quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Trecho de "O Nascimento da tragédia" - Tentativa de autocrítica




O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA 
ou 
HELENISM0¹ E PESSIMISMO 


TENTATIVA DE AUTOCRÍTICA 


1. 

    Seja o que for aquilo que possa estar na base deste livro problemático, deve ter sido uma questão de primeira ordem e máxima atração, ademais uma questão profundamente pessoal - testemunho disso é a época em que surgiu e a despeito da qual surgiu, ou seja, a excitante época da Guerra Franco-Prussiana, de 1870-1. Enquanto o troar da batalha de Wórth se espalhava por sobre a Europa, o cismador de idéias e amigo de enigmas, a quem coube a paternidade deste livro, achava-se, algures em um recanto dos Alpes, muito entretido em cismas e enigmas e, por conseqüência, muito preocupado e despreocupado ao mesmo tempo, anotando os seus pensamentos sobre os gregos - núcleo deste livro bizarro e mal acessível a que será dedicado este tardio prefácio (ou posfácio). Algumas semanas depois, e ele próprio encontrava-se sob os muros de Metz, ainda não liberto dos pontos de interrogação que havia aposto à pretensa "serenojovialidade"2 dos gregos e da arte grega, até que, por fim, naquele mês de profunda tensão em que se deliberava sobre a paz de Versalhes, também ele chegou à paz consigo próprio e, lentamente, enquanto convalescia em casa, de uma enfermidade contraída em campanha, constatou consigo mesmo, de maneira definitiva, "o nascimento da tragédia a partir do espírito da música''. - Da música? Música e tragédia? Gregos e música de tragédia? Gregos e obras de arte do pessimismo? A mais bem-sucedida, a mais bela, a mais invejada espécie de gente até agora, a que mais seduziu para o viver, os gregos - como? Precisamente eles tiveram necessidade da tragédia? Mais ainda - da arte? Para que - arte grega? ... 
    Adivinha-se em que lugar era colocado, com isso, o grande ponto de interrogação sobre o valor da existência. Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados - como ele o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas as aparências, entre nós, homens e europeus "modernos"? Há um pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência? Há talvez um sofrimento devido à própria superabundância? Uma tentadora intrepidez do olhar mais agudo, que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em que pode pôr à prova a sua força? Em que deseja aprender o que é "temer"? O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia? - E, de outra parte: aquilo de que a tragédia morreu, o socratismo da moral, a dialética, a suficiência e a serenojovialidade do homem teórico - como? Não poderia ser precisamente esse socratismo um signo de declínio, do cansaço, da doença, de instintos que se dissolvem anárquicos? É a "serenojovialidade grega" do helenismo posterior, tão-somente, um arrebol do crepúsculo? A vontade epicúria contra o pessimismo, apenas uma precaução do sofredor? E a ciência mesma, a nossa ciência - sim, o que significa em geral, encarada como sintoma da vida, toda a ciência? Para que, pior ainda, de onde - toda a ciência? Como? É a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatória ante o pessimismo? Uma sutil legítima defesa contra - a verdade? E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade? E, amoralmente, uma astúcia? ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua - ironia? 


2. 

  O que consegui então apreender, algo terrível e perigoso, um problema com chifres, não necessariamente um touro, por certo, em todo caso um novo problema: hoje eu diria que foi o problema da ciência mesma - a ciência entendida pela primeira vez como problemática, como questionável. Mas o livro em que se extravasava a minha coragem e a minha suspicácia juvenis - que livro impossível teria de brotar de uma tarefa tão contrária à juventude! Edificado a partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte - pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência - um livro talvez para artistas dotados também de capacidades analíticas e retrospectivas (quer dizer, um tipo excepcional de artistas, que é preciso buscar e que às vezes nem sequer se gostaria de procurar ... ), cheio de inovações psicológicas e de segredos de artistas, com uma metafísica de artista no plano de fundo, uma obra de juventude cheia de coragem juvenil e de melancolia juvenil, independente, obstinadamente autônoma, mesmo lá onde parece dobrar-se a uma autoridade e a uma devoção própria, em suma, uma obra das primícias, inclusive no mau sentido da palavra, não obstante o seu problema senil, acometida de todos os defeitos da mocidade, sobretudo de sua "demasiada extensão", de sua "tempestade e ímpeto" [Sturm und Drang]3: de outra parte, dado o seu êxito (em especial junto ao grande artista Richard Wagner, a quem se dirigia como para um diálogo), um livro comprovado, quer dizer, um livro tal que, em todo caso, satisfez "os melhores de seu tempo"4. Já por isso somente deveria ser tratado com certa consideração e discri­ção; ainda assim, não quero encobrir de todo o quanto ele me parece agora desagradável, quão estranho se me apresenta agora, dezesseis anos depois - ante um olhar mais velho, cem vezes mais exigente, porém de maneira alguma mais frio, nem mais estranho àquela tarefa de que este livro temerário ousou pela primeira vez aproximar-se - ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida ... 


3. 

    Dito mais uma vez, hoje ele é para mim um livro impossí­vel - acho-o mal escrito, pesado, penoso, frenético e confuso nas imagens, sentimental, aqui e ali açucarado até o feminino, desigual no tempo [ritmo], sem vontade de limpeza lógica, muito convencido e, por isso, eximindo-se de dar demonstrações, desconfiando inclusive da conveniência do demonstrar, como livro para iniciados, como "música" para aqueles que foram batizados na música, que desde o começo das coisas estão ligados por experiências artísticas comuns e raras, como signo de reconhecimento para parentes de sangue in artibus [nas artes] - um livro altaneiro e entusiasta, que de antemão se fecha ao profanum vulgus (vulgo profano] dos "homens cultos" mais ainda do que ao "povo", mas que, como seu efeito demonstrou e demonstra, deve outrossim saber muito bem como procurar seus co-entusiastas e atraí-los a novas trilhas ocultas e locais de dança. Aqui falava em todo caso - isto se confessava com curiosidade e, não menos, com aversão - uma voz estranha, o discípulo de um "deus desconhecido" ainda, que por enquanto se escondia sob o capucho do douto, sob a pesadez e a rabugice dialética do alemão, inclusive sob os maus modos do wagneriano; havia aqui um espírito com estranhas, ainda inominadas, necessidades, uma memória regurgitante de perguntas, experiências e coisas ocultas, à cuja margem estava escrito o nome de Dionísio mais como um ponto de interrogação; aqui falava - assim se dizia com desconfiança - uma espécie de alma mística e quase menádica, que, de maneira arbitrária e com esforço, quase indecisa sobre se queria comunicar-se ou esconder-se, como que balbuciava em uma língua estranha. Ela devia cantar, essa "nova alma" - e não falar! É pena que eu não me atrevesse a dizer como poeta aquilo que tinha então a dizer: talvez eu pudesse fazê-lo! Ou, pelo menos, como filólogo - pois ainda hoje, para o filólogo, neste domínio, resta tudo a descobrir e a desenterrar! Acima de tudo o problema de que aqui há um problema - e de que os gregos, enquanto não tivermos uma resposta para a pergunta: "O que é dionisíaco?", continuam como antes inteiramente desconhecidos e inimagináveis ... 


4.
    
    Sim, o que é dionisíaco? - Neste livro há uma resposta a essa pergunta - um "sabedor" fala aqui, o iniciado e discípulo de seu deus. Talvez eu falasse agora com mais precaução e com menos eloquência acerca de uma questão psicológica tão difícil como é a origem da tragédia entre os gregos. Uma questão fundamental é a relação dos gregos com a dor, seu grau de sensibilidade - esta relação permaneceu igual ou se inverteu? -, aquela questão de se realmente o seu cada vez mais forte anseio de beleza, de festas, de divertimentos, de novos cultos brotou da carência, da privação, da melancolia, da dor. Estabelecido que precisamente isso tenha sido verdade - e Péricles (ou Tucídides)5 no-lo dá a entender na grande oração fúnebre - de onde haveria de provir o anseio contraposto a este, que se apresentou ainda antes no tempo, o anseio do feio, a boa e severa vontade dos antigos helenos para o pessimismo, para o mito trágico, para a imagem de tudo quanto há de terrível, maligno, enigmático, aniquilador e fatídico no fundo da existência - de onde deveria então originar-se a tragédia? Porventura do prazer, da força, da saúde transbordante, de uma plenitude demasiado grande? E que significado tem então, fisiologicamente falando, aquela loucura de onde brotou a arte trágica assim como a cômica, a loucura dionisíaca? Como? A loucura não será por acaso o sintoma da degeneração, do declínio, de uma cultura bastante tardia? Há porventura - uma pergunta para alienistas - neuroses da sanidade? Da juventude e da juvenilidade de um povo? Para onde aponta aquela síntese de deus e bode no sátiro? Em virtude de que vivência de si mesmo, de que ímpeto, teve o grego de imaginar como um sátiro o entusiasta e homem primitivo dionisíaco? E no que se refere à origem do coro trágico: houve porventura, naqueles séculos em que o corpo grego florescia e a alma grega estuava de vida, arrebatamentos endêmicos? Visões e alucinações que se comunicavam a comunidades inteiras, a assembleias cultuais inteiras? Como? E se os gregos tivessem, precisamente em meio à riqueza de sua juventude, a vontade para o trágico e fossem pessimistas? Se fosse justamente a loucura, para empregar uma palavra de Platão,6 que tivesse trazido as maiores bênçãos sobre a Hélade? E se, por outro lado e ao contrário, os gregos, precisamente nos tempos de sua dissolução e fraqueza, tivessem se tornado cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais teatrais, bem como mais ansiosos por lógica e logicização, isto é, ao mesmo tempo "mais serenojoviais" e "mais científicos"? Como? Poderia porventura, a despeito de todas as "idéias modernas" e preconceitos do gosto democrático, a vitória do otimismo, a racionalidade predominante desde então, o utilitarismo prático e teó­rico, tal como a própria democracia, de que são contemporâneos - ser um sintoma da força declinante, da velhice abeirante, da fadiga fisiológica? E precisamente não - o pessimismo? Foi Epicuro um otimista - precisamente enquanto sofredor? - Vê-se que é todo um feixe de difíceis questões que este livro carregou - acrescentemos ainda a sua questão mais difícil! O que significa, vista sob a óptica da vida - a moral? ... 


5. 

   Já no prefácio a Richard Wagner é a arte - e não a moral - apresentada como a atividade propriamente metafísica do homem; no próprio livro retoma múltiplas vezes a sugestiva proposição de que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético. De fato, o livro todo conhece apenas um sentido de artista e um retro-sentido [Hintersinnf]7 de artista por trás de todo acontecer - um ''deus'', se assim se deseja, mas decerto só um deus-artista completamente inconsiderado e amoral, que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer aperceber-se de seu idêntico prazer e autocracia, que, criando mundos, se desembaraça da necessidade [Not] da abundância e superabundância, do sofrimento das contraposições nele apinhadas. O mundo, em cada instante a alcançada redenção de deus, o mundo como a eternamente cambiante, eternamente nova visão do ser mais sofredor, mais antitético, mais contraditório, que só na aparência [Schein]8 sabe redimir-se: toda essa metafísica do artista pode-se denominar arbitrária, ociosa, fantástica - o essencial nisso é que ela já denuncia um espírito que um dia, qualquer que seja o perigo, se porá contra a interpretação e a significação morais da existência. Aqui se anuncia, quiçá pela primeira vez, um pessimismo "além do bem e do mal",9 aqui recebe palavra e fórmula aquela "perversidade do modo de pensar" contra a qual Schopenhauer não se cansa de arremessar de antemão as suas mais furiosas maldições e relâmpagos - uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a pró­ pria moral ao mundo da aparência e não apenas entre as "aparências" ou fenômenos [Erscheinungen]10 (na acepção do terminus technicus idealista), mas entre os "enganos", como aparência, ilusão, erro, interpretação, acomodamento, arte. Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silêncio com que no livro inteiro se trata o cristianismo - o cristianismo como a mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade chegou até agora a escutar . Na verdade, não existe contraposição maior à exegese e justificação puramente estética do mundo, tal como é ensinada neste livro, do que a doutrina cristã, a qual é e quer ser somente moral, e com seus padrões absolutos, já com sua veracidade de Deus, por exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira isto é, nega-a, reprova-a, condena-a. Por trás de semelhante modo de pensar e valorar, o qual tem de ser adverso à arte, enquanto ela for de alguma maneira autêntica, sentia eu também desde sempre a hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa aversão contra a própria vida: pois toda a vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro. O cristianismo foi desde o início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença em "outra" ou "melhor" vida. O ódio ao "mundo", a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-decá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso, para chegar ao "sabá dos sabás" - tudo isso, não menos do que a vontade incondicional do cristianismo de deixar valer somente valores morais, se me afigurou sempre como a mais perigosa e sinistra de todas as formas possíveis de uma "vontade de declínio' ', pelo menos um sinal da mais profunda doença, cansaço, desânimo, exaustão, empobrecimento da vida - pois perante a moral (especialmente a cristã, quer dizer, incondicional), a vida tem que carecer de razão de maneira constante e inevitável, porque é algo essencialmente amoral - a vida, apressa sob o peso do desdém e do eterno não, tem que ser sentida afinal como indigna de ser desejada, como não-válida em si. A moral mesma - como? A moral não seria uma "vontade de negação da vida" , um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em conseqüência, o perigo dos perigos? ... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade - pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? - com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca.


6. 

    Entende-se em que tarefa ousei tocar já com este livro? ... Quanto lamento agora que não tivesse então a coragem (ou a imodéstia?) de permitir-me, em todos os sentidos, também uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão pró­prios - que eu tentasse exprimir penosamente, com fórmulas schopenhauerianas e kantianas, estranhas e novas valorações, que iam desde a base contra o espírito de Kant e Schopenhauer, assim como contra o seu gosto! O que pensava, afinal, Schopenhauer sobre a tragédia? "O que dá a todo o trágico o empuxo peculiar para a elevação"- diz ele em O mundo como vontade e representação, II, p. 495,11- "é o surgir do conhecimento de que o mundo, a vida não podem proporcionar verdadeira satisfação e portanto não são dignos de nosso apego: nisto consiste o espírito trágico - ele conduz à resignação'', quão diversamente falava Dionísio comigo!, quão longe de mim se achava justamente então todo esse resignacionismo! - Mas há algo muito pior no livro, que agora lamento ainda mais do que ter obscurecido e estragado com fórmulas schopenhauerianas alguns pressentimentos dionisíacos: a saber, que estraguei de modo absoluto o grandioso problema grego, tal como ele me havia aparecido, pela ingerência das coisas mais modernas ! Que apensei esperanças lá onde nada havia a esperar, onde tudo apontava, com demasiada clareza, para um fim próximo! Que comecei a fabular, com base nas últimas manifestações da música alemã, a respeito do "ser alemão", como se ele estivera precisamente a ponto de descobrir-se e reencontrar-se a si mesmo - e isto em uma época em que o espírito alemão, que não muito tempo antes havia tido ainda a vontade de domínio sobre a Europa, a força de guiar a Europa, justamente abdicava disso por disposição testamentária e de maneira definitiva e, sob o pomposo pretexto da fundação de um Reich [império], realizava a sua passagem para a mediocrização acomodante, para a democracia e para as idéias "modernas"! De fato, entrementes aprendi a pensar de uma forma bastante desesperan­çada e dasapiedada acerca desse "ser alemão", assim como da atual música alemã, a qual é romantismo de ponta a ponta e a menos grega de todas as formas possíveis de arte: além do mais, uma destroçadora de nervos de primeira classe, duplamente perigosa em um povo que gosta de bebida e honra a obscuridade como uma virtude, isto é, em sua dupla propriedade de narcótico inebriante e ao mesmo tempo obnubilante. - À parte, está claro, de todas as esperanças apressadas e de todas as aplicações errôneas às coisas do presente, com as quais estraguei o meu primeiro livro, permanece o grande ponto de interrogação dionisíaco, tal como nele foi colocado, também no tocante à música: como deveria ser composta uma música que não mais tivesse uma origem romântica, como a música alemã - porém dionisíaca? ... 


7. 

    Mas, meu caro senhor, o que é romântico no mundo, se o vosso livro não é romântico? Será que o ódio profundo contra o "tempo de agora", a "realidade" e as "idéias modernas" pode ser levado mais à frente do que ocorreu em vossa metafísica do artista, a qual prefere acreditar até no Nada, até no demônio, a acreditar no "Agora"? Não estará zumbindo, por baixo de toda a vossa contrapontística arte vocal e sedução dos ouvidos, um baixo profundo de cólera e de prazer destruidor, uma furiosa determinação contra tudo o que é "agora", uma vontade que não está muito longe do niilismo prático e que parece dizer "é preferível que nada seja verdadeiro do que vós terdes razão, do que vossa verdade ficar com a razão!"? Escutai vós mesmos, senhor pessimista e deificador da arte, mas com ouvidos descerrados, uma única passagem escolhida de vosso livro, aquela que fala, não sem eloquência, dos matadores de dragões, a qual pode ter o som capcioso do capturador de ratos12 para ouvidos e corações jovens. Como? Não é esta porventura a autêntica e verdadeira profissão de fé dos românticos de 1830, sob a máscara do pessimismo de 1850? Atrás da qual também já se preludia o usual finale dos românticos - quebra, desmoronamento, retorno e prosternação ante uma velha fé, ante o velho Deus ... Como? O vosso livro pessimista não é ele mesmo uma peça de anti-helenismo e de romantismo, ele pró­prio algo "tão inebriante quanto obnubilante", em todo caso um narcótico, até mesmo uma peça de música, de música alemã? Mas, ouça-se: "Imaginemos uma geração vindoura com esse destemor de olhar, com esse heróico pendor para o descomunal, imaginemos o passo arrojado desses matadores de dragões, a orgulhosa temeridade com que dão as costas a todas as doutrinas da fraqueza pregadas pelo otimismo, a fim de 'viver resolutamente' na completude e na plenitude: não seria necessário que o homem trágico dessa cultura, em sua autoeducação para o sério e para o horror, devesse desejar uma nova arte, a arte do consolo metafísico, a tragédia como a Helena a ele devida, e tivesse de exclamar com Fausto: 

E não devo eu, violência de ansiedade incontida, 
De todas, trazer esta única figura, para a vida?13 

"Não seria necessário?" ... Não, três vezes não, ó jovens românticos! Não seria necessário! Mas é muito provável que isso finde assim, que vós assim findeis, quer dizer, "consolados", como está escrito, apesar de toda a auto-educação para o sério e o horror, "metafisicamente consolados", em suma, como findam os românticos cristãmente ... Não! Vós deveríeis aprender primeiro a arte do consolo deste lado de cá - vós deveríeis aprender a rir, meus jovens amigos, se todavia quereis continuar sendo completamente pessimistas; talvez, em conseqüência disso, como ridentes mandeis um dia ao diabo toda a "consoladoria" metafísica-e a metafísica, em primeiro lugar! Ou, para dizê-lo com a linguagem daquele trasgo dionisíaco, que se chama Zaratustra
   "Levantai vossos corações, ó meus irmãos, alto, mais alto! E não esquecei tampouco as pernas! Levantai também as vossas pernas, vós, bons dançarinos, e melhor ainda: erguei-vos também sobre a cabeça! 
   "Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: eu mesmo coloquei esta coroa sobre a minha cabeça, eu mesmo declarei santo o meu riso. Não encontrei nenhum outro, bastante forte pard isto, hoje. 
    "Zaratustra, o dançarino; Zaratustra, o leve, que acena com as asas, pronto a voar, acenando a todos os pássaros, preparado e pronto, um bem-aventurado leviano: 
   "Zaratustra, o verodizente; Zaratustra, o verorridente; não um impaciente, não um incondicional, mas um que ama os saltos e os saltos laterais: eu mesmo coloquei esta coroá sobre a minha cabeça!         "Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: a vós, meus irmãos, eu vos atiro esta coroa! O riso eu declarei santo: vós, homens superiores, aprendei - a rir!" (Assim falou Zaratustra, quarta parte). 



NOTAS DO TRADUTOR 

(1) Griechtum é o termo usado por Nietzsche nesse subtítulo para a segunda edição de O nascimento da tragédia. Mas, considerando-se que "grecismo" tem sido aplicado de preferência para designar o idiomatismo grego, recorreu-se ao sinônimo "helenismo", apesar de ele trazer uma conotação que vai além da Grécia concretamente. 

(2) Heiterkeit: clareza, pureza, serenidade, jovialidade, alegria, hilaridade são as várias acepções em que a palavra é empregada em alemão. Quando se trata da griechische Heiterkeit, a tradução mais freqüente tem sido "serenidade grega". Entretanto, a versão parece insuficiente e redutora por suprimir as demais remessas do termo. Por isso optou-se por um acoplamento de dois sentidos principais, utilizando-se sempre, nesta transposição do texto de Nietzsche, a forma "serenojovial'', "serenojovialidade". 

(3) Movimento pré-romântico alemão, na segunda metade do século XVIII. Integrado por uma geração de jovens autores, propunha-se a emancipar a literatura teuta e constitui a primeira manifestação coletiva do romantismo europeu. A denominação proveio de uma peça homônima de F. M. Klinger, um dos integrantes do grupo do qual fizeram parte, entre outros, Goethe, Herder, Lenz e Schiller. 

(4) Referência a Schiller, nos versos do prólogo a Wallenstein

(5) História da Guerra do Peloponeso, n, 41. 

(6) Fedro, 244a. 

(7) Apesar de o prefixo "retro" indicar em geral um movimento "para trás", também consigna o estar "atrás'', nexo em que é utilizado aqui por corresponder exatamente ao alemão hinter

(8) Por significar a um só tempo aparência, brilho e ilusão, Schein converte-se num dos principais semas no urdimento fenomenológico e metafísico do discurso nietzschiano em O nascimento da tragédia. Não havendo em português um vocábulo correspondente, escolheu-se o de sentido mais abrangente para o caso. 

(9) O tema é desenvolvido por Nietzsche em Além do bem e do mal.  

(10) A tradução técnica para o português seria "fenômeno". Mas a verbalização como "aparência" é fundamental para a caracterização do universo de idéias proposto pelo texto. 

(11) As citações de Nietzsche provêm da edição de 1873 de]ulius Frauenstadt. 

(12) Verjanglicb-rattesnjangeriscb, construção quase intransponível. Traduzi-la por "insidioso e enganador", ou por outras formas equivalentes, como tem sido feito, não só em português, põe a perder a ironia da expressão nietzschiana, que se articula a partir das palavras "ratos" e "capturante" como referentes metafóricos da ação do flautista de Hamelin, segundo a lenda popular alemã. 

(13) Fausto, versos 7438-7439. 

Para baixar o PDF completo, acesse: O nascimento da tragédia

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