ensinar e do que é o aprender. É possível relacionar tal perda e esquecimento com o problema da linguagem? Os professores falam da língua a partir da gramática. Sabemos que estudar a gramática é importante, mas às vezes torna-se patente o fato de que, ao priorizar a gramática em detrimento dos textos, o que se ensina é que primeiro vieram as regras e depois a língua. Como inverter essa situação? Como fazer com que professores e alunos possam ter uma experiência de nascividade com a própria palavra poética? Além disso, o professor reclama que o aluno não o entende. Reclama mais ainda que o aluno não escreve direito e nem gosta de ler. Por outro lado, o aluno não compreende o que o professor quer dizer e nem se interessa pelas questões relacionadas, por exemplo, à gramática. O aluno desconhece a sua língua e a linguagem do professor não atinge o coração dos alunos. Como, diante de uma experiência no deserto, podemos pensar em linguagem?

Gilvan Fogel – Eu distinguiria, aqui, dois níveis. Um, de caráter eminentemente especulativo e, por isso, num outro patamar, e que se refere à tua pergunta final, a saber, pensar linguagem desde experiência de deserto. Aqui, agora, vamos deixar isso de lado, ainda que me venha a comichão de dizer que, à medida que linguagem, cada vez mais, é confundida e mesmo identificada com informação, à medida que informação grassa e se alastra como praga ou tiririca dizendo-se a linguagem, ela, a linguagem, definha, murcha, passa a não dizer (mostrar) mais nada. Se informação triunfa, então, triunfa o deserto como nulidade, anulação, aniquilação. Há, sim, este risco.

Creio, em sala de aula, o esforço de retomada da linguagem como “nascividade”, isto é, como dizer e tornar visível (a autêntica poética), precisa ser uma prática e jamais especulação ou rebuscada reflexão metafísica sobre o tema. Esta prática, me parece, consiste em fazer do ensino exercício de experiência e não mero repasse de informação, o entulho, o lixo da comunicação, enquanto transmissão de dados, que acabam virando erudição, cultura, etc., etc. Um exercício de experiência que deve evidenciar o pertencimento de saber e vida, de conhecimento e existência. O saber como compromisso vital ― e não apática e abstrata informação, fazendo do professor moleque de recados da rede. O professor precisa ser esse compromisso vital com o saber, com o conhecimento. Ele precisa irradiar isso ― para não parecer abstrato, de brincadeirinha. Isso em ensinando história, geografia, matemática (sim, matemática!), literatura. Educação precisa também de muita literatura, de muita fantasia ― da grande literatura, não de coisas pequenas, melosas, adocicadas, populescas. Educação precisa de arte, de acenos e insinuações para a arte ― mais do que informações e dados, ela precisa de muitas inutilidades necessárias, que são as coisas da arte e da criação. Este é um caminho espontâneo de atravessamento e de superação do deserto.

Um segundo aspecto da pergunta é o que diz respeito à possível reclamação, por parte do professor, que o aluno não entende, não lê, não escreve ou lê muito pouco e escreve muito mal, também não entende o que lê e o que se escreve. Isso, me parece, é uma censura, uma crítica ou a constatação, quando não um desabafo, frente a um estado de fato, principalmente, na escola pública e ao público que o professor encontra na escola pública. Isso, claro, é o deserto particular do nosso professor. Parece-me, é o problema crônico, encruado de uma situação social, sócio-econômica, degradante, onde impera o misturado, a promiscuidade de todos os tipos, modos e níveis ― se isso não for uma redundância. Penso em casos e mais casos onde num cômodo de vinte ou trinta metros quadrados vivem dez, quinze pessoas. Que se pode esperar, nesta situação, de uma criança ou de um adolescente, que leia, que estude, que escreva, que cumpra minimamente com suas tarefas escolares?! Todo e qualquer homem, claro, criança, adolescente, precisa ter um canto, um cantinho, para ser/estar só. Todo e qualquer homem precisa de um mínimo coeficiente de isolamento e de solidão para vir a ser e fazer o que quer que seja com espírito. Isso faz parte do respeito e da dignidade humana. Sem isso não há vida, vida humana, entenda-se, espírito. Creio que, nesta situação promíscua, de modo menor, maior ou em dimensão extrema, encontra-se uma boa, mesmo uma grande parte do contingente de alunos da escola pública. Com este deserto o professor se depara, precisa se deparar. E aqui, assim, o caso não é especulativo, metafísico... Aqui, no caso, na hora, ao professor cabe encarar, ralar...

Revista Teias – Sabemos que o ensino de Filosofia tornou-se obrigatório nas escolas. Ele é dado nos três anos do Ensino Médio. Embora tenhamos ainda um material de trabalho muito escasso ao lado de pouquíssimas aulas dadas semanalmente, o que a Filosofia poderia produzir de melhor nesse momento em que pensamos a articulação de deserto, experiência, educação e linguagem?

Gilvan Fogel – Acho boa, acho positiva a presença da filosofia na escola, no segundo grau. É importante, é decisivo, porém, que ela não vire comunicação, informação, verniz cultural ― balangandã, adereço. Que ela não vire bula, receita no esquema pergunta-resposta, múltipla escolha, etc. Se for assim, melhor não ter. Também não sobrecarregar, por exemplo, com política e ética, as modas, o frisson e a sanha da hora. Futilidades. Que o seu ensino seja um simples e real entrar nos problemas desde os próprios textos filosóficos, dos próprios autores. Nada de intermediações e facilitações falsas, charlatães. Títulos (isto é, compreensões orientadoras) como “Filosofia para jovens”, “Filosofia para adolescentes”, talvez já haja alguma “Filosofia para afro descendentes”! ― isso é no mínimo bobagem. Não entender das coisas, não ser do ramo. Parece-me, é possível e necessário pegar pequenos textos dos próprios filósofos. Há tais textos e tais autores. Textos simples, sóbrios, intensos, essenciais, desde Platão, Aristóteles, passando pelos medievais, pelos modernos e contemporâneos, que podem, que devem ser usados, explorados. O trabalho, claro, já começa com a escolha cuidadosa, parcimoniosa destes textos/autores. Veja, não estou dizendo que se deva sufocar alunos, por exemplo, com o Parmênides, de Platão; com a Ciência da Lógica, de Hegel; com a Dedução Transcendental, de Kant. Isso seria descabido, estéril, estúpido. Mas que se faça filosofia de modo simples, radical, intenso. Repito, isso é possível e necessário. Ocupar-se simples e intensamente, por exemplo, de Platão, que oferece muita coisa para tal. Penso em textos, textos-temas. Platão, faça-se constar, é muito mais contemporâneo do que qualquer pós-moderno, pós-metafísico ou ultra-hiper-pós do mercado, da oferta, da hora. Assim, a filosofia vai realmente conspirar contra a conspiração do deserto. Que ela, assim, nesta direção, “seja um sim numa sala negativa” e que ela infeccione de vida a morte ― “mesmo que seja uma vida, assim, Severina”, nessa anemia, que é a voracidade do mercado, a avidez da informação, do sucesso, enfim, a sofreguidão da técnica e do cálculo no ensino.

Revista Teias – Por fim, o que você teria a dizer para os jovens que hoje ingressam na carreira do magistério e se deparam com as questões anteriormente comentadas?

Gilvan Fogel – A pergunta quase me enrubesceu. Ela insinua que eu seja um cara experiente, maduro, sensato e conselheiro. Um consultor! Não sou nada disso. Sou, sim, um professor, mas não um educador. Isso é coisa grande e rara ― muito rara. Não são títulos acadêmicos, láureas, que fazem um educador. Tenho uma deficiência, uma deformação imensurável: jamais dei aula no segundo grau. Acho isso uma deformação na minha vida de professor. Tudo que falo, que falei, no que se refere à educação, é só opinião. Opinião e palpite. Mas, agora, desafiado, posso fazer as seguintes ponderações ao jovem calouro ― ao recruta, ao noviço, ao nubente: “Você vai entrar nessa? Cuidado, pode ser uma fria! É preciso gostar. Se gosta, entra, faça. Aplique-se, entregue-se. O gosto ― esta é a única medida, o único critério. Fora ou além disso, isto é, da alegria de corresponder ao gosto, não espere nada, nenhuma recompensa, nenhum bônus. Bem, a partir daí, uma vez ingressado no ramo, completo: aguenta firme! Segura na brocha, porque estão tirando a escada!”

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