O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA
ou
HELENISM0¹ E PESSIMISMO
TENTATIVA DE AUTOCRÍTICA
1.
Seja o que for aquilo que possa estar na base deste livro
problemático, deve ter sido uma questão de primeira ordem
e máxima atração, ademais uma questão profundamente pessoal
- testemunho disso é a época em que surgiu e a despeito
da qual surgiu, ou seja, a excitante época da Guerra Franco-Prussiana,
de 1870-1. Enquanto o troar da batalha de Wórth
se espalhava por sobre a Europa, o cismador de idéias e amigo
de enigmas, a quem coube a paternidade deste livro,
achava-se, algures em um recanto dos Alpes, muito entretido
em cismas e enigmas e, por conseqüência, muito preocupado
e despreocupado ao mesmo tempo, anotando os seus
pensamentos sobre os gregos - núcleo deste livro bizarro
e mal acessível a que será dedicado este tardio prefácio (ou
posfácio). Algumas semanas depois, e ele próprio encontrava-se
sob os muros de Metz, ainda não liberto dos pontos de
interrogação que havia aposto à pretensa "serenojovialidade"2 dos gregos e da arte grega, até que, por fim, naquele
mês de profunda tensão em que se deliberava sobre a paz
de Versalhes, também ele chegou à paz consigo próprio e,
lentamente, enquanto convalescia em casa, de uma enfermidade
contraída em campanha, constatou consigo mesmo, de
maneira definitiva, "o nascimento da tragédia a partir do espírito
da música''. - Da música? Música e tragédia? Gregos
e música de tragédia? Gregos e obras de arte do pessimismo?
A mais bem-sucedida, a mais bela, a mais invejada espécie de gente até agora, a que mais seduziu para o viver, os gregos
- como? Precisamente eles tiveram necessidade da tragédia?
Mais ainda - da arte? Para que - arte grega? ...
Adivinha-se em que lugar era colocado, com isso, o grande
ponto de interrogação sobre o valor da existência. Será o
pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína,
do fracasso, dos instintos cansados e debilitados - como ele
o foi entre os indianos, como ele o é, segundo todas as aparências,
entre nós, homens e europeus "modernos"? Há um
pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o
duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido
ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude
da existência? Há talvez um sofrimento devido à própria superabundância?
Uma tentadora intrepidez do olhar mais agudo,
que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em
que pode pôr à prova a sua força? Em que deseja aprender
o que é "temer"? O que significa, justamente entre os gregos
da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa,
dele nascida, a tragédia? - E, de outra parte: aquilo de
que a tragédia morreu, o socratismo da moral, a dialética, a
suficiência e a serenojovialidade do homem teórico - como?
Não poderia ser precisamente esse socratismo um signo de
declínio, do cansaço, da doença, de instintos que se dissolvem
anárquicos? É a "serenojovialidade grega" do helenismo
posterior, tão-somente, um arrebol do crepúsculo? A vontade
epicúria contra o pessimismo, apenas uma precaução do
sofredor? E a ciência mesma, a nossa ciência - sim, o que
significa em geral, encarada como sintoma da vida, toda a ciência?
Para que, pior ainda, de onde - toda a ciência? Como?
É a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatória
ante o pessimismo? Uma sutil legítima defesa contra - a verdade?
E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade?
E, amoralmente, uma astúcia? ó Sócrates, Sócrates, foi este
porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura,
a tua - ironia?
2.
O que consegui então apreender, algo terrível e perigoso,
um problema com chifres, não necessariamente um touro, por certo, em todo caso um novo problema: hoje eu diria
que foi o problema da ciência mesma - a ciência entendida
pela primeira vez como problemática, como questionável. Mas
o livro em que se extravasava a minha coragem e a minha suspicácia
juvenis - que livro impossível teria de brotar de uma
tarefa tão contrária à juventude! Edificado a partir de puras vivências
próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam
todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno
da arte - pois o problema da ciência não pode ser reconhecido
no terreno da ciência - um livro talvez para artistas
dotados também de capacidades analíticas e retrospectivas
(quer dizer, um tipo excepcional de artistas, que é preciso buscar
e que às vezes nem sequer se gostaria de procurar ... ), cheio
de inovações psicológicas e de segredos de artistas, com uma
metafísica de artista no plano de fundo, uma obra de juventude
cheia de coragem juvenil e de melancolia juvenil, independente,
obstinadamente autônoma, mesmo lá onde parece
dobrar-se a uma autoridade e a uma devoção própria, em suma,
uma obra das primícias, inclusive no mau sentido da palavra,
não obstante o seu problema senil, acometida de todos
os defeitos da mocidade, sobretudo de sua "demasiada extensão",
de sua "tempestade e ímpeto" [Sturm und Drang]3: de
outra parte, dado o seu êxito (em especial junto ao grande artista
Richard Wagner, a quem se dirigia como para um diálogo),
um livro comprovado, quer dizer, um livro tal que, em
todo caso, satisfez "os melhores de seu tempo"4. Já por isso
somente deveria ser tratado com certa consideração e discrição; ainda assim, não quero encobrir de todo o quanto ele me
parece agora desagradável, quão estranho se me apresenta agora,
dezesseis anos depois - ante um olhar mais velho, cem
vezes mais exigente, porém de maneira alguma mais frio, nem
mais estranho àquela tarefa de que este livro temerário ousou
pela primeira vez aproximar-se - ver a ciência com a óptica
do artista, mas a arte, com a da vida ...
3.
Dito mais uma vez, hoje ele é para mim um livro impossível - acho-o mal escrito, pesado, penoso, frenético e confuso nas imagens, sentimental, aqui e ali açucarado até o feminino,
desigual no tempo [ritmo], sem vontade de limpeza lógica, muito convencido e, por isso, eximindo-se de dar demonstrações,
desconfiando inclusive da conveniência do demonstrar,
como livro para iniciados, como "música" para
aqueles que foram batizados na música, que desde o começo das coisas estão ligados por experiências artísticas comuns
e raras, como signo de reconhecimento para parentes de sangue
in artibus [nas artes] - um livro altaneiro e entusiasta,
que de antemão se fecha ao profanum vulgus (vulgo profano]
dos "homens cultos" mais ainda do que ao "povo", mas
que, como seu efeito demonstrou e demonstra, deve outrossim
saber muito bem como procurar seus co-entusiastas e
atraí-los a novas trilhas ocultas e locais de dança. Aqui falava
em todo caso - isto se confessava com curiosidade e, não
menos, com aversão - uma voz estranha, o discípulo de um
"deus desconhecido" ainda, que por enquanto se escondia
sob o capucho do douto, sob a pesadez e a rabugice dialética
do alemão, inclusive sob os maus modos do wagneriano;
havia aqui um espírito com estranhas, ainda inominadas, necessidades,
uma memória regurgitante de perguntas, experiências
e coisas ocultas, à cuja margem estava escrito o nome
de Dionísio mais como um ponto de interrogação; aqui
falava - assim se dizia com desconfiança - uma espécie de
alma mística e quase menádica, que, de maneira arbitrária e
com esforço, quase indecisa sobre se queria comunicar-se ou
esconder-se, como que balbuciava em uma língua estranha.
Ela devia cantar, essa "nova alma" - e não falar! É pena que
eu não me atrevesse a dizer como poeta aquilo que tinha então
a dizer: talvez eu pudesse fazê-lo! Ou, pelo menos, como
filólogo - pois ainda hoje, para o filólogo, neste domínio, resta tudo a descobrir e a desenterrar! Acima de tudo
o problema de que aqui há um problema - e de que os gregos,
enquanto não tivermos uma resposta para a pergunta:
"O que é dionisíaco?", continuam como antes inteiramente
desconhecidos e inimagináveis ...
4.
Sim, o que é dionisíaco? - Neste livro há uma resposta
a essa pergunta - um "sabedor" fala aqui, o iniciado e discípulo
de seu deus. Talvez eu falasse agora com mais precaução e com menos eloquência acerca de uma questão psicológica
tão difícil como é a origem da tragédia entre os gregos.
Uma questão fundamental é a relação dos gregos com
a dor, seu grau de sensibilidade - esta relação permaneceu
igual ou se inverteu? -, aquela questão de se realmente o
seu cada vez mais forte anseio de beleza, de festas, de divertimentos,
de novos cultos brotou da carência, da privação,
da melancolia, da dor. Estabelecido que precisamente isso
tenha sido verdade - e Péricles (ou Tucídides)5 no-lo dá a
entender na grande oração fúnebre - de onde haveria de
provir o anseio contraposto a este, que se apresentou ainda
antes no tempo, o anseio do feio, a boa e severa vontade dos
antigos helenos para o pessimismo, para o mito trágico, para
a imagem de tudo quanto há de terrível, maligno, enigmático,
aniquilador e fatídico no fundo da existência - de onde
deveria então originar-se a tragédia? Porventura do prazer,
da força, da saúde transbordante, de uma plenitude demasiado
grande? E que significado tem então, fisiologicamente
falando, aquela loucura de onde brotou a arte trágica assim
como a cômica, a loucura dionisíaca? Como? A loucura não
será por acaso o sintoma da degeneração, do declínio, de uma
cultura bastante tardia? Há porventura - uma pergunta para
alienistas - neuroses da sanidade? Da juventude e da juvenilidade
de um povo? Para onde aponta aquela síntese de deus
e bode no sátiro? Em virtude de que vivência de si mesmo,
de que ímpeto, teve o grego de imaginar como um sátiro o
entusiasta e homem primitivo dionisíaco? E no que se refere
à origem do coro trágico: houve porventura, naqueles séculos
em que o corpo grego florescia e a alma grega estuava
de vida, arrebatamentos endêmicos? Visões e alucinações que
se comunicavam a comunidades inteiras, a assembleias cultuais
inteiras? Como? E se os gregos tivessem, precisamente
em meio à riqueza de sua juventude, a vontade para o trágico
e fossem pessimistas? Se fosse justamente a loucura, para empregar uma palavra de Platão,6 que tivesse trazido as
maiores bênçãos sobre a Hélade? E se, por outro lado e ao
contrário, os gregos, precisamente nos tempos de sua dissolução
e fraqueza, tivessem se tornado cada vez mais otimistas,
mais superficiais, mais teatrais, bem como mais ansiosos
por lógica e logicização, isto é, ao mesmo tempo "mais serenojoviais"
e "mais científicos"? Como? Poderia porventura,
a despeito de todas as "idéias modernas" e preconceitos
do gosto democrático, a vitória do otimismo, a racionalidade
predominante desde então, o utilitarismo prático e teórico, tal como a própria democracia, de que são contemporâneos
- ser um sintoma da força declinante, da velhice abeirante,
da fadiga fisiológica? E precisamente não - o pessimismo?
Foi Epicuro um otimista - precisamente enquanto
sofredor? - Vê-se que é todo um feixe de difíceis questões
que este livro carregou - acrescentemos ainda a sua questão
mais difícil! O que significa, vista sob a óptica da vida
- a moral? ...
5.
Já no prefácio a Richard Wagner é a arte - e não a moral
- apresentada como a atividade propriamente metafísica do
homem; no próprio livro retoma múltiplas vezes a sugestiva
proposição de que a existência do mundo só se justifica como
fenômeno estético. De fato, o livro todo conhece apenas
um sentido de artista e um retro-sentido [Hintersinnf]7 de artista por trás de todo acontecer - um ''deus'', se assim
se deseja, mas decerto só um deus-artista completamente inconsiderado
e amoral, que no construir como no destruir,
no bom como no ruim, quer aperceber-se de seu idêntico
prazer e autocracia, que, criando mundos, se desembaraça
da necessidade [Not] da abundância e superabundância, do
sofrimento das contraposições nele apinhadas. O mundo, em
cada instante a alcançada redenção de deus, o mundo como
a eternamente cambiante, eternamente nova visão do ser
mais sofredor, mais antitético, mais contraditório, que só na
aparência [Schein]8 sabe redimir-se: toda essa metafísica do artista pode-se denominar arbitrária, ociosa, fantástica - o
essencial nisso é que ela já denuncia um espírito que um dia,
qualquer que seja o perigo, se porá contra a interpretação
e a significação morais da existência. Aqui se anuncia, quiçá
pela primeira vez, um pessimismo "além do bem e do
mal",9 aqui recebe palavra e fórmula aquela "perversidade
do modo de pensar" contra a qual Schopenhauer não se cansa
de arremessar de antemão as suas mais furiosas maldições e
relâmpagos - uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a pró
pria moral ao mundo da aparência e não apenas entre as "aparências"
ou fenômenos [Erscheinungen]10 (na acepção do
terminus technicus idealista), mas entre os "enganos", como
aparência, ilusão, erro, interpretação, acomodamento, arte.
Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse
pendor antimoral seja no precavido e hostil silêncio com
que no livro inteiro se trata o cristianismo - o cristianismo
como a mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade
chegou até agora a escutar . Na verdade, não existe
contraposição maior à exegese e justificação puramente
estética do mundo, tal como é ensinada neste livro, do que
a doutrina cristã, a qual é e quer ser somente moral, e com
seus padrões absolutos, já com sua veracidade de Deus, por
exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira isto
é, nega-a, reprova-a, condena-a. Por trás de semelhante
modo de pensar e valorar, o qual tem de ser adverso à arte,
enquanto ela for de alguma maneira autêntica, sentia eu também
desde sempre a hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa
aversão contra a própria vida: pois toda a vida repousa
sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do
perspectivístico e do erro. O cristianismo foi desde o início,
essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que
apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava
sob a crença em "outra" ou "melhor" vida. O ódio ao "mundo",
a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade,
um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-decá,
no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso,
para chegar ao "sabá dos sabás" - tudo isso, não menos do
que a vontade incondicional do cristianismo de deixar valer
somente valores morais, se me afigurou sempre como a mais perigosa e sinistra de todas as formas possíveis de uma "vontade
de declínio' ', pelo menos um sinal da mais profunda
doença, cansaço, desânimo, exaustão, empobrecimento da
vida - pois perante a moral (especialmente a cristã, quer dizer,
incondicional), a vida tem que carecer de razão de maneira
constante e inevitável, porque é algo essencialmente
amoral - a vida, apressa sob o peso do desdém e do eterno
não, tem que ser sentida afinal como indigna de ser desejada,
como não-válida em si. A moral mesma - como? A moral
não seria uma "vontade de negação da vida" , um instinto
secreto de aniquilamento, um princípio de decadência,
apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em conseqüência,
o perigo dos perigos? ... Contra a moral, portanto,
voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto,
como um instinto em prol da vida, e inventou para si,
fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração
da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la?
Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu
a batizei, não sem alguma liberdade - pois quem conheceria
o verdadeiro nome do Anticristo? - com o nome de um deus
grego: eu a chamei dionisíaca.
6.
Entende-se em que tarefa ousei tocar já com este livro? ...
Quanto lamento agora que não tivesse então a coragem (ou
a imodéstia?) de permitir-me, em todos os sentidos, também
uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios - que eu tentasse exprimir penosamente, com fórmulas
schopenhauerianas e kantianas, estranhas e novas valorações, que iam desde a base contra o espírito de Kant e Schopenhauer,
assim como contra o seu gosto! O que pensava,
afinal, Schopenhauer sobre a tragédia? "O que dá a todo o
trágico o empuxo peculiar para a elevação"- diz ele em O
mundo como vontade e representação, II, p. 495,11- "é o
surgir do conhecimento de que o mundo, a vida não podem
proporcionar verdadeira satisfação e portanto não são dignos
de nosso apego: nisto consiste o espírito trágico - ele conduz à resignação'', quão diversamente falava Dionísio comigo!,
quão longe de mim se achava justamente então todo
esse resignacionismo! - Mas há algo muito pior no livro, que
agora lamento ainda mais do que ter obscurecido e estragado
com fórmulas schopenhauerianas alguns pressentimentos
dionisíacos: a saber, que estraguei de modo absoluto o grandioso
problema grego, tal como ele me havia aparecido, pela
ingerência das coisas mais modernas ! Que apensei esperanças
lá onde nada havia a esperar, onde tudo apontava, com
demasiada clareza, para um fim próximo! Que comecei a fabular,
com base nas últimas manifestações da música alemã,
a respeito do "ser alemão", como se ele estivera precisamente
a ponto de descobrir-se e reencontrar-se a si mesmo - e isto
em uma época em que o espírito alemão, que não muito
tempo antes havia tido ainda a vontade de domínio sobre a
Europa, a força de guiar a Europa, justamente abdicava disso
por disposição testamentária e de maneira definitiva e, sob
o pomposo pretexto da fundação de um Reich [império], realizava
a sua passagem para a mediocrização acomodante, para
a democracia e para as idéias "modernas"! De fato, entrementes
aprendi a pensar de uma forma bastante desesperançada e dasapiedada acerca desse "ser alemão", assim como
da atual música alemã, a qual é romantismo de ponta a ponta
e a menos grega de todas as formas possíveis de arte: além
do mais, uma destroçadora de nervos de primeira classe, duplamente
perigosa em um povo que gosta de bebida e honra
a obscuridade como uma virtude, isto é, em sua dupla propriedade
de narcótico inebriante e ao mesmo tempo obnubilante.
- À parte, está claro, de todas as esperanças apressadas
e de todas as aplicações errôneas às coisas do presente,
com as quais estraguei o meu primeiro livro, permanece
o grande ponto de interrogação dionisíaco, tal como nele foi
colocado, também no tocante à música: como deveria ser
composta uma música que não mais tivesse uma origem romântica,
como a música alemã - porém dionisíaca? ...
7.
Mas, meu caro senhor, o que é romântico no mundo, se
o vosso livro não é romântico? Será que o ódio profundo contra o "tempo de agora", a "realidade" e as "idéias modernas"
pode ser levado mais à frente do que ocorreu em
vossa metafísica do artista, a qual prefere acreditar até no Nada,
até no demônio, a acreditar no "Agora"? Não estará zumbindo,
por baixo de toda a vossa contrapontística arte vocal
e sedução dos ouvidos, um baixo profundo de cólera e de
prazer destruidor, uma furiosa determinação contra tudo o
que é "agora", uma vontade que não está muito longe do
niilismo prático e que parece dizer "é preferível que nada
seja verdadeiro do que vós terdes razão, do que vossa verdade
ficar com a razão!"? Escutai vós mesmos, senhor pessimista
e deificador da arte, mas com ouvidos descerrados, uma
única passagem escolhida de vosso livro, aquela que fala, não
sem eloquência, dos matadores de dragões, a qual pode ter
o som capcioso do capturador de ratos12 para ouvidos e corações
jovens. Como? Não é esta porventura a autêntica e
verdadeira profissão de fé dos românticos de 1830, sob a máscara
do pessimismo de 1850? Atrás da qual também já se preludia
o usual finale dos românticos - quebra, desmoronamento,
retorno e prosternação ante uma velha fé, ante o velho
Deus ... Como? O vosso livro pessimista não é ele mesmo
uma peça de anti-helenismo e de romantismo, ele próprio algo "tão inebriante quanto obnubilante", em todo caso
um narcótico, até mesmo uma peça de música, de música
alemã? Mas, ouça-se:
"Imaginemos uma geração vindoura com esse destemor
de olhar, com esse heróico pendor para o descomunal, imaginemos
o passo arrojado desses matadores de dragões, a
orgulhosa temeridade com que dão as costas a todas as doutrinas
da fraqueza pregadas pelo otimismo, a fim de 'viver
resolutamente' na completude e na plenitude: não seria necessário
que o homem trágico dessa cultura, em sua autoeducação
para o sério e para o horror, devesse desejar uma
nova arte, a arte do consolo metafísico, a tragédia como
a Helena a ele devida, e tivesse de exclamar com Fausto:
E não devo eu, violência de ansiedade incontida,
De todas, trazer esta única figura, para a vida?13
"Não seria necessário?" ... Não, três vezes não, ó jovens
românticos! Não seria necessário! Mas é muito provável que
isso finde assim, que vós assim findeis, quer dizer, "consolados",
como está escrito, apesar de toda a auto-educação para
o sério e o horror, "metafisicamente consolados", em suma,
como findam os românticos cristãmente ... Não! Vós deveríeis
aprender primeiro a arte do consolo deste lado de cá - vós
deveríeis aprender a rir, meus jovens amigos, se todavia quereis
continuar sendo completamente pessimistas; talvez, em
conseqüência disso, como ridentes mandeis um dia ao diabo
toda a "consoladoria" metafísica-e a metafísica, em primeiro
lugar! Ou, para dizê-lo com a linguagem daquele trasgo dionisíaco,
que se chama Zaratustra:
"Levantai vossos corações, ó meus irmãos, alto, mais alto!
E não esquecei tampouco as pernas! Levantai também as vossas
pernas, vós, bons dançarinos, e melhor ainda: erguei-vos
também sobre a cabeça!
"Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: eu
mesmo coloquei esta coroa sobre a minha cabeça, eu mesmo
declarei santo o meu riso. Não encontrei nenhum outro, bastante
forte pard isto, hoje.
"Zaratustra, o dançarino; Zaratustra, o leve, que acena
com as asas, pronto a voar, acenando a todos os pássaros, preparado
e pronto, um bem-aventurado leviano:
"Zaratustra, o verodizente; Zaratustra, o verorridente; não
um impaciente, não um incondicional, mas um que ama os
saltos e os saltos laterais: eu mesmo coloquei esta coroá sobre
a minha cabeça! "Esta coroa do ridente, esta coroa grinalda-de-rosas: a
vós, meus irmãos, eu vos atiro esta coroa! O riso eu declarei
santo: vós, homens superiores, aprendei - a rir!" (Assim
falou Zaratustra, quarta parte).
NOTAS DO TRADUTOR
(1) Griechtum é o termo usado por Nietzsche nesse subtítulo para a segunda edição de O nascimento da tragédia. Mas, considerando-se que "grecismo"
tem sido aplicado de preferência para designar o idiomatismo grego,
recorreu-se ao sinônimo "helenismo", apesar de ele trazer uma conotação que vai além da Grécia concretamente.
(2) Heiterkeit: clareza, pureza, serenidade, jovialidade, alegria, hilaridade
são as várias acepções em que a palavra é empregada em alemão. Quando
se trata da griechische Heiterkeit, a tradução mais freqüente tem sido "serenidade
grega". Entretanto, a versão parece insuficiente e redutora por suprimir
as demais remessas do termo. Por isso optou-se por um acoplamento
de dois sentidos principais, utilizando-se sempre, nesta transposição do texto
de Nietzsche, a forma "serenojovial'', "serenojovialidade".
(3) Movimento pré-romântico alemão, na segunda metade do século
XVIII. Integrado por uma geração de jovens autores, propunha-se a emancipar
a literatura teuta e constitui a primeira manifestação coletiva do romantismo
europeu. A denominação proveio de uma peça homônima de F. M.
Klinger, um dos integrantes do grupo do qual fizeram parte, entre outros,
Goethe, Herder, Lenz e Schiller.
(4) Referência a Schiller, nos versos do prólogo a Wallenstein.
(5) História da Guerra do Peloponeso, n, 41.
(6) Fedro, 244a.
(7) Apesar de o prefixo "retro" indicar em geral um movimento "para
trás", também consigna o estar "atrás'', nexo em que é utilizado aqui por
corresponder exatamente ao alemão hinter.
(8) Por significar a um só tempo aparência, brilho e ilusão, Schein converte-se
num dos principais semas no urdimento fenomenológico e metafísico
do discurso nietzschiano em O nascimento da tragédia. Não havendo em
português um vocábulo correspondente, escolheu-se o de sentido mais abrangente
para o caso.
(9) O tema é desenvolvido por Nietzsche em Além do bem e do mal.
(10) A tradução técnica para o português seria "fenômeno". Mas a verbalização
como "aparência" é fundamental para a caracterização do universo
de idéias proposto pelo texto.
(11) As citações de Nietzsche provêm da edição de 1873 de]ulius Frauenstadt.
(12) Verjanglicb-rattesnjangeriscb, construção quase intransponível.
Traduzi-la por "insidioso e enganador", ou por outras formas equivalentes,
como tem sido feito, não só em português, põe a perder a ironia da expressão
nietzschiana, que se articula a partir das palavras "ratos" e "capturante"
como referentes metafóricos da ação do flautista de Hamelin, segundo
a lenda popular alemã.
(13) Fausto, versos 7438-7439.
Para baixar o PDF completo, acesse: O nascimento da tragédia
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