VERDADE E LIBERDADE
Seminário sobre o texto:
Da essência da verdade, de Heidegger
Frei Hermógenes Harada
(http://www.freiharada.com.br/)
(2º SEMESTRE de 1970)
1a
Reunião: em vez de uma apresentação
Carl-Friedrich von Weizsäcker é o iniciador de Max-Planck-Institut
para investigação das condições de vida do mundo técnico científico. Conta
entre os maiores cientistas atuais que como experto na moderna física teorética
e filosófica ao mesmo tempo, procura mostrar o condicionamento
antropológico-filosófico do modo de ser humano chamado Ciências, tenta
conscientizar o mundo científico contemporâneo da necessidade de sentir a
responsabilidade humana-ética nesse nosso século de energia atônica.
Weizsäcker é um cientista de avantaguarda que sente e pensa
hodiernamente e vê na ciência e técnica contemporâneas a decisão, a chance, o
risco, a tentação de ser - homem de uma nova forma, cheia de responsabilidade,
perigos e promessas. Enquanto tal, tem muita afinidade com Heidegger.
Em vez de amontoar datas sobre a vida de Heidegger, fosse mais interessante
para nós, ouvir o testemunho de Weizsäcker, que em poucas palavras traça o
perfil espiritual de Heidegger. Quanto a dados biográficos de Heidegger , peço
que cada qual procure se informar como puder nas enciclopédias, nas orelhas da
sua vida.
Testemunho de Weizsäcker sobre Heidegger, feito numa entrevista na
televisão alemã, aos 24 de setembro de 1969.
“Hoje, tenho a tarefa de dizer em duas palavras algo sobre
Heidegger. No entanto, justamente a filosofia de Heidegger nos esclarece que
não é possível esclarecer em 4 minutos a filosofia de Heidegger. Por isso,
gostaria tão somente de testemunhar que, segundo a minha opinião, Heidegger é o
filósofo mais importante do século 20, talvez o filosofo do século 20.
“Quem sabe, se contribua para a compreensão, se eu
descrever como fiquei conhecendo Heidegger. Foi assim: naquele tempo, eu era
jovem físico, aluno de Werner Heisenberg. Alguém teve a seguinte idéia e a
sugeriu a Heidegger: Heidegger convidaria a Heisenberg, justamente como o meu
tio médico Viktor Von Weizsäcker
(célebre professor de medicina). Assim, poder-se-ia criar um contacto
entre Heísenberg e Weizsäcker e provocar um diálogo sobre o problema de
relacionamento entre a Medicina (como o meu tio a concebia) e a física (como
Heisenberg a compreendia). Diálogo, portanto, sobre a pergunta, se existe um
encontro entre Medicina e a Física na compreensão da realidade e do homem.
“O diálogo foi realizado. E Heisenberg levou-me consigo como seu assistente.
Foi no ano de 1953 na pequena cabana de Heidegger em Todtanauberg, na Floresta
Negra”.
“Nós estávamos sentados num pequeno quarto, ao redor de uma mesa
estreita. Heidegger ocupava uma das extremidades da mesa. Ao lado, um contra o
outro, Heisenberg e Weizsäcker”.
“Estes começaram pois a falar um com o outro. Falaram muito
excitados, durante talvez uma hora. Discutiram e também brigaram. E finalmente
se engalfinharam de tal sorte na mútua oposição que já não se entendiam mais”.
“Foi somente então que Heidegger – que os auscultava atentamente –
se imiscuiu na discussão”.
“Dirigiu-se a um dos disputantes e disse: ‘Portanto, Sr.
Weizsäcker, se eu entendi bem , o Sr. Pensa o seguinte...” E seguiram três
frases perfeitamente claras. E Weizsäcker:
“sim, é exatamente isto que quis dizer!
“A seguir dirigiu-se Heidegger ao outro disputante: ‘Sr.
Heisenberg, o Sr., se é que o entendi certo, pensa isso assim...’ de novo
Heidegger formulou três frases bem precisas. E Heisenberg: ‘precisamente, foi
isso que eu queria ter dito”.
“Então, continua Heidegger, parece-me que o relacionamento entre
as posições dos senhores pudesse talvez ser o seguinte”. E novamente seguiram
quatro ou cinco frases. Cada um dos oponentes respondeu: “Sim, talvez assim
pudesse ser. Sob essa base poderemos continuar a discussão”. E o diálogo
continuou.
“Esta cena, o meu primeiro encontro com Heidegger, me levou a perceber
que Heidegger abstraindo-se totalmente da própria doutrina que propagou nas
suas escrituras, é capaz de auscultar e compreender o pensamento alheio, de
compreender melhor do que as próprias pessoas que o pensaram”.
“Diria pois: Isto é um Pensador”.
“Isto é tudo que hoje gostaria de dizer sobre ele”.
(Martin Heidegger im Gespräck, entrevista na Segunda televisão
alemã, aos 24 de setembro de 1969).
2a
Reunião: Da Essência da Verdade
Ao ler um texto, seja talvez a sua atitude a de aprender.
Você lê com a intenção de ab-prender, para tirar do livro o que está ali
contido: uma doutrina, um ensinamento, um conhecimento.
Essa atitude, no entanto, não funciona com os textos de Heidegger.
Pois, ali trata-se de um questionamento. Desde a primeira linha até a
última, se movimenta, se desenvolve um processo, um caminho
de indagação, de pergunta.
Antes de mais nada, portanto, você deve entrar dentro da
‘jogada’ do questionamento.
Com outros termos, você ao ler, deve despertar em você a pergunta,
a indagação e seguir fielmente o fio do desenvolvimento da pergunta.
Se você, não tem muita facilidade de penetração num texto, é
talvez porque você não abriu na sua mente rasgos de questionamento. Talvez
tudo é demasiadamente óbvio, natural para você. É preciso então acordar o seu
intelecto para a atitude de questionamento. É preciso que você desperte da
ingenuidade.
Abrir em si feridas de questionamento, na terminologia de
Heidegger, se chama: colocar a questão. Colocar a questão significa:
trabalhar um problema de tal maneira que ele se torne insuportavelmente pesado
para você, ao ponto de se transformar numa questão de sua vida.
Ao ler o livro de Heidegger experimente ficar atento a
trechos nos quais você pode meter, fincar a unha da sua compreensão. Um texto
filosófico é como uma muralha lisa, maciça; para escalá-la você deve descobrir
nessa superfície uma fenda, onde possa fincar uma unha.
Para
a seguinte reunião:
1) Conseguir o texto; ler todo o texto.
2) Preparar especialmente o trecho introdutório:
a) entender todos os termos
que ali ocorrem;
b) entender todas as
construções gramaticais que ali ocorrem;
c) dizer de que se trata
nessa introdução (por escrito);
d) tentar responder por
escrito as seguintes perguntas:
- quantos conceitos de
verdade ocorrem nesse trecho?
- quais os qualificativos
que o trecho dá à essência?
- que idéia de Filosofia
você encontra no trecho?
- conforme o trecho, em que
relação está o mundo da Filosofia e a vida cotidiana?
- qual o argumento que
Heidegger aduz nesse trecho para dizer que é importante o questionamento da
essência da verdade?
3) Fazer as seguintes perguntas em particular
para si mesmo:
- o que é verdade para mim?
Uso e abuso desse termo? Na minha vida acho que estou vivendo conforme a
verdade? Preocupo-me com a verdade? Mas, o que é, afinal, a verdade? Uma
palavra oca? Tem importância uma pergunta sobre a verdade?
- uso também a palavra
essência. O que é essência para mim? Uma simples questão acadêmica? Como
vivo a minha vida de reflexão? Deixando-me levar pela corrente monótona dos
acontecimentos cotidianos? Sem reflexão? Sem procurar a essência das coisas?
- a Filosofia trata de
coisas abstratas, ao menos aparentemente. Por que então você estuda a
Filosofia? Como erudição? Como treino para pensar? Será que vale a pena o
estudo da Filosofia? Se não vale a pena, o que vale a pena para você? E nisso
que vale a pena viver para você, que função exerce a que chamamos de verdade?
- experimente, pois, com
todo o empenho, esquentar a sua “cuca”, perguntando, confrontando-se,
preocupando-se com a pergunta: o que é a verdade para mim? Para minha vida?
Talvez você terá uma resposta pronta… Talvez uma resposta que é um
lugar comum. Um chavão. Um slogan. Experimente, então, perguntar-se: estou
seriamente convencido disso ou digo isso porque ouvi dizer?
Depois de ter se esquentado muito com essas perguntas, ler de
novo, bem devagar, a introdução. Despertar em si uma grande vontade, sim,
necessária de saber o que é, afinal, a Verdade!
O termo essência em alemão é: wesen.
Wesen tem o sabor dinâmico de: sendo. Aquilo que dinamicamente está
agindo, sustentando, vitalizando… Para nós também a essência conota algo de
nuclear, central, de fundamental importância. Aquilo que faz com que a verdade
seja vida, núcleo, a dinâmica é a essência da verdade. O que será, afinal de
contas, isto: a essência?
O
que você imagina quando diz:
- a verdade dessa frase : 2
+ 2 = 4?
- a verdade de minha Vida?
- a verdade da Boa Nova?
- a verdade da Fé?
- a verdade da obra de
arte?
- a verdade nos fará
livres?
- isso é de fato verdade?
- você está dizendo a
verdade?
- quem me garante que o que
você diz é verdadeiro?
- a verdade desse livro.
Que
diferença existe entre a verdade e:
- veracidade;
- autenticidade;
- real, factual –
realidade?
Para o estudo da Filosofia é de grande importância você ter
um grande desejo de ter uma experiência originária de um profundo pensamento
que pode transformar a sua vida. É de importância vital ver um filósofo
como Heidegger, não um sábio acadêmico de idéias abstratas e longe da vida, mas
sim alguém que teve uma profundíssima experiência do Pensamento que lhe
abriu toda uma visão nova, todo um mundo riquíssimo em sentido da Vida.
Se você quiser aproveitar algo para a sua vida, do pensamento filosófico, deve
livrar-se da maneira vulgar, diria, burguesa, de encarar a filosofia como uma
saber acadêmico, abstrato e sem vida. Deve enfrentar a Filosofia com seriedade
mortal, como quem luta com o pensamento uma luta livre. Se você é Espírito, se
o pensar é uma realidade, então, você é responsável por sua capacidade de
pensar. E a luta corpo a corpo com o pensamento na experiência real da reflexão
se chama Filosofia.
Ao ler um autor, não considere a leitura como um passatempo acadêmico,
como ocupação de utilidade para o enriquecimento cultural, como erudição. Filosofar,
assim, ter a Heidegger nesse espírito, é perder o tempo num humanismo romântico
do passado. Filosofar como erudição tem tanta importância para a vida como a
conversa ridícula dos grã-finos sobre as lutas sangrentas em Vietnã. Leitura
filosófica e filosofar têm somente o sentido real, se você está disposto
a sangrar e entrar em crise da sua vida, para que o pensamento comece a adquirir
um peso insuportável, peso que pode ameaçar o seu mundo instalado e ingênuo.
Mas… qual é a sua atitude, a sua concepção de um estudo?
3a
Reunião : Sobre a essência da Verdade
No texto original, em vez de ‘sobre a essência…’, temos a palavra vom (Vom wesen der wahrheit).
Vom
equivale ao nosso de. Portanto, em vez de ‘Sobre a essência da verdade’
é melhor dizer ‘Da essência da verdade’.
Para que essa observação pedante é minuciosa?
Por causa da estrutura do título e do livro.
Nessa partícula vom está concentrada
toda a problemática do livro!
Da essência (Vom wesen)
é uma expressão propriamente ambígua.
De pode significar: sobre. Mas,
também, a partir de, pela força e pela graça de. Portanto, Da essência
da Verdade pode significar:
a) Sobre a essência da
Verdade.
b) A partir da essência da
verdade.
No caso a) você está, por assim dizer, ‘fora’ da verdade, tem a
essência da verdade diante de si como objeto da sua pergunta, indaga,
fala sobre ela. Mas, nesse caso, resta uma questão fundamental: ao falar
sobre, donde é que você fala? Qual a sua posição, a norma, a
medida que você usa para falar sobre? Qual a sua pressuposição? A partir de que
visão, de que enfoque, de que dimensão fala você sobre?
No caso b) você não tem a Essência da Verdade de si, mas, por
assim dizer, atrás de si. Você, se fala, fala a partir da essência da verdade,
envolvido, ‘acossado’, ‘entusiasmado’, na ‘possessão’ da essência da verdade. A
Essência da Verdade é o agente, o ‘sujeito’ da sua fala.
A estrutura, tanto do fenômeno a) como a do b) são ocorrências
banais do cotidiano. Experimente você mesmo descobrir 3 exemplos para o caso a)
e outros 3 para o caso b).
O importante para nossa leitura é o
nosso indagar:
Como se relaciona, a estrutura a) e a estrutura b)? Que conexão
existe entre o falar sobre e o falar a partir de?
O livro começa falando sobre a Essência da Verdade. Fala-se
sobre ela isso ou aquilo. Fala-se bem, fala-se mal. Fala-se de modo concreto,
vital, utilitário; fala-se de modo abstrato, inutilmente, de maneira alienada e
alienante. Tudo isso, todos esses que falam isso ou aquilo sobre a
Essência da Verdade, donde é que eles falam? O que é que os move? Qual o
agente da sua fala sobre a verdade?
Com outras palavras: o que se fala sobre a Essência da
Verdade, já está impulsionado por algo que está nele, que o envolve, algo que é
mais fundamental do que e anterior ao falar sobre a Essência da
Verdade.
Essa dimensão mais fundamental e anterior é o que se expressa pelo
termo da (a partir de) Essência da Verdade. Portanto, o caso b) é o
fundamento do caso a).
O livro faz, portanto, no seu caminhar o seguinte
processo: começa perguntando e falando sobre a Essência da Verdade. Mas, ao
perguntar sobre vai descobrindo ao leitor as raízes donde nasceu a
estrutura do falar, perguntar sobre. Imerge, portanto, na pressuposição
da estrutura ‘falar sobre’, isto é, vai à História, examina geneticamente
os fundamentos, donde o falar sobre haure a sua verdade, a sua
constituição. Mas, ao fazer isso, o texto vai nos revelando, aos poucos, uma
estrutura que não é mais o ‘falar sobre’, mas algo como a própria
presença da Verdade que nos capacita a ‘falar sobre’ a Verdade.
Nós, homens, enraizados na estrutura da Verdade que tem a forma de
‘falar sobre’, estamos virados para o objeto, estamos presos, por assim dizer,
a essa estrutura do ‘falar sobre’. Diretamente não podemos ver o lugar a partir
do qual olhamos e enfocamos os nossos objetos. Por isso, ao examinarmos a
Essência da Verdade, só podemos falar sobre a Essência da Verdade, ao passo que
ao fazermos isso nós na realidade já estamos falando e perguntando a partir
da Essência da Verdade.
Como ‘virar a cabeça’ e ver a origem a partir da qual estamos
falando, pensando, investigando? Parece não haver outro meio a não ser
caminhar, falar sobre e nesse processo, dentro dele, auscultar e captar a
presença de uma estrutura originária.
Por isso, o texto desse livro deve ser lido nesse jogo de
ambigüidade que no falar sobre sempre nos insinua um falar a partir
de.
Tarefa
para a seguinte reunião:
1. Ler o 1o capítulo
2. Cada qual,
individualmente, tentar entender o texto.
3. O grupo 1 formula, por
escrito, as perguntas sobre os pontos que o grupo (ou um dos membros do
grupo) não entendeu. Formular também perguntas capciosas que sondem a medida de
compreensão do grupo adversário. Ler o texto, portanto, sob o enfoque de fazer
boas perguntas.
4. O grupo 2 ler o texto e
preparar o texto de tal maneira que consiga responder as eventuais perguntas do
grupo 1.
5. Cada qual,
individualmente, tente procurar 2 exemplos concretos de um ‘falar sobre’ no
qual se manifesta o ‘falara a partir de’. Fazer isso por escrito.
Algumas questões de perguntas a fazer a si mesmo enquanto lê o
texto do 1o capítulo:
- o que será, afinal de
contas, esse misterioso ‘real’? Quando entendo sob o termo ‘verdadeiro’ real: o
que é esse real?
- o que significa quando
digo: é, existe? O que é que imagino, por exemplo, quando digo: Deus existe?
Deus é real? O Espírito é real?
- como é que você imagina a
criação do mundo? Você diz: Deus criou o universo. Portanto, cada coisa foi
criada por Deus. Como é que eu imagino tudo isso? Você ao ler a concepção da
Idade Média, como está escrita no texto, acha tudo isso estranho? Ou ela
corresponde mais ou menos com o que você pensa e imagina?
- o nosso conhecimento é
espiritual. O objeto lá fora de mim, por exemplo, a montanha é material. Como é
possível uma adequação? Um conhecimento? Como é possível conhecer a grandeza da
montanha, se a montanha não entra na minha cabeça? Como você imagina o
conhecimento?
- Ao ler, faça sempre de
novo perguntas a você mesmo. Seja homem de perguntas, tente ter muita
iniciativa perante você mesmo em se formular boas perguntas. A sua
inteligência se torna cada vez mais viva, enquanto você tem a capacidade de
fazer a si mesmo boas perguntas-estopins que acordam o seu pensar.
Se você tiver muita dificuldade de entender o texto não desanime.
Faça uma luta livre com o texto. E, se de fato não funcionar, pergunte, dê um
jeito de abrir uma fenda no texto.
4a
Reunião: Sobre a Essência da Verdade
O título do primeiro capítulo é: O Conceito Usual da Verdade.
O método fenomenológico de Heidegger quase sempre começa a sua
análise com o usual. Com a compreensão que possuímos na vida cotidiana. Começa
tateando a palavra que usamos na nossa vida normal e procura descobrir a
estrutura que lhe está atrás. Por isso, se você quiser compreender o texto,
deve fazer o mesmo. Pronunciar a palavra verdade, observar como você a usa, e ouvir,
auscultar em você mesmo, que sentido a palavra verdade tem em geral. Você deve,
pois, escutar a voz que vem do interior da palavra.
Você vai ouvir várias vozes. O uso da palavra verdade na vida
cotidiana nos evoca diferentes sentidos. Ouvir a algazarra ou o murmúrio vago e
confuso dessas vozes e tentar ouvir neles um tom fundamental, alto, que possa
ser um traço comum em todos os sentidos.
A seguir vou rapidamente traçar o fio do problema da verdade no
texto de Heidegger.
O Conceito usual, em uso, da verdade nos indica que o pivô da
dificuldade está na concordância: adaequatio.
Pois quando digo ‘verdade’ eu entendo: aquilo que faz com que isto ou aquilo
(frase, juízo, coisa) seja verdadeiro: ‘seja verdadeiro’ significa: corresponda,
concorde com – a) o que devia ser, e b) com o que é.
a) – O que devia ser: é uma idéia, norma, ideal. Uma
finalidade, o ponto final onde algo que é atualmente deve chegar para se tornar
aquilo que ele em si é, ‘devia ser’. Aqui há um momento de transcendência.
Transcendência no sentido de ir para além do que é atualmente, superar
(metafísica...).
b) – O que é: é a realidade hic et nunc. Quando emito um juízo: isto é assim, essa enunciação
em relação à coisa apresenta um movimento de transcender a si mesmo para ir à
sua norma que é aquilo que está na minha frente.
Portanto: em ambos os casos, quando falo da verdade, estou falando
desse movimento de transcendência. Na transcendência há o ponto de
partida e o ponto de chegada. Há também o movimento de superar o ponto de
partida, isto é, para além de...
O ponto de partida e, correspondentemente, o ponto de chegada
podem tomar várias formas e denominações: por exemplo – dentro/fora; eu aqui/a
coisa lá; juízo/objeto; conhecimento/realidade; sujeito/objeto; homem/mundo;
mundo/Deus; contigente/absoluto; natural/sobrenatural; presente/futuro;
realidade/utopia; começo/fim; etc, etc.
Em que relação estão o ponto de partida e o ponto final?
Em que consiste o movimento de superação, de transcendência?
Os dois pólos, a saber, o ponto de partida e o ponto de chegada,
são pólos existentes em si, independentemente um do outro?
Não é assim, que um não pode existir sem o outro; que ambos são
correlativos como pai e filho?
Donde vem essa correlação? A correspondência?
O movimento de transcendência não é justamente o que cria essa
correlação? Não é esse movimento de transcendência que cria os pólos de
correlação?
Se for assim, então o problema é embaraçoso. Pois o uso comum do
conceito de verdade começa a reflexão já fixando como existentes em si, óbvios,
sem problemas, o ponto de partida e o ponto de chegada. E pergunta, como essas
duas coisas estão ligadas?!
Que tal se o problema for anterior? Que tal, se os pontos fixos
como existentes em si, fossem, por assim dizer, resultantes do movimento de
transcendência? O problema da verdade se torna problema do movimento de transcendência.
Posso chamar a transcendência de liberdade, pois é um
movimento de superação e libertação.
O problema da verdade, se transforma no problema da Liberdade.
E se a liberdade como o movimento de transcendência é a estrutura
fundamental do homem. O problema da verdade, no fundo, é o problema da estrutura
fundamental do ser – homem.
Em vez de liberdade – transcendência posso dizer também:
existência = ex-sistência. A estrutura do homem é existir, isto é, ser,
conservar-se no movimento do ex, isto é, na abertura constante de se
superar. O problema da verdade é o problema da ex-sistentia, é, portanto, um problema ex-sistencial.
Mas, donde vem que o homem é ex-sistentia? Por que não é
como pedra, que não necessita para ‘ser’ do movimento de transcendência?
Haveria para o homem a possibilidade de não ser transcendência? De
ser o presente puro, sem dever-ser? O que é ser originariamente homem? A
estrutura bipolar da transcendência não é uma modalidade menos originária do
ser-homem? O que é ser originariamente homem?
Eis, como o problema abstrato da adequação se transformou na indagação
pela essência originária do ser-homem como ex-sistentia.
Tarefa
para a seguinte reunião:
1. O trabalho dessa vez vai ser individual.
Cada qual ler e reler de novo o primeiro capítulo.
2. Anotar todas as palavras que você não entende. Tentar ver se
entende.
Anotar para perguntar na reunião que vem. Portanto: fazer a
tentativa de entender o texto do 1o
capítulo tão bem que não lhe resta nenhuma palavra ou frase que não
entenda.
3. Ler essas apostilas para entrar dentro da problemática
heideggeriana. E a partir dessas explicações, tentar ler novamente o capítulo,
para ver se entende um pouco mais.
4. Ao ler, tomar sempre de novo uma atitude de independência
intelectual. Criar em si, um certo brio e ambição de querer descobrir você
mesmo o sentido do texto, sem facilmente recorrer ao outro. A tensão e a fossa
são necessárias, para que a compreensão tenha depois peso. Depois de muita
luta, então consultar.
1.
Protocolo da 3a reunião do seminário: sobre a essência da verdade.
O protocolo distinguiu dois tipos de existência:
a) existência do senso comum.
b) existência filosófica.
Traçou as característicos de ambas as existências que
demonstram, nitidamente, as diferenças entre si: Características opostas: a)
comum a todos os homens em geral – b) só a pequeno número de dotados
especialistas; a) concreta, vital, prática – b) abstrata, longe da vida,
teorética; a) cotidiana, sensível, palpável – b) especial, inteligível –
intelectual, irreal; a) normativa para a vida prática – b) essencial –
aprofundada intelectualmente.
As diferenças eram tão opostas que entre a e o b
parecia não haver reconciliação.
Surge então o problema: como se relacionam a existência do
senso comum e a existência filosófica?
A discussão nos mostrou o seguinte relacionamento.
A existência do senso comum é uma existência que esqueceu e,
por conseguinte, ignora o fundamento da sua existência. Ela funciona e opera
dentro de uma limitação, de uma bitola, sem saber donde vem o elan, a força, e
o sentido da sua totalidade.
A filosofia, isto é, a existência filosófica não é outra
coisa do que a busca do fundamento, do sentido originário da existência do
senso comum. Portanto, as verdades reais do senso comum, só serão compreendidas
originariamente na sua limpidez e autenticidade a partir da verdade essencial,
revelada pela autenticidade da existência filosófica. Nesse sentido, a verdade-essência
é, num sentido mais profundo e autêntico, a verdade real, vital.
Aqui surgiu outra pergunta: mais como a existência do senso
comum desperta para a necessidade do questionamento essencial?
Pelo esgotamento, pelo bloqueio ocorridos no próprio seio
da existência do senso comum. Dali o sentido ‘positivo’ dos fenômenos como
tédio, angústia, esvaziamento do sentido, crise, etc... ou pela invasão e pelo
impacto vindos de fora, do encontro com uma outra dimensão mais forte, e
originária.
A partir dessa discussão ficou-nos claro o seguinte:
O que Heidegger chama de verdades vitais da existência
autêntica, onde as ocorrências são manifestações espontâneas e dinâmicas da
plenitude da Vida.
A existência do senso comum em Heidegger já está numa
situação de decadência e fossilização.
Essa situação é a situação histórica da estrutura
‘ocidental’ que é a estrutura da ‘ratio’.
Para que nessa estrutura de ratio surja a dimensão do
questionamento essencial é necessário imergir na situação da existência do
senso comum, para levá-lo ao esvaziamento, na esperança de que dali surja a
chance de aprofundamento.
Reflexão
para ambos os seminários
A filosofia, segundo Hegel, é o ‘mundo às avessas’, visto a
partir da sã razão humana (Cfr. Que é Metafísica, capítulo 1o). Em
vez de sã razão humana podemos dizer ‘o senso comum’.
O senso comum é a nossa existência cotidiana, cara a cara
com a realidade. É o senso prático, concreto, palpável, o mundo da verdade
real.
A Filosofia para esse mundo de realidade é um mundo
abstrato, inútil, e sem eficiência real. Para a descrição dessa oposição entre
a existência do senso comum e a existência filosófica cf. a introdução do livro
Sobre a essência da verdade.
Por que o mundo às avessas? As avessas indica a direção
oposta ao normal. Às avessas é o outro lado daquilo que estamos vendo. O
filósofo em relação ao homem do senso comum é aquele sujeito que anda de pernas
para o ar e a cabeça para baixo, como quem anda dando continuamente
cambalhotas. Se o senso comum vê que as montanhas estão firmes, assentadas
majestaticamente nos seus alicerces inabaláveis, o filósofo, como vê tudo às
avessas, de cabeça para baixo, vê as montanhas penduradas, como que ameaçadas a
cada momento de cair, de se precipitarem no abismo sem fundo do céu. Você já
imaginou que se não fosse a atração da terra, todas as coisas soltas cairiam
para cima? (Cf. G. K. Chesterton, S.
Francisco de Assis, também o livro: O
homem que era quinta-feira).
O característico do homem do senso comum é a sua
objetividade.
Objetividade aqui significa: virado para o objeto, para o
ser. Virado, enfocado para a coisa diante de si. É real. É rea-lista. É coisista. Está dirigido, fascinado,
apossado pelo ente. Certamente, ele é também ‘subjetivo’. Ele se olha a si
mesmo e se define: eu sou o sujeito. Mas ao fazer isso, ele está dirigido a si
mesmo como a um ente real (res: objeto), a um objeto ele tem a pre-tensão de
captar o subjetivo objetivamente.
A existência do senso comum, portanto, é uma existência sobre
a coisa. A Ex-sistência, abertura sobre a coisa. Para isso, o pensar, o
falar, e o perguntar sobre: isso é ...; o que é isso? A verdade do senso comum,
portanto, é a verdade sobre.
A existência filosófica fica intrigada com tudo isso. Ela
se pergunta: Por que é que o senso comum não é capaz de captar a si mesmo a não
ser objetivamente, a não ser objetivando-se como objeto? É necessário sempre e
absolutamente falar, pensar e perguntar sobre? Não haveria a
possibilidade de não pensar, falar e perguntar – sobre, mas a partir de si
mesmo?
O que é esse sujeito que se chama a existência-do-senso-comum,
existência que se estrutura como abertura, à tensão para o ente, como
pré-ocupação, como diligência, como elan debruçada sobre a mesa, sobre o ente?
Essa estrutura ela mesma deve ser também objeto necessariamente? Ou não será
uma “realidade” que está ‘além’ ou quem sabe para ‘aquém’ da existência
objetiva, portanto, também do subjetivo objetivista da existência do senso
comum?
Se para o senso comum, a res, a realidade, o objeto é um dado
a partir do qual tudo enfoca, tudo ordena e constrói, para a existência filosófica
ele é por assim dizer o término de uma tendência, por assim dizer o pro-ducto
de uma abertura. Abertura que é um dado, um estar-ali antes do objeto.
A existência do senso comum dirige a, se encontra com os
entes, vive e opera no meio deles, se ocupa com eles, considera-se ela mesma
como um ente entre os entes. Mas não percebe que tudo isso é possível porque já
está ali aberto um mundo, dentro do qual algo como isso ou aquilo se torna
possível e recebe um sentido.
A existência filosófica não se interessa por isso ou
aquilo, não por ela ser abstrata, mas porque ela percebe que, anterior a isso
ou aquilo, é necessário se preocupar da abertura, da totalidade em que isso ou
aquilo é necessário se preocupar da abertura, da totalidade em que isso ou
aquilo aparece e tem sentido como isso ou aquilo.
Com outras palavras, a filosofia não se dirige a coisa, mas
sim à possibilidade das coisas, às condições fundamentais que possibilitam as
coisas.
Coloque-se agora na situação de uma vaca, de um boi ou se
quiser de um coelho. Você vê tudo sob o enfoque do capim suculento. A
realidade, os entes para você, se constituem de diferentes modalidades de
capim, a realidade das coisas são medidas segundo o grau de intensidade de
‘suculência’. Num mundo assim constituído, a medida do real é a suculência. Uma
pedra, por exemplo, não existe, não é real, e se real, ela o é somente enquanto
tem referência à suculência, aqui sob o aspecto de ‘não-capim’. Você já viu um
coelho comendo uma catedral de pedra? Você (enquanto coelho, vaca, boi) vê uma
rosa. Você dirá: que gostosa! A beleza é não ser. A beleza é não-tragável.
Portanto, na dimensão, no mundo, no horizonte da suculência, a rosa enquanto
bela não existe. Como você está só virado, aberto às coisas enquanto
suculência, o real, o prático, o palpável é o ‘comestível’. A partir dessa
realidade, tudo quanto não é comestível, ou não existe ou está fora do mundo,
ou é abstrato, irreal, não prático. E se existisse uma vaca que começasse a
desconfiar que a sua realidade é um mundo irreal, é uma vaca des-locada, fora
do real, o seu mundo é ‘as avessas’. Mas a vaca filosófica, como teve a
intuição da situação a partir da qual algo como rosa se torna real só enquanto
comestível, dirá: vocês deveriam ver o seu mundo às avessas, pois às avessas
significa: ser fundamental, ir às raízes do mundo comestível.
Você não é vaca, nem boi, muito menos um coelho. Você é
homem. Mas como homem, você está virado para as coisas, chama tudo de ente, de
objeto. Você pode reduzir tudo quanto encontra a um último núcleo de
compreensão: o ente. De tudo você pode dizer: é, é algo, é coisa, é objeto, é
ente. Será que a sua situação é diferente à da vaca, à do coelho? Em vez de
‘comestível’ diz você: é ente.
A partir de que, donde, de que situação fala você?
O que possibilita que você tenha esse tipo de abertura na
qual tudo lhe aparece como ente? Não somos prisioneiros de uma dimensão, não
somos cativos de um tipo de totalidade, onde devido à nossa limitação, não
somos capazes de ver e perceber ‘realidades’ que estão diante do nosso nariz,
porque não somos capazes de operar a não ser dentro do horizonte do ‘ente’? Mas
o horizonte que não é do ente, será que é ainda horizonte? O que é afinal?
O primeiro capítulo de Que
é Metafísica? nos coloca no centro dessa desconfiança. Desconfiança que nos
torna questionável a coisa mais óbvia do mundo comum. Torna problemático, torna
digno de questionamento, o fundamento mais evidente de todo o nosso pensar,
falar e ser. Será, no entanto, tão evidente?
A partir desse questionamento, o conceito de nada começa a
tomar uma importância vital. Pois o nada parece ser uma ‘realidade’ que não se
encaixa dentro da dimensão do ‘ente’.
O que é afinal o nada? Por que tudo é ser e não nada?
Essa reflexão baseada no Que é Metafísica? vale também para os que fazem o seminário de
Sobre a Essência da Verdade. Pois, a mesma reflexão vale para o que ali dissemos
de: falar sobre a verdade e falar a partir da verdade.
5a
Reunião: Sobre a Essência da Verdade
Favor ler o segundo capítulo que fala da possibilidade
interna de concordância. O texto no começo é fácil de entender. Começa a ficar
difícil, quando começa a determinar mais detalhadamente em que consiste a
concordância entre a enunciação e a coisa.
Peço que leia o trecho mesmo que seja difícil. Não largue a
idéia de que é você que deve descobrir o sentido do texto. A descoberta,
por pequena que seja, se for sua, é de máximo valor. A seguir, somente algumas
reflexões para talvez facilitar (ou dificultar?) a abordagem do texto:
1a Reflexão: A dificuldade principal na
compreensão do texto somos nós mesmos. Quando falamos de, ou ouvimos falar de
conhecimento, objeto, coisa, comportamento, adequação, etc. já temos uma
determinada imagem pré-estabelecida, ‘epistemológica’ ou ‘psicológica’, de tudo
isso. Por exemplo: quando dizemos, ‘esta pedra’, eu a pressuponho como algo ali
existente anterior a mim, como se pedra fosse sempre pedra como ela está ali na
minha frente, como se bastasse eu simplesmente captar a sua imagem como ela é.
Ou quando falo da imagem da pedra, eu me imagino à guisa de uma máquina
fotográfica que recebe, na câmara interior, a imagem do objeto exterior.
Heidegger diz: é necessário suspender a fé nessa pré-compreensão para intuir a
‘realidade’ como ela é. (na linguagem da filosofia contemporânea essa suspensão
se chama ‘redução’; e volta à intuição direta da realidade: ‘volta-à-coisa-ela-mesma’).
O que Heidegger faz nesse capítulo 2 não é outra coisa do
que analisar a estrutura de um jogo (S e P), quando dizemos por exemplo esta
pedra é quadrada.
O termo chave usado por Heidegger é Vor-stellen. Vor-stellen
significa colocar na frente. No texto português temos apresentar,
representar, ou presentar. Pode-se também: objetivar, apreender,
conceber. Em esses termos como apresentar (ad-presentar),
representar, objetivar, apreender, conceber etc; o pivô da questão está em Vor-stellen, isto é, colocar na frente =
fazer com que apareça.
Você aponta para a pedra e diz: isto é pedra. O ‘isto aqui’
é colocado na frente como pedra. Mas, antes, já ao apontar e dizer ‘isto
aqui’, coloquei o ‘apontado’ como ‘isto aqui’ na frente. Experimente perguntar:
o que é afinal esse X-coisa que está ali como núcleo de todas as atribuições
que eu faço dele? Essa coisa X não se perde no infinito, sempre para frente? Portanto,
ao dizer: isto aqui é pedra, como coloca o ‘ente’ na frente, faz aparecer assim
como pedra. E dessa pedra que lhe aparece, que lhe vem ao encontro, como
pedra, você diz adiante é quadrada, pesada, granítica, etc. etc. Todos esses
qualificativos (o assim como) que você vai atribuindo à pedra são como
que explicações de uma abertura criada pelo fato de esse ‘algo-X’ lhe parecer assim
como ele é. Portanto, anterior às atribuições e enunciações que você faz
das ‘coisas’, já está ali um relacionamento, um comportamento dentro do qual
algo lhe aparece, algo que vem ao encontro, se lhe resiste assim como
ele é, se torna ob-jecto.
A possibilidade de eu me relacionar com o objeto depende
dessa abertura, na qual o ente se coloca como ob-jeto na minha frente e se me
apresenta assim como ele é. Que abertura é essa? Que abertura é essa a
partir da qual eu posso fazer um juízo como esse: essa pedra é quadrada? É
a questão colocada no fim do capítulo 2 (dois) e que introduz no capítulo 3
(três).
2a Reflexão: Nós, em geral, somos
ingênuos no que se refere à objetividade. Pensamos: o objeto está ali; eu posso
conhecê-lo objetivamente. O conhecimento objetivo é o protótipo da verdade!…
Heidegger pergunta: a partir de onde fala essa “mania” de objetividade? Ver o
ente como objeto objetivo não é já um comportamento, uma referência determinada
ao mundo, uma abertura especial para com o mundo que já é uma tomada de
posição? O que acha você?
Quais são os critérios de objetividade? Não existe também o
objetivo do subjetivo? O que significa nesse caso o objetivo?
3o Reflexão: Quando falamos de colocar na frente
(vor-stellen) o ente como objeto (em
português apresentar = adpresentar) não devemos pensar só nos casos de
objetivação coisista, como por exemplo, esta pedra na minha frente. Esta
objetivação não é senão uma das modalidades de objetivação num sentido mais
pregnante de tornar-se consciente numa acepção carregada de: sentir o peso
da presença.
Por exemplo, quem ama vê mais do que quem não ama, isto é, o amor
abre uma ótica, na qual certos aspectos se me tornam presentes de uma
forma nítida, se tornam objetivados, ao passo que para quem não tem essa ótica,
tais objetos não surgem assim como eles são, não existem.
Experimente mudar o seu modo de ver e considerar, por exemplo, alegria,
contrição, ódio, angústia, fome, sede (fome e sede de justiça!), trabalho,
preguiça, curiosidade, ambição, etc, etc não como atos psicológicos e sim como óticas,
oculares, referências ao mundo, como registros de ser,
como horizontes, onde se abrem diversas possibilidades de novos tipos de
objetos.
Depois de ler o que está ali em cima, examine-se a si mesmo.
Desconfio que você entendeu tudo ‘subjetivamente’, isto é, como se esse ocular,
essa abertura, fosse um ato meu, um ato psicológico, subjetivo. Mas atenção.
Percebe você que ao dizer isso, ao conceber você assim como sujeito do ato
subjetivo, você se objetivou e colocou a você mesmo como algo na sua frente?
Sua frente? Frente de quem? Pense muito nesse ponto, experimente quebrar a
cabeça com esse fenômeno. É importante para você entrar no modo de pensar
contemporâneo.
Tarefa
para a seguinte reunião
1. Ler o capítulo 2 até
você suar frio, tentando compreender todas as frases ali ditas e explicá-las
com suas próprias palavras.
2. O I grupo, dar dois
exemplos, bem marcantes, de objetivação no sentido de uma abertura da ótica.
Descrever, em detalhes, esses fenômenos.
3. O II grupo estudar bem o
texto do 2o capítulo para ver se consegue estar de prontidão a fim
de usar os exemplos de grupo I para ilustrar e explicar o texto do 2o
capítulo.
A
Teoria do Conhecimento
A denominação teoria do conhecimento designa imediatamente
que se trata de um conhecimento sobre o conhecimento.
Se interpretamos a teoria como um conjunto de doutrinas,
conhecimentos certos e hipóteses, organizados sistematicamente, podemos dizer:
a teoria do conhecimento é uma disciplina científica que tem como objeto o
conhecimento. De fato, dentro da organização institucional do ensino filosófico
nas Universidades, ela é uma das disciplinas filosóficas. Disciplina, aliás,
ainda relativamente nova. Chama-se também epistemologia (doutrina do
saber), gnosiologia (doutrina do conhecimento), noética (doutrina
do pensamento) ou criteriologia (doutrina dos critérios da verdade).
Como disciplina, a teoria do conhecimento, constitui um cabedal de
doutrinas, conhecimentos e hipóteses sistematicamente agrupados. O centro
sistemático de tal agrupamento, o enfoque, a pressuposição
fundamental de tal conjunto (e, por conseguinte, a explicação, o cunho do
próprio conjunto) varia conforme a posição de cada autor, de cada escola
filosófica ou da época. Se tenho, por exemplo, como a pressuposição fundamental
a psicologia mecanicista do século
passado, hei de explicar o conhecimento como um fenômeno psíquico que funciona
conforme a lei mecânica, explicada conforme a concepção mecanicista. A teoria
do conhecimento se torna assim um ramo da psicologia. Poder-se-ia, portanto,
concluir que cada autor, cada escola, cada ciência e cada época tem a sua
teoria do conhecimento.
Mas, por outro lado, podemos fazer as seguintes reflexões: o
conhecimento é um fenômeno objetivo.
Coloco esse objeto na minha frente como objeto de investigação.
Um objeto posso enfocá-lo sob diversos aspectos: tenho por exemplo
o aspecto fisiológico, psicológico, histórico, filosófico, cibernético, físico,
químico, psicoterapêutico, lógico, sociológico, etimológico, etc. Todos esses
enfoques constituem uma ciência. Se eu ajuntar os conhecimentos de todos esses
aspectos tenho a Teoria do Conhecimento.
Você vê logo a dificuldade de um tal empreendimento. Pois surgem
imediatamente perguntas como essas:
- Como ajuntar num sistema coerente tantos aspectos e
enfoques
diferentes? Basta simplesmente
justapor essas explicações heterogêneas como um tapete de retalhos? Se isto não
basta sob que ponto de vista, sob que enfoque vou organizar todos dados
diferentes? Com outras palavras: qual é o enfoque, o objeto formal da Teoria
do Conhecimento?
- Todos esses enfoques das diversas ciências, todas essas ciências
são por sua vez também conhecimentos. Pressupõem, portanto, o conhecimento como
algo já conhecido, óbvio. As ciências estão, portanto, dentro de uma
determinada posição geral a respeito do conhecimento e, a partir dali, já dentro
do horizonte dessa sua posição, elas investigam o seu objeto. Assim não podem
sair de si para investigar a si mesmas de fora, como conhecimento. Para
investigar as ciências, como conhecimento, seria necessária uma outra ciência
que tivesse essas ciências como objeto, e as enfocasse quatenus conhecimento. Mas então volta de novo a pergunta: o
que é, como é o enfoque da teoria do conhecimento?
A teoria do conhecimento do passado não faz reflexões básicas que
poderiam elucidar essas perguntas acima mencionadas. Por isso, ou era de fato
justaposição fragmentárias de conhecimentos heterogêneos, ou era simplesmente
uma explicação do conhecimento a partir de uma posição filosófica já assumida.
Assim temos, por exemplo, a epistemologia tomista, escotista, positivista,
idealista, etc.
Devido a essas dificuldades e à falta de uma penetração fundamental,
a teoria do conhecimento, como disciplina, perdeu a sua cotação. Passou a ser
considerada como tema da História da Filosofia, por exemplo, a teoria do
conhecimento em Franz Brentano, em S. Thomas, no Marxismo etc. E onde ela é
ainda cultivada ou se trata de um enorme amontoado tremendamente complexo de
explicações parciais fragmentárias ou de um enfoque particular filosoficamente
ingênuo a partir de uma tomada de posição não analisada.
Portanto, ao meu ver, a teoria de conhecimento considerada como
disciplina, como uma ciência, se ela quer ser uma explicação filosófica
do conhecimento, é algo muito problemático. Isto é: se torna um problema de
uma reflexão filosófica.
Na filosofia não se deveria, portanto, falar de teoria de
conhecimento, mas muito mais do problema do conhecimento.
Como problema, o conhecimento está intimamente ligado como o
próprio problema da filosofia. Pois a filosofia é conhecer. Ao fazer do conhecimento
um problema, a filosofia está perguntado pela sua própria essência: o que é
afinal a filosofia?
Aqui nesse círculo, nessa pergunta que pergunta sobre si mesma
está toda a dificuldade e o modo de ser sui
generis do conhecer filosófico, do conhecer filosoficamente o conhecimento.
Se a teoria do conhecimento quer ser filosófica, deve acabar numa
estrutura circular. Sair de um questionamento objetivo de uma coisa que está na
minha frente, chamada conhecimento, para se transformar num questionamento fundamental:
o que é afinal a própria filosofia?
Reduzir tudo a um estado de questionamento circular poderia ser a
tarefa da filosofia. Portanto, se na filosofia falamos da teoria do
conhecimento, então isso não significa fornecer conhecimento sobre algo existente,
de dar informações variegadas sobre o objeto conhecimento, mas sim de mostrar
que o conhecimento é um problema a partir de sua raiz. É nesse sentido que
dissemos acima: na filosofia não se deveria falar da teoria do conhecimento,
mas som do problema do conhecimento.
Poder-se-ia perguntar, que utilidade tem um tal empreendimento.
Em lugar de resposta, gostaria de expor um processo de
transformação da pergunta operada dentro da teoria do conhecimento. A exposição
é esquelética e simplificada. Pretende tão somente insinuar a ossatura do
problema.
Quando se fala de conhecimento, pensamos num determinado fenômeno.
Por exemplo, num sentido estrito da palavra, uma cabeçada na parede, a
apreensão do vermelho quente da gravata estrambótica, o gosto azedo da laranja
verde, o calafrio ao sentir na nuca uma aranha caranguejeira não são
conhecimentos. Antes denominamos com o termo ‘experiência’.
Conhecimento propriamente dito se estrutura num juízo: isto é...,
portanto S (sujeito) é P (predicado). Já quando perguntamos: o que é isso?
Funcionamos dentro de um esquema onde há o objeto diante de mim, sobre o qual
(objeto) perguntamos. A resposta é dada também na mesma estrutura, por exemplo:
isto é branco. Tem-se um núcleo de atribuição, ao qual atribuímos uma cor, uma
qualidade, uma propriedade, etc.
Se examinarmos de uma forma muito ingênua e simplificada essa maneira
de ser do conhecimento judicativo, percebemos que a concepção da nossa situação
é a seguinte : diante de mim existe um objeto (uma coisa) independentemente de
mim. Aqui estou eu, o sujeito que conhece. Eu atribuo a essa coisa diante de
mim a cor branca. E a cor branca pertence de fato ao objeto. Tenho o
conhecimento que a coisa é branca. Essa ‘coisa’, porém, contém vários aspectos,
os quais posso ir aos poucos descobrindo. Assim aumento o meu conhecimento.
Enquanto você sem muita suspeita ‘funciona’ dentro desse modo de ver as coisas,
não há problemas. Mas, um dia, você percebe que nem tudo que você atribui ao
objeto, de fato, pertence ao objeto. Você pode se enganar. Ao se enganar
redondamente sobre um objeto você leva um susto. De repente, naquela fé ingênua
que você possuía pelas coisas, entra um fenda. Você sente que o objeto, a coisa
é algo estranho a você. Percebe que existe uma distância entre você (o sujeito
do conhecimento) e o objeto. Objeto lá, eu aqui! Como é que o objeto lá entra
no meu conhecimento aqui? Como é que acerto a coisa? Como é possível o
conhecimento? O que é o conhecimento? O que é o objeto? O que é o sujeito do
conhecimento? Você despertou para o problema do conhecimento. De súbito, você é
assaltado por um terrível pensamento: que tal, se tudo, que penso ser assim,
não for assim, tudo que penso ser, não for? Se tudo for ilusão? Sonho? Projeção
de minha mente? O problema se torna dramático, quando o objeto do seu
conhecimento tem um significado vital para você: por exemplo Deus, certeza da
ciência para a qual consagrei toda a minha vida etc.
Notemos bem como o interesse da pergunta se transformou.
Antes você esteve dirigido ingênua e confiantemente para o objeto e perguntava
curioso, ávido de saber: o que é isso? Examinava, se corrigia e ia aumentando o
conhecimento sobre o objeto.
Agora, depois daquele surgimento repentino de dúvida o seu
interesse se virou sobre o próprio conhecimento e pergunta: como é possível o
conhecimento? Qual é o critério de
certeza do meu conhecimento? O que é afinal o conhecimento?
Ao questionar assim, você pode estar animado de um interesse
vital de adquirir a certeza do seu conhecimento. Procurará então colocar a base
da sua certeza ou no sujeito que conhece ou no objeto conhecido. Ou pode tentar
reconciliar o sujeito e o objeto de alguma forma por uma ligação. Dessas
tentativas surgem diversas tendências filosóficas que denominamos: realismo,
realismo crítico, idealismo, subjetivismo, etc.
Essa linha de investigação, porém, não se mostrou muito frutífera,
por isso, hoje está abandonada. E isso por seguinte motivo.
Antes de toda essa discussão, se o objeto tem a primazia ou o
sujeito, ao analisarmos o fenômeno conhecimento, percebemos que o sujeito e o
objeto e o seu relacionamento (= conhecimento) já são elementos constituídos,
formados de uma estrutura anterior.
Quando digo: eu sujeito aqui e o objeto lá na minha frente S–O, já
pressuponho que haja um campo aberto que possibilite algo como o sujeito
e o objeto e o conhecimento, uma área onde aparecem esses elementos.
Conseguir ver essa abertura é uma tarefa muito difícil que exige
um certo treino de reflexão intuitiva. Se você consegue compreender a filosofia
contemporânea ou não, depende justamente dessa intuição que consegue ver essa
abertura. Essa abertura recebeu o nome de Subjetividade ou Eu transcendental.
Com uma grande margem de simplificação, podemos dizer que hoje essa abertura
recebe muitas vezes também o nome de: Da-sein,
Existência, Situação. É uma abertura que constitui uma dimensão
de profundidade e não coincide com o eu empírico que está
contraposto ao objeto, pois é anterior a ele, mais originário. Essa abertura na qual cada ‘coisa’ recebe o
seu sentido peculiar é diferente conforme a época. Ela pode se chamar: eidos (Platão), energia (Aristóteles),
Substância (Idade Média), Espírito (Século XIX), consciência, Eu, Subjetividade
(Início do Século XX), Dasein, Existência (Século XX), Hoje em dia: função,
estrutura.
Notemos que o problema do conhecimento transformou-se na busca da
abertura funcional, dentro da qual o homem encontra o ente (incluindo-se a si
mesmo) e o coordena dentro de um mundo de sentidos que brotam da respectiva
abertura fundamental. O problema do conhecimento se torna o problema do Ser. E
o problema do Ser é o problema da Metafísica. O problema do conhecimento no
fundo é o problema da Metafísica.
Vemos assim que o interesse da busca se transforma de uma simples
busca de propriedade de um objeto numa indagação da profundidade do Ser.
Portanto, hoje, o interesse da filosofia em relação ao
conhecimento é tratado na perspectiva desse problema do Ser.
Continua, porém, existindo a teoria do conhecimento que não vai na
direção da profundidade do Ser, mas que constrói na direção do acúmulo de dados
informativos acerca do conhecimento. Essas teorias de conhecimento têm,
certamente, o seu valor. Mas, se você quer ter a última evidência de seus
fundamentos, é mister investigar na direção do problema do ser.
6a
Reunião: Sobre a Essência da Verdade
Uma sugestão reflexiva de como entender essa questão:
Eu tenho um objeto na minha frente. Digamos, uma roda de
bicicleta. Esta coisa toma uma posição em relação a mim. Se coloca de encontro
a mim.
O que quer dizer isto?
Dou um ponta-pé na roda da bicicleta. A roda se opõe (ob-põe) a
mim. Faz resistência. Cria um relacionamento. Mas nesse relacionamento de
ponta-pé a coisa toma posição ‘assim como’ obstáculo, resistência. A
roda da bicicleta no relacionamento no ponta-pé re-age, se ob-põe, vem ao seu
encontro como, coisa-dura-que-machuca-o-meu-pé. Ela não se ob-põe a mim
como uma peça de máquina.
A coisa, ao se me opor (ob-por = por-se de encontro a), se coloca
dentro de uma dimensão (inter-esse), de um âmbito aberto, onde essa
coisa recebe o sentido, aparece, se posiciona, se ob-jectiva como
resistência-que-me-machuca-o-pé. Está sob um determinado modo de posição.
Que seja um modo de posição ou ob-posição você o percebe logo que
compara esse modo de aparecer como resistência-a-ponta-pé com um outro modo
de aparecer como ‘roda-de-bicicleta’. O ponta-pé você não o dá na roda
da bicicleta enquanto (os escolásticos diziam: Qua ou quatenus = assim como)
roda de bicicleta, mas sim enquanto resistência-coisa.
Para que você possa se encontrar com essa coisa como roda
de bicicleta, ela deve aparecer, deve se colocar sob o modo de posição:
peça de máquina chamada bicicleta. Mas para se colocar, isto é, aparecer como
roda de bicicleta, esta coisa já deve estar dentro de uma dimensão, onde algo
como roda de bicicleta seja possível, tenha um sentido, uma função: dentro do
âmbito da máquina. Numa cultura onde não existe a abertura ‘máquina’, a
bicicleta jamais aparecerá, jamais virá ao nosso encontro como bicicleta. Ela
será talvez um gafanhoto esquisito supradimensional, por exemplo, dentro da
dimensão ‘natureza’.
Isto quer dizer: lá onde a roda da bicicleta aparece como
roda de bicicleta, isto é, como uma peça de máquina, esta coisa cobre, implica,
contém em si, descortina um âmbito aberto, um horizonte dentro do qual
ela pode vir ao nosso encontro como peça de máquina.
Portanto, ao se ob-por a nós como esta roda de bicicleta, esta
coisa, já me manifesta, simultaneamente, todo um horizonte, de inter-esse, cobre,
percorre um âmbito aberto, onde ela se torna possível, toma uma
posição e recebe um sentido.
Mas não é assim que abra simplesmente o horizonte ‘máquina’ e
fique nisso. Ela abre uma visão, um ocular, um horizonte,
uma perspectiva, todo um mundo chamado ‘máquina’ e ao mesmo
tempo se posiciona, se afirma, se estabelece como algo estável, como sentido fixo, dentro dessa
perspectiva.
Com outros termos: a roda de bicicleta exerce uma função dentro de
um todo que é bicicleta. Ela é peça, isto é, uma função estabilizada
materialmente. Esta função, porém, está em função de uma outra função
estabilizada, até constituir a bicicleta. Mas a própria bicicleta esta em
função de outra função e, assim, aos poucos temos uma rede imensa de funções
que constituem, digamos, o mundo da máquina. O mundo da máquina, o âmbito
aberto é algo como uma energética de expansão, uma espécie de elan vital.
As peças, as máquinas individuais são como que ‘materializações’, estabelecimentos,
fixações das funções dessa energética total, dessa abertura.
No termo ob-por, na partícula “ob” está insinuada a abertura, no
termo “por” o estabelecimento.
Essa abertura, esse âmbito aberto, no nosso caso, o elan, o poder,
a potência do mundo da máquina que com uma grande margem de imprecisão –
existem máquinas-instrumentos e máquinas tecnológicas – poderíamos chamar de
elan tecnológico, é um modo de ser, que não é criado pela apresentação,
isto é, por meu ato subjetivo de representar a coisa assim, nem pelo fato de a
coisa se me apresentar assim. É anterior. Eu posso me relacionar a essa
coisa assim, essa coisa se me apresenta assim, porque tanto eu como a
coisa já estamos dentro desse âmbito aberto, dentro desse campo de ralação:
do inter-esse.
O relacionamento entre a enunciação e a coisa já opera dentro desse
campo de relação, ou melhor, é a realização, a atualização, a concretização
dessa abertura.
Portanto, o que possibilita a manifestação de algo, assim como
peça de bicicleta é o âmbito aberto da técnica. E o que possibilita o
comportamento ou o relacionamento típico técnico para com a roda de bicicleta é
o âmbito da abertura ‘técnica’.
Por conseguinte, a abertura é anterior ao relacionamento. O
relacionamento deve, pois, adequar-se à abertura.
RECAPITULANDO
À primeira vista, quando falamos da verdade da enunciação,
pensamos assim: a enunciação (o meu conhecimento, o sujeito aqui, o juízo, a
frase) e o objeto (a coisa sobre a qual se faz a enunciação) e o relacionamento
entre a enunciação e a coisa (adequação,
comportamento).
Vimos que a enunciação e a coisa se baseiam no relacionamento (comportamento).
E esse relacionamento ou comportamento se baseia, se dá, no seio de um âmbito
aberto que poderemos chamar de horizonte.
O que se manifesta assim chamamos de ‘ente’, isto é, ‘aquilo que
está presente’.
Esquema
1. Enunciação
--------------------------ñ coisa
Adequação
ad
2. (enunciação)
-------------------------------ñ (coisa)
á-------------------------------
presentação
ad
3. (enunciação)
-------------------------------ñ (coisa)
á-------------------------------
presentação
½ ½
|----ñ comportamento á----|
ad
4. (enunciação)
-------------------------------ñ (coisa)
á-------------------------------
presentação
-----ñ comportamento á-----
âmbito
aberto – Abertura
O ente é aquilo que se torna presente no movimento de
ad-presentação do comportamento.
7a
Reunião: Sobre a Essência da Verdade
Um esquema do capítulo 3:
1o Passo: Algumas perguntas que
resumem a situação da problemática, exposta no capítulo 2, ressaltando o
arcabouço fundamental da questão.
Os passos da pergunta nos levam à tese: A essência da verdade é
liberdade.
2o Passo: A afirmação: a
essência da verdade é liberdade, o senso comum já a conhece: portanto nada de
novo!?
Para a busca da verdade você não deve ter a coação.
Liberdade da imprensa, liberdade de opinião, liberdade política,
religiosa, etc.! Atenção: essa compreensão do senso comum é superficial. Não leva a sério a afirmação: a liberdade é a
própria essência da verdade. A verdade é liberdade, a liberdade é verdade.
Uma tese aliás estranha, surpreendente ao nosso modo geral de
pensar! A tese... deve portanto, surpreender. Na surpresa, no entanto, eu me
desperto para a problemática...
3o Passo: O senso comum, no
entanto, é tenaz. Volta à carga, agora com uma outra objeção. E diz: mas como
isso é possível? Liberdade e Verdade, não se coadunam bem. Não é assim que a
verdade é a norma absoluta e objetiva, em si, acima do homem, segundo a qual o
homem orienta a sua liberdade? Se é assim, como pode a ‘verdade’ encontrar seu
apoio e fundamento na liberdade do homem? Não é isso uma perigosa tese do
relativismo e subjetivismo?
4o Passo: Essa objeção se
baseia num pre-conceito. Isto é, numa determinada concepção já preestabelecida
da liberdade humana. O que é liberdade do homem todo mundo sabe... Pois a
liberdade é uma propriedade do homem. O homem tem a liberdade. Sabemos nós?
Sabemos nós o que é o homem? É tão óbvio que o homem possui a liberdade? Ou não
é antes assim que a liberdade possui o homem? O que é, pois, a essência da
liberdade?
Resumindo: O que é a essência da verdade?
A verdade é a adequação da enunciação com a coisa.
A adequação da enunciação com a coisa baseia-se na ad-presentação.
A apresentação se radica no comportamento.
O comportamento se radica no âmbito aberto.
O âmbito aberto surge da liberdade.
Liberdade é a essência do homem.
A essência do homem tem o seu fundamento no SER.
Portanto: Com a
margem a uma imprecisão bastante grande podemos dizer:
A adequação da enunciação com a coisa está no campo da lógica.
A apresentação no campo da teoria do conhecimento.
O comportamento no campo da psicologia.
A liberdade no campo da antropologia.
O fundamento da essência do homem no ser está no campo da ontologia.
Assim a busca da essência da
verdade que inicia com a busca da adequação lógica, se transforma e termina na
busca do fundamento ontológico da essência do homem.
Uma reflexão:
Na p. 136/137 fala-se de ‘Liberar-se para uma medida que
vincula’. Para isso é necessário ‘estar libre para aquilo que está
manifesto no seio do aberto’.
A formulação de Heidegger só se torna compreensível se você
procura ver o fenômeno. Por isso é indispensável você tentar e-vocar um fenômeno
(experiência) que manifeste a evidência da formulação.
Quando falamos de liberdade, em geral a primeira coisa que nos vem
à mente é a liberdade de coação. Ser livre significa: não estar coagido, preso,
condicionado por ou de alguma coisa.
Aqui em Heidegger não se trata tanto dessa liberdade de coação.
Trata-se antes de liberação de coação, digo liberação de uma possibilidade, ou
melhor de abertura de uma possibilidade que cria todo um mundo de vínculos,
normas, valores, sentidos e obrigações. Mais do que livrar-se de alguma coisa,
trata-se da capacidade de assumir todo um mundo novo.
Imagine
por exemplo um missionário ocidental que entra em contacto com uma tribo de
índios nas selvas brasileiras. A partir do seu mundo ocidental, ele a considera
como um povo primitivo. Tenta compreendê-la, mas sempre de novo reduz o mundo
índio ao seu mundo ocidental, explica-a, interpreta-a a partir do seu ocular
europeu. Acha-a tola, primitiva, sem cultura, digna de compaixão, quer
promovê-la, convertê-la. Vive com ela, luta, trabalha, mas fracassa
‘pastoralmente’.
Certo dia, de repente, não sei como, ao ver um velho
feiticeiro fazer um gesto estranho, estala na mente do missionário um
experiência, uma intuição de que o velho está a viver a partir de uma concepção
fundamental totalmente diferente à sua, concepção cuja profundidade ele de
repente vislumbra, por um instante. Desde esse momento, muda a atitude do
missionário. Perde a segurança do seu julgamento, perde a altivez do europeu
‘desenvolvido’, percebe que está mais humilde diante do ‘outro’, se surpreende
com enorme desejo de se abrir para um-novo-e-um-outro mundo, que ele não
compreende. E, de súbito começa a sentir o mundo europeu como um obstáculo,
como um bitolamento que lhe impede de liberar o olhar para o outro como o outro
é.
Depois de muita luta, fracasso e boa vontade, ele percebe um dia
que se transformou. Ele sente que o seu olhar tornou-se dócil à medida do mundo
índio, percebe que não o interpreta de fora, mas como que se situa no meio
dele, e a partir da abertura originária desse mundo, deixa-se vincular,
deixa-se levar pela lógica interna que emana dessa experiência originária do
mundo índio. E des-cobre todo um mundo riquíssimo de sentidos, valores,
descobre uma lógica interna complexíssima que na sua flexibilidade e riqueza
supera de longe a lógica ‘clara’ e racionalista do seu mundo europeu. E o
missionário percebe que se desatou no seu âmago, abriu-se uma comporta de evidência
no seu ‘coração’, donde emana uma visão nova, libertadora de suas energias vitais.
Mais ou menos nesse sentido é que Heidegger fala aqui de
liberdade.
Experimente evocar na sua vida alguns outros exemplos desse
‘livrar-se para uma medida que vincula o estar livre para aquilo que está
manifesto no seio do aberto’. Por exemplo, o fenômeno simpatia, pudor, ver um
quadro de arte, compreender o outro, etc.
Experimente comparar esse conceito heideggeriano de liberdade e o
que você entende por liberdade.
Sugestão
de trabalho para a seguinte reunião:
1. Ler com muito vagar o capítulo 4, A essência da liberdade. Dizer em resumo, com as suas próprias
palavras, aquilo que você entendeu dessa leitura. Portanto, ler e mesmo que
você não entenda tudo, dizer, mas dizer mesmo, aquilo que você acha ter
entendido. E fazer isso de maneira bem precisa e resumida. Fazer isso em
particular. Depois, em grupo, cada qual expõe o que ele entendeu. Não
discutir quem tem razão. Mas procurar ver o que há de comum nas
compreensões dos membros do grupo. Fixar esse comum. No grupo, ao ouvir
o outro, cada qual anote o que achou interessante, novo, na compreensão do
outro. Depois dessa reunião, tente ler de novo o capítulo, para ver se entende
agora melhor o texto. Esse trabalho não precisa ser apresentado na reunião
seguinte, no seminário.
2. Para a reunião seguinte do seminário, cada qual em
particular tentar comentar as seguintes frases do capítulo 3, dando um
exemplo ilustrativo:
a) “A tese segundo a qual a essência da verdade... é a liberdade
deve, portanto, surpreender”.
Sugestão: a admiração é o começo da filosofia. A Bíblia diz: o temor de
Deus é o início da sabedoria. A surpresa pode ser também início do
conhecimento? Em que sentido? Pode dar um exemplo?
b) Como entender em miúdo a seguinte frase: “Esta origem humana da
não-verdade apenas confirma, por oposição, que a essência da verdade ‘em si’
reina ‘acima’ do homem”.
8a
Reunião: Sobre a essência da Verdade
I. O comentário do texto: “
A enunciação recebe sua conformidade… considerado como a essência da verdade”.
Sobre o ponto de vista abstrato-formal o texto diz:
1. A enunciação se conforma com a coisa.
2. Mas essa conformidade, ela, a enunciação não tem de si nem da
coisa-em-minha-frente.
3. Ela recebe essa conformidade da abertura do
comportamento.
4. Portanto, é somente através da abertura do comportamento que ‘o
que é manifesto’ se torna a norma, a medida diretora de uma apresentação
adequada, isto é, da adequação da enunciação com a coisa.
5. Isto significa: o comportamento na sua abertura já deve ter recebido,
já deve ter assumido algo como uma estrutura, algo como medida universal que
sirva de norma para toda e qualquer apresentação, isto é, para toda e qualquer
adequação da enunciação com a coisa.
6. Se é assim, então a
essência da verdade deve ser originalmente procurada não na adequação da enunciação
com a coisa ( = proposição, juízo), mas sim naquilo que possibilita essa
adequação, isto é, na abertura do comportamento que por sua vez assume a medida
universal da abertura originária, caracterizada por Heidegger pela formulação:
“o que é manifesto”.
NB.: São praticamente sinônimos os termos: apresentação, adequação
da enunciação com a coisa, juízo, proposição.
Resumindo: Originalmente temos o âmbito aberto como
‘o que é manifesto’. Esse âmbito dá a medida ao e comanda o comportamento. O
comportamento é por sua vez uma abertura que recebe a medida de sua abertura do
‘âmbito aberto originário’ e possibilita a adequação da enunciação com a coisa.
O que dissemos permanece no abstrato e formal.
É necessário concretizá-lo para termos uma intuição do fenômeno. Vamos,
pois, fazer uma tentativa de ilustração.
A tentativa:
A concepção tradicional da verdade coloca a essência da verdade na
proposição, isto é, na adequação da enunciação com a coisa.
Em vez de dizer a adequação da enunciação com a coisa podemos
dizer: adequação do intelecto e da coisa.
Dentro dessa concepção tradicional há duas correntes opostas.
Uma diz: A primazia está com a coisa. O intelecto
recebe a medida da verdade da coisa, ele se conforma com a coisa: é o
objetivismo.
A outra diz: A primazia está com o
intelecto. A coisa recebe a medida da verdade do intelecto. A coisa se conforma
com as formas inatas do intelecto. É o subjetivismo.
O subjetivismo e o objetivismo se opõem. São contrários. Enquanto
continuarem a se opor, não há saída para a questão. É como se fosse a oposição
entre duas pessoas, das quais uma diz: é preto, e a outra diz: é branco.
Preto...............................ñ
êá..............................Branco
Sujeito Objeto
Intelecto Coisa
Um exame mais crítico, no entanto, nos mostra o seguinte: tanto o
preto como o branco estão na oposição à base de um fundamento comum.
Esse fundamento comum é a tonalidade da cor que é a intensidade da
luz.
Tanto o preto com o branco são duas modalidades extremas da
tonalidade da luz. Tanto o preto como o branco tem a mesma
estrutura: a luz.
Conforme a intensidade da presença da luz que se chama claridade,
temos a tonalidade: preto, diferentes escalas de preto, cinzento, diferentes
escalas de cinzento, branco, diferentes escalas de branco.
Isto significa: entre preto e o branco não há propriamente
oposição. Existe sim uma escala de intensidade na claridade. Por isso, é
ingenuidade afirmar que o preto tem a primazia e serve de medida ao branco ou
vice-versa, que o branco tem a primazia e serve de medida ao preto.
A verdadeira primazia tem a claridade que serve de medida tanto
para o preto como para o branco.
Aplicando esse exemplo ao relacionamento intelecto e coisa,
sujeito e objeto, podemos dizer: sujeito e objeto são dois momentos de uma
estrutura ‘anterior’ que possibilita uma tal realidade como sujeito e objeto e
o seu relacionamento.
Até aqui creio que você acompanhou o pensamento. Façamos uma parada
aqui e revisar na mente se de fato você está vendo a realidade. Não é
assim que você diz: sujeito aqui, objeto lá, o relacionamento, e esses três
momentos têm uma estrutura comum? E imagina a ‘coisa’ assim:
Relacionamento
S à X ß
O
estrutura comum
Isto é apenas um esquema. Enquanto você não consegue
‘realizar’ como esse esquema funciona na realidade você não está vendo o
fenômeno.
Como funciona esse esquema na realidade?
Como é o sujeito? O objeto? O relacionamento?
Vamos e-vocar uma experiência. Existem encontros, nos quais nos sentimos
humildes. Por exemplo, você encontra uma pessoa pobre, sem muito estudo, simples,
talvez até marginalizada na sociedade. Digamos que ela é o empregado de sua firma
que tem a função de varrer büros. Sua linguagem é humilde, ele o trata de
senhor, é serviçal. Você o trata como um João-ninguém, impessoalmente, como um
operário da sua firma, uma peça insignificante no conjunto da sua firma. Certo
dia, você está de mau humor e descarrega a sua irritação sobre o empregado,
você o humilha injustamente. O pobre homem não reage, ele aceita a humilhação.
Mas, de súbito, você percebe que ele ao aceitar não se avilta não se torna
servil, você sente nitidamente uma transparência nesse homem, uma grandeza
humana: a dignidade. Há nele algo de superior, superioridade que não
se eleva humilhando-me, rebaixando-me, mas uma superioridade ontológica,
que está ali simplesmente sendo, singelamente como a rosa que floresce sem
porquê. E nessa transparência você sente um calor humano de compreensão. Ao
aceitar a humilhação o pobre me aceita não como ‘chefe’, como ‘superior’, mas
como uma pessoa mau humorada que precisa da compreensão do amigo. Há nessa
aceitação do pobre algo de cordial, amor de simpatia pela minha fraqueza, uma
doação generosa que vem ao meu encontro como serviço gratuito e livra à minha
pessoa humana. E, de repente, compreendo o que é humildade. A essência da
humildade se torna presente, se ad-presenta, se torna ‘objetiva’ não como
coisa, não como idéia abstrata, mas como ‘o que é manifesto’ na concreção dessa
pessoa.
Para você que quer compreender o que é a ‘essência da
verdade’ é de máxima importância ver que esse ‘o que se manifesta’ não é a
coisa ‘esse sujeito humilde ali’. Esse empregado na minha frente é como que o
representante da dimensão de profundidade chamada humildade, é o lugar de
concentração da humildade. Certamente, a dimensão-humildade não é algo separado
dessa pessoa, pois, é nela que se torna presente na nitidez e plasticidade da
sua manifestação, mas não é uma qualidade que esse sujeito diante de mim possui
como uma propriedade psicológica. Antes, pelo contrário, é a Humildade que
‘possui’ essa pessoa como humilde, isto vem porque ela está, aparece à luz
desse ‘o que é manifesto’, ‘a Humildade’.
Essa presença da Humildade me transforma. Ela me faz também transparente,
me faz aceitar a aceitação do pobre com gratidão, com a gratidão de quem
recebe, eu me sinto não como superior, como poderoso, mas sim como alguém que
se abre com gratidão à simpatia do outro. Com outras palavras tomo a mesma
atitude do pobre empregado, me torno humilde, surjo como ‘objeto’ dentro da
mesma dimensão humildade que envolve o empregado. Assim entre mim e o
empregado, surge um relacionamento, um comportamento chamado: aceitação mútua
na simpatia e generosidade gratuita.
Tanto eu como o empregado e o relacionamento somos como que três
momentos de concretização de uma mesma luz daquilo que é manifesto: da humildade.
A humildade é o âmbito aberto, no qual se torna possível
algo como eu humilde, o empregado humilde em relacionamento humilde, em cujo
seio concreta e viva se torna presente a medida da humildade como aquilo que é
‘manifesto.
II. Algumas
sugestões para a interpretação do capítulo 4: A essência da liberdade.
1. A reflexão anterior sobre a Humildade foi uma tentativa
de insinuação como devemos entender ‘o que é manifesto’.
A reflexão evoca um trecho já analisado por você no
capítulo 2: ali se diz: “Todo o comportamento, porém, se caracteriza pelo fato
de, estabelecido no seio do aberto, se mantém referido àquilo que é manifesto
enquanto tal. Somente isto que, assim, no sentido estrito na palavra está
manifesto, foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental como ‘aquilo que está presente’ e já desde há
muito tempo, é chamado ‘ente’.”
De fato, os gregos chamados de ente (ón, ontologia) a totalidade daquilo que se manifesta, se revela, se
mostra, se torna visível nele mesmo. A totalidade daquilo que está à luz, ou
que pode ser trazido à luz do dia.
O que se manifesta, se mostra, se revela como aquilo que é
nele mesmo!
Essa formulação, porém, é abstrata.
O que quer dizer essa formulação em concreto?
A chave da questão está na formulação: como aquilo que é nele
mesmo.
Vamos refletir sobre esse ponto, à mão de um exemplo já
batido.
Vejo uma rosa. O que é a rosa naquilo que ela é nela mesma?
Nela mesma. Nela. Em ela. Isto significa: a rosa é algo que está dentro
dela mesma. Dentro de quê? Dela mesma? Um absurdo incompreensível, jogo
abstrato de palavras? Sim. Mas isto acontece, porque as nossas palavras são
incapazes de nos comunicar o que está manifesto diante dos nossos olhos.
Antes de prosseguir na nossa reflexão, é necessário nos
conscientizarmos de um entrave que nos dificulta a compreensão. Esse entrave é
a nossa pre-compreensão cotidiana que funciona em nós inconscientemente, quando
colocamos uma pergunta como essa: o que é a rosa naquilo que ela é nela mesma?
Experimente formular essa pergunta e se examinar: como
concebe a realidade ao fazer essa pergunta? Não é assim que ao dizer ‘o que é a
rosa’ eu já tenho na mente um esquema pré-concebido da realidade como algo que
está pronto na minha frente, algo-rosa que tem atrás da aparência sensível um
núcleo chamado essência ou substância, núcleo que constitui aquilo que a rosa é
em si?
Da existência de uma tal pre-compreensão devemo-nos
conscientizar e neutralizar assim a sua influência. Pois essa pre-compreensão
nos bitola o olhar e, de ante-mão, nos impede a visão livre daquilo que se
manifesta ele mesmo.
Uma vez imune da influência dogmatizante dessa
pre-compreensão, a primeira coisa que vemos é que a rosa se manifesta cada vez
diferente, conforme a dimensão em que ela se revela a si mesma. A rosa é pão na
dimensão da pobreza de um vendedora, filha na dimensão do jardineiro, a bela do
seu coração, para a dimensão do Pequeno Príncipe, Deus na dimensão mística de
um Angelus Silesius.
A rosa não é em si, já pronta, como coisa. Ela se manifesta
cada vez diferente, se revela naquilo, isto é, na dimensão em que ela
aparece cada vez diferente como ela mesma.
Descobrir as diferentes dimensões, abrir e descortinar
diversos horizontes, onde, à cuja luz, à cuja claridade a rosa se manifesta na
sua significação, cada vez diferente, límpida, sem confusão de dimensões, isto
é fazer aparecer o ente, deixar-se o ente, fazer de algo um fenômeno, deixar
o ente ser naquilo que ele pode ser.
Mas, se é assim, não existe a rosa em si?
Não existe a rosa como aquilo que ela é em si mesma? Qual a
rosa entre as diversas dimensões possíveis de rosa, a rosa por excelência? Onde
ela se revela de maneira mais evidente como ela mesma?
Essa pergunta não pode ser respondida de ‘fora’ de um modo
geral. A resposta só é possível na intuição concreta, factual. Em que sentido?
Como?
Imagine por exemplo um S. Francisco, toda a luta pela
conversão, dias de dúvida, angústia, oração, busca do sentido da sua vida. Todo
o processo de despojamento e transformação, até aquele momento, onde grita
diante do bispo de Assis e de seu pai Pedro: Pai nosso que estais nos céus... O
jovem Francisco, depois dessa cena, ao vagar pelas ruas da cidade, encontra
entre os escombros de um muro, uma rosa silvestre, singela, alegre, abandonada
à gratuidade da existência. Sem o para que, sem o por que, simplesmente ali
como graça. O jovem Francisco para diante dessa rosa e agrade. A rosa se
lhe revela como a concentração viva, cristalização cósmica do sentido do universo:
Abba, Pai! A rosa aqui se revela como aquilo que ela é nela mesma na máxima concentração,
como a quinta essência, como o princípio, a fonte do sentido do universo.
Passa por ali um botânico. Ele diz para si: uma rosa, uma
planta, uma coisa viva, orgânica, celular, composição química etc.
O que é mais rosa? A planta ou a concentração cósmica do
sentido da Vida? Heidegger dirá: a rosa de S. Francisco é mais rosa, talvez a
rosa por excelência, porque concentra mais intensamente o sentido do ser. Ali,
a rosa se manifesta, se revela como ela mesma naquilo que ela é a partir de si
como ela mesma. É o que é manifesto.
Essa rosa, no entanto, não deve ser ‘interpretada’ como
sinal, como indicação para algo que está além dela. Não é assim que tenho
primeiro uma doutrina sobre a gratuidade do Amor do Pai e aplico esse
conhecimento à rosa, chamando-a de um símbolo, de uma figura.
Trata-se de uma intuição, trata-se de um ocular que se
rasga no ser, onde a rosa ela mesma nasce, surge, se revela como a presença
viva e concreta do amor gratuito do Pai, de tal sorte que posso dizer: a rosa é
a dimensão graça, é todo um mundo chamado graça.
O ente neste sentido coincide, portanto, como a dimensão
que na filosofia atual se chama: coisa-ela-mesma. E a coisa-ela-mesma não é
algo como objeto, mas a presença da intensidade do ser como a dimensão
concretizada da profundidade humana.
Esta profundidade humana, da qual o ente recebe o seu
sentido, é a “experiência de um fundamento original oculto do homem” que se
chama ‘ser-aí’, ou Dasein. Esse ser-aí
chama-se também Liberdade. E a liberdade se define: “o que deixa-ser o
ente” (p. 32).
Liberdade como deixar-ser-o-ente significa: fidelidade,
docilidade, doação ao “que é manifesto”, à abertura originária que se chama alétheia.
2. O texto: “o entregar-se ao caráter... tem o caráter de
desvelado”. Como entender essa frase? E principalmente como entender a
estrutura da ex-sistência? Talvez um exemplo possa nos servir de apoio para
compreender esse texto.
Antes dissemos que o comportamento não deve ser entendido
como um ato psicológico de um sujeito já pré-existente como uma substância
coisa.
O termo comportamento designa a totalidade de correlação eu-objeto-
relacionamento, constituída na dinâmica processual de ad-presentação. É no
comportamento que surgem o eu, o objeto e a relação.
Esse surgimento do eu, do objeto e da relação, podemos
chamar – com risco de ser entendido psicologicamente – de consciencialização.
Por exemplo, o viver assim ao léu, na onda dos
acontecimentos, não é propriamente comportamento. Vegetar na vida também não é
comportamento.
No comportamento há sempre uma ex-posição.
Uma tomada de posição, a partir de um despertar para o que
está além do estado factual de mim mesmo.
Vamos ilustrar o que dissemos com um exemplo.
Estou no refeitório e, no meio de um zunido indefinido,
murmuro sem entusiasmo o Pai Nosso. O
meu pensamento anda não sei onde, um cansaço agradável de estômago cheio toma
conta de mim e o Pai Nosso que estou pronunciando não é outra coisa do que o
murmúrio confuso no qual flutuo meio sonolento, entediado.
Você abre um livro – relatório do campo de concentração em
Saigon. Câmaras de tortura, fossa de concreto armado, onde os prisioneiros vivem
– se é que isso ainda é viver – um estado infra-animal. Você abre o jornal:
guerras, lutas, seqüestros, assassínios, injustiça, roubo, destruição absurda e
cruel. Você abre o livro de História: uma corrente ininterrupta de matança,
prepotência, opressão dos pobres. Você abre os olhos ao seu redor. E de repente
passa-lhe pela cabeça a oração: Pai Nosso... a tese: Deus é Amor... o slogam:
Deus é bom, é Pai... tome a sério a realidade-noite da Terra dos homens. Tome a
sério que cada uma dessas pessoas esmagadas é seu pai, sua mãe, seu irmão, sua
irmã, seu filho, sua filha. E reze então o Pai Nosso... chame a Deus que tudo
isso permite, de Pai, se você puder... Ele é Pai? Não é também
todo-poderoso?
A oração Pai Nosso se me torna infinitamente difícil,
pesada. Ele se manifesta como realidade, nitidamente, brutalmente como
um soco no estômago. Para você dizer Pai Nosso, você se expõe a uma
tremenda aventura de auto-superação. Antes, o Pai Nosso era um epifenômeno, uma
sensação de sonolência indiferente, irreal do meu eu. Agora, de repente, estou
como que colocado na parede, encurralado, na iminência de me expor ao que é
manifesto, de assumi-la, isto é, de ‘entregar-se ao caráter de ser revelado’.
Você está numa situação onde é colocada a exigência: diga Pai se você pode!
Esse poder é uma nova relação com você mesmo. É um novo
comportamento para com você mesmo.
Você deve assumir todo seu ser de até então, para se ex-por
à nova abertura que lhe dita a medida de decisão. É, pois, a Liberdade.
Na medida em que você pode ‘entregar-se’ ao que se manifestou como Pai,
na medida em que você se auto-supera e se transcende para o revelado, na
medida em que consegue se abrir à face terrível do Pai, você ex-siste, você é.
Esse ex-sistir é, portanto, um recuo. Quando você
rezava no refeitório, você não recuou diante do ente. Vivia num simbiose
amorfa, sem ‘consciência’ do que é o Pai Nosso. Agora, nessa exposição,
o ente Pai se lhe manifesta como objeto da sua decisão, se manifesta
nitidamente como a realidade a que você deve se expor, colocando em cheque o
eu, para se abrir à estrutura da auto-superação como a transcendência de si
mesmo na entrega ao ‘revelado’. Recuo no sentido de tensão-despertadora que faz
aparecer o objeto nitidamente diante de você como exigência de decisão.
Essa estrutura que Heidegger chama de Da-sein (ser-aí), Ex-sistência, Transcendência, é a essência da
Decisão, isto é, da Liberdade, e
constitui a ‘experiência de um fundamento original oculto do homem’!
Sugestão
de trabalho para a seguinte reunião:
1. Ler o capítulo 4, à mão dessa apostila.
2. Ler especialmente analisando frase por frase o texto:
“A liberdade foi primeiramente determinada como... ---
abertura do aberto, isto é, a ‘presença’ (o ‘aí’) é o que é”.
3. Tentar então compreender o que significa: deixar-ser
o ente.
4. consegue na sua própria vida e-vocar uma experiência
onde você deixou-ser o ente?
5. Em grupo, peço fazer um trabalho que talvez seja um
tanto difícil, mas que é bastante fascinante, ao menos para mim:
O Punhal.
À Margarida Bunge.
Numa gaveta há um punhal.
Foi forjado em Toledo, em fins do século passado:
Luís Melian Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do
Uruguai; Evaristo Carriego segurou-o algumas vezes.
Aqueles que o vêem sentem necessidade de brincar um pouco
com ele; percebe-se que há muito o estavam buscando; a mão se apressa a apertar
a empunhadura que a espera; a folha obediente e poderosa movimenta-se com
precisão dentro da bainha.
O punhal quer outra coisa.
É mais do que uma estrutura feita de metais; os homens o
pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de um certo modo eterno, o
punhal que ontem à noite matou um homem em Tacuarembó e os punhais que mataram
César. Quer matar, quer derramar sangue brusco.
Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, o
punhal conta interminavelmente o seu simples sonho de tigre, e a mão se anima
quando o dirige, porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente
o homicida para o qual os homens o criaram.
Às vezes me dá pena, tanta dureza, tanta fé, tão tranqüila
ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.
Borges, Nova Antologia Pessoal p.
66.
Este trecho é do escritor e filósofo argentino: Jorge Luís
Borges. Aqui temos um exemplo de ‘deixar-ser o ente’. Borges deixa-ser o punhal
naquilo que é manifesto como punhal.
Refletindo o que Heidegger diz de Liberdade como deixar-ser
o ente, será que você consegue ‘ver’ por que esse texto é um exemplo para o
‘deixar-ser-o-ente’, portanto para a liberdade?
Ler o texto de Borges, tentando entrar no coração do
punhal...! E tente intuir o que é manifesto. Se você conseguir ver, então você
mesmo nesse intuir está deixando o punhal ser. Depois disso, consegue dizer o
que você viu?
Para a seguinte reunião, cada grupo poderia apresentar uma
descrição do que viu, para ilustrar os textos abstratos de Heidegger sobre a
liberdade como deixar-ser o ente, entregar-se ao desvendado, etc.
9. Reunião:
Da Essência da Verdade
Reflexão acerca do 4 capítulo:
1. Na nossa leitura, talvez você tenha percebido um fato
muito importante; importante para a compreensão do estudo da filosofia.
Você inicia a leitura, disposto a buscar a resposta para a
pergunta: o que é Verdade? Motivo, talvez curiosidade. Talvez um mero desejo de
informação ou simples ocupação. Talvez uma verdadeira sede de saber, cultura;
ou, quem sabe, uma dura necessidade de resolver a dúvida que se apossou de sua
mente.
Cada qual, a partir de uma atitude em frente ao texto,
começa a entrar no processo de leitura. Atitude em frente ao texto que é
expressão da sua atitude perante a filosofia, perante o estudo em geral. Esta,
por sua vez, se entrosa numa tomada de posição talvez inconsciente perante a
sua vida. Toda essa rede de atitudes, da qual a sua atitude perante o texto é
somente uma das articulações, não é apenas uma atitude moral. É antes uma pré-compreensão.
Algo como ocular, enfoque preestabelecido que você carrega consigo. É uma
tomada de posição intelectiva. O processo de leitura em vez de responder à
pergunta: o que é a verdade, leva você a se confrontar com essa sua
pre-compreensão. Ficar confuso, por exemplo, é uma confrontação. Pois, se o
texto o deixou confuso você está colocado diante da pergunta: por que fiquei
confuso? Talvez, a minha atitude intelectual esteja bitolada no sentido de
achar que o estudo deve dar respostas prontas às minhas perguntas, à quisa do
catecismo da doutrina cristã. Ou talvez o que possuo de cabedal de conhecimento
não passe de meros conceitos recebidos, jamais refletidos, uma espécie de
etiquetas que uso para ordenar as situações ao redor de mim. Verdade,
liberdade, será que já travei uma luta corpo a corpo com esses conceitos, confrontando-os
com a realidade que eu vivo, que nos cerca? Afinal, como vivo? Qual é a minha
ex-sistência? O grau de transcendência? Qual a minha existência intelectual? O
grau de confronto com teologia, filosofia? Receptiva na atitude dócil, filial,
sem distanciamento da conscientização confrontal? Atitude de aluno que é
informado. Informação. Erudição. Cabedal de conhecimento. Para mais tarde
usá-lo etc…
Mas, … e você mesmo?
O texto de Heidegger, se você consegue entrar em
luta com ele, leva-o necessariamente a um confronto. Em vez de me responder às
perguntas e dissipar as dúvidas, ele começa a me revelar a minha estrutura
mental. Começa a me mostrar que jamais pensará com res-ponsabilidade sobre a
realidade muito séria e pesada como, por exemplo, verdade, liberdade. O texto
começa, então, a sacudir, a abalar meus pré-conceitos, mostra a necessidade de
me dispor para a transformação do pensar. Transformação, aliás, que traz
consigo o risco de revisar todo o meu modo de ser, ver, sentir e julgar. Nesse
sentido, talvez, a reflexão é uma coisa bastante perigosa e não algo inofensivo
e abstrato. Talvez, é necessário estudar, refletir como quem salva a sua pele…
Um tema para a reflexão individual: por que sou tão
insensível para o peso de tudo quanto lemos, pensamos e estudamos? Parece que
me envolve uma nuvem de leviandade acadêmica que considera como material de
informação, erudição, saber, instrumento de pastoral as realidades explosivas e
periculosíssimas da Vida como: Deus, liberdade, verdade, mal etc. Donde vem que
temos ao redor de nós um mundo de conceitos, etiquetas e pré-conceitos que nos
fazem cegos e insensíveis para a Experiência, da Realidade na qual estamos
metidos até o pescoço? Donde vem que tantos anos de estudos nos tiram a
capacidade de admirar, de nos angustiar, de nos surpreender? De nos deixar
atingir? Por que perdemos o vigor, o frescor, a vulnerabilidade do espírito?
Donde vem essa tendência em mim de nivelar tudo no ‘já-conhecido’, de ‘nos
acostumarmos a tudo’, de não conseguirmos mais dar a nitidez e a plasticidade
às coisas ao nosso redor? Essa tendência de ‘acostumar-se’, em que o frescor da
experiência originária decai para o cotidiano monótono, tedioso e sem colorido
está intimamente ligada com o que Heidegger chama de: não-verdade no
desvelamento, isto é: o encobrimento ou o erro.
2. Heidegger afirma na que a reflexão sobre o
relacionamento fundamental entre a verdade e a não-verdade nos leva ao
questionamento da essência do homem etc.
Experimente ver bem o processo. Você começa uma reflexão
pegando a ponta do fio de um problema: o problema da essência da verdade. Um
problema nunca está só. O fio de um problema nos leva imediatamente às suas
implicações. Logo que você começa a des-fiar uma questão, vem junto toda uma
rede de outros problemas. Com outras palavras: a busca da essência da verdade é
ao mesmo tempo busca da essência da liberdade, essa é ao mesmo tempo a busca
pela essência do homem. E essa, por sua vez, uma pergunta pelo ser. Na
filosofia é necessário ter a paciência e coragem de assumir esse des-fiamento
em diferentes direções ao mesmo tempo. De aceitar como algo natural esse estilo
de investigação no qual, quando você começa num ponto surgirá aos poucos todas
as implicações ali contidas.
3. Heidegger chama o fundamento latente essencial do homem:
Da-sein. Da-sein é tradução literal do termo latim: Ex-sistência.
Na linguagem comum e nas ‘filosóficas’ que se baseiam no
senso comum, usamos o temo existência para indicar algo que é real em
contraposição ao fictício, ao irreal. Existência é aquilo que faz com que algo
seja real, e não fictício ou irreal.
Em Heidegger o termo significa a estrutura de profundidade
fundamental do ser-homem.
Ele escreve: ex-sistência.
Sistência no ex. Sistir no ex significa: constituir-se e
manter a sua consistência (sistência) a partir de uma abertura (ex).
Tomemos um exemplo da coragem. Coragem não é uma coisa que
você adquire como objeto já existente diante de você. A coragem é uma abertura,
um modo de ser no qual você tomando todo o seu ser deve entrar. Mas,
esse entrar não é entrar no ‘espaço’ já existente. É um abrir-se e manter-se
renovando-se sempre de novo nessa abertura. Aqui surge a estrutura que
poderíamos caracterizar como contínua auto-assumpção, renovação contínua, na
qual cada passo que você dá deve reassumir todo o seu ser passado e se expor de
novo à abertura coragem que vai se tornando cada vez mais nítida que vai se desvelando
no que ela é; e ao se revelar exige por
sua vez o engajamento renovado e potenciado. É o transcender-se a si mesmo, a
auto-superação. É nesse momento dinâmico que vai se constituindo cada vez mais
plástica e nitidamente o eu-coragem ou o eu-corajoso e esse eu-corajoso é uma
espécie de ocular que me faz ver ao meu redor todo um mundo de valores de
coragem.
Essa estrutura da ex-sistência no fundo é uma compreensão
originária do que coisisticamente chamamos de estrutura sujeito-objeto.
Portanto, Heidegger não quer eliminar a estrutura
sujeito-objeto. Aqui ele pretende é ver o fundamento originário dessa
estrutura. Ou, em outros termos: a estrutura sujeito-objeto como nós estamos
acostumados a entender não é outra coisa do que uma compreensão fossilizada e
ingênua, coisificada de uma estrutura originária que se chama ex-sistência.
4. Na raiz de Da-sein,
de Ex-sistência está sempre uma
experiência originária que é como uma abertura toda nova, na qual eu entro e
devo me sustentar na ex-posição, para eu poder ‘ex-sistir’.
Algumas perguntas:
a) É necessário que vivamos nesta tensão da ex-sistência,
da ex-posição? Não é possível um modo de ser no qual não é necessário essa
‘tomada’ de consciência, essa re-novação contínua ex-sistencial para que
subsistamos? Cf. Índios, plantas, animais, crianças etc.
Será que não é possível viver funcionando simplesmente? Ou
vegetando? Donde vem que a humanidade entrou a viver nesta estrutura dinâmica
de transcendência?
Se eu identifico este modo de ser (ex-sistência) com a
História, podemos formular a mesma pergunta: não é possível um modo de ser que
não seja histórico?
b) Existem diversas experiências originárias. Heidegger
cita uma delas, a experiência da physis
grega.
Existe uma experiência originária ‘mais originária’ que
seja como que o fator fundamental das diversas experiências originária? Como se
relacionam as totalidades, os modos que surgem cada vez diferentes a partir
dessas experiências originárias?
Sugestão
de trabalho para a seguinte reunião:
1. Individualmente: ler de novo o capítulo 4, procurando
entender o que é ex-sistência e que relação tem com a História.
2. Cada grupo trazer um exemplo concreto, onde se mostra a
estrutura da ex-sistência.
10 . Reunião:
Sobre a Essência da Verdade
Ainda algo sobre o capítulo 4:
Reflexão sobre a verdade nos leva a refletir sobre a
liberdade. A reflexão sobre a liberdade nos leva a refletir sobre a essência do
homem. A reflexão sobre a essência do homem como liberdade só é possível se nos
abrirmos à experiência de uma dimensão original oculta no homem, a experiência
do ser-aí. Essa experiência nos leva a, ou melhor, é o âmbito, o lugar
onde a essência da verdade se revela originariamente.
Dissemos: experiência do ser-aí.
Peço conferir o texto à p. 31. O texto diz: “…nos garantirá
a experiência de um fundamento original oculto do homem ( do ser-aí).”
Esse genitivo: do ser-aí, está no lugar de: do homem? Ou
está no lugar de: de um fundamento original oculto do homem? Portanto: “…nos
garantirá a experiência de um fundamento original oculto (do homem) = (do
ser-aí); ou nos garantirá a experiência (de um fundamento original oculto do
homem) = (do ser-aí)?”
Nós vamos interpretar o texto na Segunda acepção. A
experiência do ser-aí é a experiência de um fundamento original oculto do
homem.
Em vez de ser-aí, Heidegger também usa o termo:
ek-sistencia, ser-aí ek-sistente (cfr. p. 35).
Embora uma análise minuciosa do texto nos mostre nuances e
distinções, para facilitar a compreensão, vamos falar a grosso modo, sem
detalhes, à quiçá de esboço fundamental.
Nessa perspectiva, são praticamente sinônimos: ser-aí (p.
31), ek-sistente (p. 33), abandono ek-sistente, presença, ek-sistencia (p. 34),
ser-aí ek-sistente (p. 35).
O nosso interesse é de saber em que consiste a essência da
verdade. Partindo da verdade da enunciação chegamos a ver que a liberdade é a
essência da verdade. Por isso, a pergunta pela essência da verdade se
transformou na pergunta pela essência da liberdade. Mas a pergunta pela
liberdade se revela como uma pergunta pela experiência de um fundamento
original oculto do homem: a pergunta pela experiência do ser-aí, experiência da
ek-sistência.
A formulação: a experiência da ek-sistência, no entanto,
pode insinuar uma falsa pista na reflexão, pois ao ouvir esta formulação
podemos imaginar o estado de coisa da seguinte maneira: o homem como o sujeito
de uma experiência psicológica do estar aberto ao mundo de coisas. Esse modelo
deve ser afastado da nossa mente.
A experiência da ek-sistência não é uma experiência sobre
um objeto chamado ek-sistência. É antes uma experiência a partir da
estrutura fundamental chamada ek-sistência. A ek-sistência é ela mesma a
experiência originária e fundamental, a partir da e na qual o homem se torna
homem como livre. A ek-sistência é a essência do ser-homem livre; a ek-sistência
é a essência da liberdade. A ek-sistência é liberdade.
O capítulo 4 tenta descrever a estrutura da ek-sistência
como liberdade. Com outras palavras: aquilo que faz com que o homem seja homem
é a estrutura fundamental originária oculta do homem chamada liberdade ou
ek-sistência.
Mas, atenção: a ek-sistência não é uma coisa-substância,
algo que existe como ‘coisa’ debaixo da aparência chamada homem, à maneira de
um núcleo ‘fundamento’, fundo. A ek-sistência é experiência. Ela é
só no acontecimento, no processo, no viver.
Toda a dificuldade de compreensão provém do esquema usual
coisista do nosso modo de pensar. Quando falamos de experiência, viver, etc.,
logo perguntamos: quem vive? Quem Experimenta? E imaginamos o homem como uma
substância que tem o ato de viver, ato de experimentar. Você percebe que para
Heidegger é necessário abandonar esse esquema, é necessário se dispor ‘para a
transformação do pensamento’ (p. 31).
Pois, aqui no nosso caso, não é o homem que tem a
ek-sistência, mas a ek-sitência é que possibilita o ser – homem. O modo
‘fundamental’ do ser – homem, a maneira originária do ser – homem, não consiste
em ele ser algo, ser uma substância, mas sim em: ser ele vida. Vida jamais é
coisa, ela é processo, experiência.
Mas o termo vida é também ambíguo. Pois posso entendê-lo na
objetivação biológica.
Vamos, portanto, que as palavras não conseguem exprimir sem
ambigüidade essa realidade fundamental que denominamos: ek-sistência,
liberdade, vida.
O capítulo 4, usando termos e expressões que a cada momento
pode ser interpretados inadequadamente como indicativos de fenômenos
psicológicos, tenta mostrar em que consiste essa ‘realidade’ essencial.
Esse processo, essa vida foi concebida desde
o seu início pelo pensamento ocidental com a palavra alétheia: o desvelamento.
Desvelamento, como processo, no qual os entes se manifestam,
enquanto entes, é o processo, a estrutura dinâmica fundamental, que impregna e
está na fonte do pensamento ocidental. Trata-se, portanto, do modo de ser
fundamental.
Hoje, quando falamos de ente, logo pensamos no objeto, na
coisa diante de mim.
Essa coisa, dizemos nós, me está presente, me aparece,
se me revela, se me manifesta, me surge, se me coloca em frente,
está ali como o manifesto etc.
O pronome ‘me’ indica o sujeito a quem o ente se manifesta.
Mas esse sujeito ele mesmo também é somente enquanto está presente,
aparece, se revela, se manifesta, surge, se coloca em frente, está aqui como
manifesto, isto é: enquanto ente.
Surge assim a pergunta: em que consiste, pois, o processo
em que tudo – incluindo o próprio sujeito a quem tudo se manifesta – se
torna presente como ente?
Esse processo, dissemos, chama-se desvelamento.
O homem somente se torna homem, quando se abandona, se abre
a esse desvelamento. Somente então ele é ek-sistente. Abandonar-se, abrir-se,
deixar-se levar pelo processo de desvelamento é expor-se (ex-por) à
manifestação do ente, pois o desvelamento é o processo no qual o ente se
manifesta como tal. Esse abandono ao desvelamento se chama ek-sistência. É, portanto,
na ek-sistência que o homem surge como homem no meio dos entes que se lhe
manifestam como tais. Ex-sistência liberta o homem como homem, tornando-o o lugar
de manifestação do ente.
Mas como é, em que consiste essa experiência originária do
ek-sistente, de ex-por-se ao desvelamento?
Os gregos a denominaram: alétheia, o desvelamento. Esse processo-vida chamado desvelamento é
o que os gregos entendiam por physis, natureza.
Para nós que entendemos a natureza como o mundo de entes
opostos ao espírito, ao sujeito, portanto dentro do esquema sujeito – objeto,
torna-se difícil entender o que seja physis,
natureza como o processo de ‘presença que eclode’ (p. 34).
Trata-se da experiência originária na qual, pela qual tudo
nasce (natureza nascer), vive, se torna vida, se manifesta, se liberta para a
vida.
Sempre sob o risco de sermos entendidos psicologicamente,
de nos expressarmos inadequadamente com termos ‘coisistas’, vamos procurar
intuir o como dessa experiência originária, por meio de exemplos, mas o modo de
ser, o ‘como’ insinuado.
Depoimentos de Eugêne Ionesco tirados do livro: Diálogos
com Eugêne Ionesco, Claude Bonnefoy, Editora Mundo Musical Ltda, Rio, 1970.
“Eu morava numa casa muito bonita, muito antiga. Não era um
castelo, era uma velha herdade que se chamava ‘O Moinho’. Na verdade, era um
velho moinho declarado sem utilidade pública depois de cem anos... Esta casa
ficava num local extraordinário, no cruzamento de três ou quatro caminhos, um
lugar rodeado de colinas, de todas as pequenas colinas, de bosque... Era
exatamente um ninho, um abrigo. Eu tinha lá, naquela casa sobremodo sombria,
como todas as casas do campo o eram naquele tempo, um sentimento extraordinário
de conforto... Tudo se prestava à simbolização. Como morávamos no fundo do
pequeno vale, devíamos, para ir ao povoado, subir um pequeno outeiro que
chamava de ‘Le Roquest’. O que principalmente se avistava ao escalar-se este
outeiro era, alto, o campanário. Lembro-me de certa manhã muito feliz, muito
luminosa, em que eu ia em trajes domingueiros rumo à igreja. Vejo ainda o céu
azul, e, recortando-se no céu, a agulha da torre da igreja. Os campanários, eu
os entendo. Havia o céu, havia a terra,
a união perfeita do céu e da terra. Creio que certos psicanalistas, os adeptos
de Jung, dizem que sofremos porque sentimos em nós a separação do céu e da
terra. Ora, lá havia verdadeiramente a união do céu e da terra. É agora que
tento explicar-me porque a gente se sente assim feliz. Naquela época, eu vivia
aquele paraíso. Havia as cores, as cores estimulantes dum frescor e duma
intensidade que nunca mais terão, ganvílias na primavera, o caminho que se
abria. Aquilo também era misterioso, aquilo também tinha uma significação
profunda, uma verdade elementar. No inverno, o caminho era lamacento,
verdadeiramente fechado. Não se podia atravessá-lo. Depois, de repente, havia
como que uma transfiguração da paisagem. Tudo se enchia novamente de flores
vivas, de esquilos, de pássaros canoros, de insetos dourados... Era realmente, eu o sentia, a ressurreição daquele
mundo de lama, de árvores petrificadas, das quais os braços se estendiam,
retornando à vida” (pp. 8-9).
“A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na
primavera, a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infância. De
uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável. Quando eu era mais jovem,
possuía reservas luminosas. Isso começa a minguar... eu me encaminho para a
lama. Lembro-me que certo dia um pessimista chegou a minha casa. Naquele tempo,
eu morava num rés-do-chão, à Rua Claude Terrasse. Minha filha era ainda um bebê
e não dispúnhamos de muito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de
casa. Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida, que a vida
não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, que tudo era sórdido, que
nossa casa era triste e feia etc... E eu no cordel ao meio do quarto – “é muito
bonito isso”. O amigo olhou, admirado e desdenhoso”.
“Sim – insistia eu – basta saber olhar bem, é preciso ver.
É admirável. Não importa qual seja a maravilha, tudo é uma epifania gloriosa, o
mais pequeno objeto resplandece”. Porque, repentinamente, eu tivera a impressão
de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insólita, o mundo virgem,
refulgente. Eu conseguira vê-la com olhos de pintor para suas qualidades de
luz. A partir disso, tudo parecia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo,
veja essa casa em frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares.
Pois bem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa vontade; quero dizer,
ela se ilumina subitamente, é um fato que se manifesta. Todo o mundo
pode ter essas impressões (pp. 22-23).
Frescor, nitidez, vivacidade, luminosidade, limpidez,
pureza, originariedade, a nascividade: isto é o desvelamento como vida.
Tudo isso não são qualidades objetivas estáticas da coisa,
não são projeções subjetivas do eu-sujeito-aqui, mas sim processo – vivo, presença
que eclode, tornando manifesta cada coisa na sua nitidez, frescor e
vivacidade, na sua identidade, revelando o ente enquanto tal. Como processo é
movimento, ele vai e vem, ora abrindo para a manifestação luminosa, ora
fechando para a opacidade. Esse movimento revelador e vivificador é a
‘natureza’ no sentido de physis, a nascividade.
Mas por que o termo des-velamento? Desvelar é desencobrir
algo escondido. O que é escondido? O que é que se revela? Como entender o
desvelamento em relação ao frescor, vigor, nascividade da physis?
Rosto de uma mulher. Pálpebras fechadas, serena leve
vibração de pudor, séria mas não rigorosa. Aqui percebemos um ‘encobrimento’. O
rosto está ‘fechado’, virado para o interior, palpita suavemente numa
vivacidade contida para dentro. Nesse ‘encobrimento’, nesse ‘esconder-se para o
interior de si mesmo’ se torna presente, se manifesta, se desvela a interioridade
feminina.
De repente ela sorri levemente. Dizemos: o rosto se abriu
num sorriso. Brilham os olhos na sua profundidade. O rosto parece emergir do
profundo ‘esconderijo’. O sorriso se revela, se manifesta, se desvela.
Mas ao se desvelar como um sorriso no seu frescor e inocência, torna-se o que
ele é nele mesmo, na consistência viva de um sorriso; há portanto um
‘encobrimento’, um ‘fechamento’. Pode-se observar isso nos rostos que aparecem
na televisão: rostos de criança, de jovem, da mulher, do homem, dos velhos, dos
funcionários, dos artistas, etc. e tentar ver em que consiste o fechamento e
abertura em cada caso.
Abrir-se e fechar-se; desvelar e velar; dar-se e conter-se;
livrar-se e reter; ex e sistência, o equilíbrio harmonioso,
sensível desses dois movimentos no presente de uma presença viva, límpida,
cristalina e nítida, eis o que constitui o movimento (ex) que insiste (sistência) como a manifestação do ente como ente. Desvelamento,
portanto, não significa des-cobrimento de algo existente escondido, mas sim o
movimento contínuo de Vida que, ao desvelar, se constitui como ente.
Ek-sistir é, por isso, deixar que aconteça esse equilíbrio da Vida,
deixar-se carregar por esse ritmo e essa pulsação de equilíbrio do
des-velamento-velamento que é a Vida, o suco, a essência, o vigor, a energia do
ente, a sua manifestação.
Só quem palpita nesse movimento vive como homem.
Viver assim é abrir-se ‘ao ente em sua totalidade,
percebido sob a forma de uma presença que eclode’.
Viver assim é ser livre, não livre no sentido de poder
fazer isso ou aquilo, mas de deixar-ser-o-ente, como desvelamento da Vida, como
o lugar da libertação do ente na sua manifestação.
O desvelamento do ente em sua totalidade, como Vida, marca
o início da História. Pois essa estrutura ek-sistencial do ser-homem como Liberdade
é ela mesma a estrutura da História.
Para
a seguinte reunião:
1. É favor ler o texto do capítulo 4 à luz dos exemplos
acima esboçados para ver se você consegue entender em linhas gerais o que é o
desvelamento.
2. E embora seja difícil, examinar no texto pp. 35-36 que
relação tem a ek-sistência com a História.
3. Na seguinte reunião sugiro: cada grupo apresentar os
textos que não entenderam e dizer o que descobriram sobre o relacionamento da
ek-sistência com a História.
11. Reunião:
Sobre a Essência da Verdade
Que relação existe entre a Ek-sistência e a História?
O texto: “Se, entretanto, o ser – aí ek-sistente, como
deixar-ser do ente, libera o homem para a sua ‘liberdade’, quer oferecendo à
sua escolha alguma coisa possível (ente), quer impondo-lhe alguma coisa
necessária (ente), não é então o arbítrio humano que dispõe da liberdade. O
antes, pelo contrário: a liberdade, o ser – aí, ek-sistente e desvelador,
possui o homem e isto tão originariamente que somente ela permite a uma
humanidade de inaugurar a relação como o ente em sua totalidade e enquanto tal,
sobre o qual se funda e esboça toda história. Somente o homem eksistente é
historial. A ‘natureza’não tem história” (p. 35).
Peço ter bem presente o que dissemos nas reflexões
anteriores sobre a ek-sistência.
Ela é abandonar-se ao processo de desvelamento da physis.
Ela é deixar-se carregar pela pulsação da nascividade libertadora dos entes. É
deixar-se impregnar pela luminosidade da manifestação dos entes.
O modo de ser ek-sistencial é portanto receptividade, algo
como disponibilidade à nascividade que vem de ‘dentro’, é algo como deixar-se
conduzir, ou melhor eduzir.
Quando falamos de liberdade na linguagem comum, imaginamos
essa liberdade como o meu poder (possibilidade) de fazer isso ou aquilo,
de não fazer isso ou aquilo, fazer ou não fazer assim. Tudo quanto limita esse
poder é algo necessário (necessidade). Possibilidade e necessidade indicam,
portanto, o âmbito dentro do qual o meu poder de escolha, o arbítrio
humano dispõe da liberdade, campo de ação.
Mas, donde vem esse ‘poder’? Donde vem esse âmbito do meu
poder, dentro do qual algo aparece como possível, algo como impossível, outro
algo como necessário?
Que eu, dentro desse âmbito tenha a escolha, é explicável
pelo arbítrio humano. Mas que este âmbito com sua regra de jogo e espaço, sua
possibilidade e necessidade me é dado, não posso mais explicar pelo arbítrio
humano.
Esse âmbito eu não o escolhi. Pois escolher me é só
possível já dentro desse âmbito de possibilidade e necessidade. O âmbito da
minha liberdade, a possibilidade, a impossibilidade, a necessidade do meu poder
já está ali aberto, dentro do qual eu me livro para o meu arbítrio de escolha.
A abertura do âmbito da minha liberdade de arbítrio não a
possuo eu, ele não está sob o meu poder. Antes pelo contrário, é ele que me tem
sob o seu poder, sob sua condução, e disponibilidade. Liberdade é, portanto, a
disponibilidade à condução do poder que me domina como Vida dos entes, como o
desvelamento dos entes.
Mas o que tem a ver tudo isso com a História? Como entender
a frase de Heidegger: “A liberdade, o ser – aí, ek-sistente e desvelador,
possui o homem, e isto tão originariamente que somente ela permite a uma
humanidade de inaugurar a revelação com o ente em sua totalidade e enquanto tal,
sobre o qual se funda e esboça toda a História” (p. 35)?
Notemos que o texto diz: a liberdade, o ser – aí,
ek-sistente e desvelador. Aqui, pelo modo de dizer, a liberdade, a Ek-sistência
e o Desvelamento são uma e mesma ‘coisa’.
Liberdade, Ek-sistência, Desvelamento são três termos para
indicar a experiência de um fundamento original oculto do homem, a experiência
do ser – aí (p. 31).
Essa experiência do ser – aí nós a caracterizamos na
reflexão anterior como pulsação da vida ou Vida simplesmente.
Essa vida chamamos também de physis, natura no
sentido de nascividade.
O exemplo do depoimento de Ionesco nos serviu para evocar
os traços de uma tal experiência originária em nós mesmos. Mas todo o problema
de compreensão reside nisso que ao tematizarmos os traços de uma tal
experiência, ao usarmos palavras como Vida, pulsação da Vida,
Vivacidade, Luminosidade, Transparência, Nitidez, Vigor etc. Sem o querer os
concebemos como estáticos, como ‘algo’.
Se, porém, sem deixarmo-nos fixar por tais tendências
estatizantes, temtarmos ficar na evidência da experiência, talvez consigamos
observar o seguinte: a vivacidade, a luminosidade, a transparência, a nitidez,
o vigor é por assim dizer a plenitude de tensão, o equilíbrio da pulsação. O
que percebemos como estático, por exemplo, a transparência, nitidez,
luminosidade não é propriamente estático, parado, mas sim o resultado de uma
energética contida, a tensão da serenidade de uma energia armazenada, carregada
que está prestes a saltar a cada convite. Com outras palavras, atrás da
serenidade se esconde a tremenda tensão do equilíbrio entre a energia de
expansão e a energia de contenção. Se a tensão perde o seu meio do equilíbrio e
tende a acentuar a expansão, a Vida se esvai, o sentido da vida se torna
inflacionário, ameaça a morrer na inanição, no esvaziamento, ou desbotamento.
Se a tensão perde o seu meio de equilíbrio e tende a acentuar a contenção, a
Vida se fossiliza, o sentido da vida se torna asfixiante, fechado, na linha do
endurecimento, falta de espaço vital, estarrecimento.
Como porém, conceber esse equilíbrio – tensão, a fonte da
pulsação vivificadora, a fonte da luminosidade e nitidez na vivacidade?
Em geral, como nós só percebemos a superfície serena, a
face harmoniosa do equilíbrio, esquecemos o processo e as fases de movimento
armazenados no interior da tensão harmoniosa.
Se os colocarmos por dentro de uma tal plenitude de tensão,
percebemos que ela não é simplesmente um espaço homogêneo cheio de energia
contida, mas sim um mundo de tendências, oposições, níveis e camadas de
energia, articulados entre si, mundo coeso e organizado numa totalidade de
única como concreção.
E se seguirmos a gênese dessa concreção percebemos que os
passos dessa concreção para a totalidade se realiza num movimento que
poderíamos chamar de superação.
Em que consiste pois essa estrutura de superação?
Talvez um exemplo possa nos mostrar o modo de ser na
superação.
Você é dramaturgo. Um dia de repente, ocorre-lhe uma idéia
estranha. A idéia de um homem que não consegue morrer. Ele morre, mas quando
todos o consideram morto, ressuscita. Essa idéia o fascina. Você lhe dá osso e
carne. Ele vai se chamar Wolfgang Schwitter, um eh..., digamos sim, talvez...
bem, esse Schwitter vai ser o portador do prêmio Nobel, já que estamos na época
da coleção de troféus.
Schwitter vai dar o primeiro passo da sua estória. Para
onde vai? Digamos para o atelier de um pintor. Já que deu o primeiro passo,
esse condicionamento implica num passado. Donde ele parte? Bem, digamos duma
clínica. Espere ali, do necrotério de uma clínica moderna, Mas já que vai a um
atelier, para esse passo deve haver no passado um motivo. Bem, vamos dizer que
ele antes de começar a escrever foi um pintor. Pintor medíocre com pretensões.
Fracassou e por isso começou a escrever e acabou ganhando o Prêmio Nobel. O
primeiro passo, assim dado ao acaso, em direção do atelier de um pintor, acaba
implicando num passado desse passo: Schwitter foi um pintor fracassado. Que se
realizou na literatura. Mas por que volta ao atelier? O passo se dirige para o
atelier. O passado do pintor fracassado implica no futuro do passo que deu na
direção do atelier. Vai ali, para morrer ali. Quer morrer ali, porque a vida
literária não lhe matou a saudade pelo primeiro amor da sua vida, a pintura.
Entra no atelier. Ali vamos fazê-lo encontrar com um pintor que é também
fracassado com pretensões. Schwitter entra, cambaleia e cai. Suor frio, olhos
virados. O pintor se espanta. Leva-o à cama. Ali ao lado numa outra cama, uma
mulher virada de costas nua, está sendo pintada, um modelo, portanto.
Todos esses passos e acontecimentos são condicionados pelo
primeiro passo de Schwitter que implicou na criação de um passado como
portador do Prêmio Nobel que é um pintor fracassado. Mas esses acontecimentos futuros
ao primeiro passo implicam em novas facetas do passado do nosso herói. O
homem está moribundo. Pudera, ela já estava no caixão. Ele saíra de gatinhas de
baixo dos ramalhetes de flores que o enterravam, saíra do necrotério para
morrer no atelier de pintura onde outrora trabalhara. A estória continua. Cada
passo que acontece, traz nova revelação, novo sentido do passado de Schwitter,
cria condições para novos acontecimentos futuros, estes por sua vez criam novas
implicações do passado. Assim aos poucos a personagem fictícia que iniciou por
assim dizer o seu passa do nada, como o primeiro passo vai se emaranhando num
rede de sentidos, vai se formando ao redor dele todo um mundo de
acontecimentos, encontros, pessoas, relacionamentos, coisas. Cada passo vai
retomando a totalidade do sentido já constituído, portanto, do passado, vai
criando novos arranjos como nova possibilidade do futuro, num processo de
reintegração e aberturas de horizontes. Processo de contenção e expansão.
Concresce assim o conteúdo do homem que queria morrer mas não conseguia morrer,
conteúdo esse que vai se amarrando cada vez mais para um mundo de totalidade
dos entes, cada vez mais coeso, unitário e necessário. Cada passo é superação
do que já se passou, do que já se foi, e ao mesmo tempo abertura do âmbito de
possibilidade que está implicada naquilo que se foi e se é. Cada passo é uma
decisão que vai trançando o fio da estória desse hapening, fio esse que cada vez mais se tornando único e sem
escolha.
É, portanto, um desdobrar que ao mesmo tempo implica no enrolamento
para um todo chamado mundo. E quando esse processo chega à sua saturação, onde
todas as implicações e explicações forem por assim dizer articuladas numa
totalidade coesa, necessária, tensa mas equilibrada, o herói Schwitter surge
como uma figura, uma Gestalt, como
uma obra de arte dramático – cômica.
Esse processo de desdobramento que cria no movimento de
auto-implicação e auto-explicação todo um mundo coeso na sua imanência a partir
de um acaso, chama-se o processo de superação. Essa estrutura é a estrutura da estória.
Visto de fora como totalidade essa figura cristalizada como a obra de arte
dramática parece um bloco monolítico, pleno, vigoroso, transparente e nítido.
Visto por dentro é todo um mundo de movimentos que se articulam numa estória. Ora,
isto é a estrutura da História. Essa estrutura é a própria essência, o próprio
processo da História. Vida, Nascividade é ser cada vez a coesão equilibrada,
cheia desse processo complexo da História.
Se o processo me leva a uma coesão cristalizada do equilíbrio
na totalidade de uma obra de arte, como mo caso de Meteoro, de Friedrich
Dürremat, o qual usamos acima como o nosso exemplo, então há a nascividade
da Verdade, então houve o ‘deixar – se – o – ente – na – sua – totalidade’,
houve a Liberdade, o Desvelamento. Mas esse processo pode ficar bloqueado, pode
endurecer, ou pode ficar frouxo e sem coesão interna na sua necessidade
articulada. Nesse caso surge o erro, o velamento, o encobrimento, a
dissimulação (p. 36).
Esse encobrimento ou velamento no entanto está sempre
presente como condição da decisão, em cada passo que se dá nesse processo da
estória. Pois cada passo que se dá, retoma aquilo que já foi, abre-lhe
nova chance de ser, mas ao mesmo tempo no processo de reintegração o faz contrair
para um novo é. O é atual do passo na decisão do presente é o fio
infinitesimal de equilíbrio, onde na passagem do foi para o será
se revela cada vez a implicação da totalidade do processo. Esse vislumbre
da totalidade é o desvelamento. Mas esse desvelamento, simultaneamente com
o seu fulgor momentâneo, já se contrai para um é, que logo após se
tornará foi para a nova chance do será.
Entregar-se, abandonar-se ao desvelamento, el-sistir,
ek-sistência, sistir no ex, significa portanto: abrir-se ao vislumbre infinitesimal
do desvelamento no agora da passagem e contrair-se para o encobrimento do ‘é’ e
‘foi’, procurando fazer transparente essa contração à luz desse vislumbramento.
A contração é a situação, a encarnação, a concretização que contrai a
luminosidade do desvelamento. Essa concreção no entanto recebe a sua
luminosidade do desvelamento numa concreção: isto é o erro como encobrimento.
Essa concreção, no entanto, recebe a sua luminosidade somente a partir da luz
do desvelamento. Quanto mais transparente se torna a contração à luz do desvelamento,
tanto mais se adequa à essência da Verdade.
NB: sinto muito que essa reflexão se tornou obscura. Para
mim, no entanto, é clara até certo
ponto. Peço ler essa reflexão e tentar à mão dela, compreender o texto de
Heidegger, capítulo 4 e 5. Esse estudo é a preparação para a reunião que
vem. Ali discutiremos o que não se entendeu.
12. Reunião:
Sobre a Essência da Verdade
O capítulo 5 procura sucintamente dizer em que consiste a
essência da verdade, à luz do que foi dito nos capítulos anteriores. E revela a
essência da verdade como a presença do ente em sua totalidade que se manifesta
na vibração do equilíbrio entre o desvelamento e o velamento.
O capítulo faz mais ou menos os seguintes passos de
pensamento:
1. Resume o que foi dito nos capítulos anteriores:
- a essência da verdade = Liberdade.
- a liberdade = abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade e enquanto tal.
- esse abandono = disposição de humor.
2. Mostra que essa liberdade (disposição de humor) não deve
ser entendida psicologicamente.
3. Mostra que o ente em sua totalidade, revelado pela
liberdade (disposição de humor) não é a soma de entes realmente conhecidos. Não
coincide com o ente em sua totalidade científica.
4. Mostra o modo da presença desse ‘o ente em sua
totalidade’: o modo de presença é ambigüidade: desvelamento e velamento.
5. conclui, insinuando a tese: pertence à essência da
verdade tanto o desvelamento como velamento.
Não sei se você já percebeu o seguinte: ao ler o texto, ao
discutir, temos a dificuldade de compreender. Entendemos as palavras. Ligamos
formalmente as frases, entendemos a seqüência, a lógica dos trechos. Mas, não
vemos a ‘coisa’. As palavras como ek-sistência, desvelamento, velamento, o ente
em sua totalidade vão e têm na nossa mente como fantasmas vagos,
indeterminados, acompanhados de certas imagens esporádicas que nos dão a
impressão de compreensão, mas que nos deixem insatisfeitos, pois, não temos
nada de palpável na nossa mão.
Por isso, o pensar filosófico nos dá a impressão desagradável
de abstrato, inutilidade, alienação.
É nesse sentido que lemos na p. 38: Este ‘em sua
totalidade’ jamais se deixa captar a partir do ente que se manifestou, pertença
ele quer à natureza quer à história. Ainda que este ‘em sua totalidade’ a tudo
perpasse constantemente com sua disposição, permanece, contudo, o não-disposto
(não-determinado) e o não-disponível (indisponível, indeterminável) e é, desta
maneira, confundido, o mais das vezes, com o que é mais corrente e menos digno
de nota”.
Este afastamento do ‘ente em sua totalidade’ se chama
dissimulação do ‘ente em sua totalidade’ (p. 38).
Essa dissimulação pertence à essência da verdade. Nós
devemos contar com ela.
Mas na prática concreta da nossa leitura, o que fazer para
não ‘boiarmos’ na vaguidade e indeterminação de um compreender casual,
esporádico, uma espécie de anemia do pensamento?
A resposta, você mesmo pode descobrir seguindo as
indicações dadas por sua própria experiência. Você, ao ler os termos como
desvelamento, percebe imediatamente como
a sua mente a partir dessa palavra tende instintivamente a algo visível
que possa dar um conteúdo sensível concreto ao conceito ‘abstrato’. Você
procura ilustração, exemplos que podem ser fixos para ajudar a fazer mais
nítido o que o pensamento lhe sugere vagamente. Essa fixação é necessária. Mas
traz consigo o perigo de coisificar a intuição, confundindo o pensamento com o
exemplo. Por isso é mister ficarmos continuamente no processo: seguir a
tendência da concretização, trazer ante os olhos um exemplo, mas a partir da
ilustração voltar ao pensamento. Ilustrar dali o pensamento e ao mesmo tempo
iluminar o exemplo a partir do pensamento. Procurar, portanto, nos balancear
num contínuo vai e vem entre o pensamento e exemplo. Não nos fixarmos em nenhum
deles, mas entrar na jogada desse processo de abertura (pensamento) e fixação
(exemplo) e fazer surgir desse jogo de vai – e – vem, uma intuição clara,
dinâmica e viva daquilo que se manifesta, no processo. Percebe você que
este processo de vai e vem entre a abertura e fechamento é justamente o
processo descrito como a essência da verdade: desvelamento e velamento?
A seguir vamos tentar ilustrar o capítulo 5.
Vimos nos capítulos anteriores como a essência da verdade
se desvelou como liberdade.
Em que consiste a liberdade?
Liberdade consiste em: “deixar-ser ek-sistente que desvela
o ente”. Como entender isso?
Verdade, na acepção usual, é a adequação de uma enunciação
com o ente. Enunciação é um comportamento seu em relação ao ente. O seu
comportamento corresponde ao ente. Mas, para que o seu comportamento
possa corresponder ao ente, tanto o seu comportamento como o ente já devem
estar ‘afinados’ um para o outro, isto é, estar em harmonia. Devem, portanto,
estar já pre-dispostos um ao outro.
Esta pre-disposição é o que o capítulo chama de ‘disposição
de humor’.
É o que chamamos de abertura originária, ek-sistência,
abandono ao desvelamento, liberdade.
Por que se chama: disposição de humor?
Por que essa abertura totalizante da liberdade que é
abandono ao desvelamento do ente em sua totalidade se deixa exemplificar de uma
forma muito visível, no que chamamos de humor? Por exemplo você levanta com o
pé esquerdo. Está de mau humor. O mau humor ‘afina’ todos os seus
comportamentos, de ante-mão, com o sentimento de descontentamento. Predispõe
cada um dos seus comportamentos do dia.
Esse comportamento desde a hora em que você acordou,
já estão por assim dizer dentro do
âmbito do mau humor. E cada comportamento, no qual você se abre ao ente, vibra
na freqüência da abertura totalizante do mau humor. E cada comportamento
corresponde então ao modo mau humorado da manifestação do ente.
A disposição do humor é, portanto, a condição prévia,
anterior, para que possa se estabelecer o relacionamento do meu comportamento
mau-humorado com o ente que se me
manifesta também como tedioso, irritante, adverso.
Mas, a gente poderia objetar ao capítulo 5, dizendo que
essa tal disposição de humor não é coisa velha, já conhecida aos psicólogos.
Esta disposição de humor não é outro coisa do que a ‘vivência’, ‘o estado de
alma’, ‘um sentimento’. No fundo uma tal explicação do desvelamento do ente em
sua totalidade não passaria, segundo essa objeção, de explicação subjetivista
do mundo. É claro que a gente vê tudo
preto, porque o estado da alma da gente está ‘escuro’ pelo mau humor.
Explicação subjetivista, particular, privada, uma teoria ultrapassada do século
XIX etc, etc.
Examine-se a si mesmo se você, ao ler Heidegger não está
entendendo tudo, ainda ‘psicologicamente’. Uma compreensão assim seria ingênua.
Heidegger chama a atenção do leitor contra essa falsa
interpretação daquilo que ele chama de liberdade como disposição do humor.
Na p. 37 Heidegger tenta refutar essa interpretação
psicologista em algumas frases.
Gostaria de sugerir como tema da discussão para a
seguinte reunião o seguinte:
a) Descobrir onde está o trecho em que Heidegger refuta
essa interpretação errônea.
b) Em que consiste a argumentação de Heidegger?
- Colocar bem nitidamente o problema.
- dar a refutação de Heidegger
- dizer, se você se convenceu com a argumentação.
O exemplo de cima do mau – humor não nos ilustra muito bem,
em que sentido a liberdade é o abandono ao desvelamento do ente em sua
totalidade. Como entender: em sua totalidade?
Se no dia do mau – humor, quando estou pre-disposto ao
sentimento do mau – humor, o cachorro que brinca na rua se desvela como esse
ente desgraçado que me agride com suas gracinhas caninas ridículas, merecedoras
de um ponta – pé. A totalidade se refere ali ao meu mau – humor, a esse ‘algo’
envolvente, não porém ao ente na sua totalidade. O ente aqui é esse cachorro
singular. Em que sentido ele aparece na sua totalidade?
Para ilustrar essa totalidade fosse talvez mais
interessante pegarmos um outro exemplo.
Quirino, numa reunião mencionou a resposta laconicamente
magistral do seu pai diante da majestade rochosa da montanha, via Paraná –
Santa Catarina. Diante do entusiasmo poético – místico do filho, o pai: ‘não
sei porque tanto barulho!... Lá não posso plantar nada’!
É necessário observar nitidamente essa resposta. O
entusiasta pela paisagem dirá: “Paciência, não tem dimensão pelo belo. Aqui há
um velamento de uma totalidade. O ente em sua totalidade chamado majestade,
cristalizada na nitidez e grandeza dessa massa compacta de granito não se desvela
ao camponês”.
Esse esteta, no entanto, deixa escapar uma coisa. Que nesse
velamento, nesse esconder-se, houve de fato o desvelamento de uma totalidade.
Ao se velar, se desvela uma totalidade: houve a dissimulação. Em que sentido?
O que significa: ‘Lá não posso plantar nada’?
Significa: essa pedra seca, deserta de vida, sem água, sem
o humus negro e suculento da terra, não serve para o plantio. Isto é, só
pode ver no granito majestoso a pedra inútil, quem está pre-disposto dentro de
uma abertura vital, de vida e morte, que se chama plantar. Plantar para
o camponês é o seu mundo. Sua vida. O seu sustento. O sol as vicissitudes da
fome, suas famílias, vida ou morte dos seus filhos, negócio, a angústia da
colheita incerta, a festa dos trigais ondulantes, educação dos filhos, a
felicidade da sua mulher, seu prestígio etc.
Com outras palavras: na ausência da possibilidade de
plantar, se desvela a totalidade do ente chamado plantio.
Depois desse excurso, vamos analisar como o ente em sua
totalidade se desvela ao camponês.
Um camponês e o seu campo.
Campo é um ente. Plantar é um comportamento. Enunciação:
esse campo é bom para plantar. O campo és este ou aquele ente particular. Não é
totalidade. Relacionamento ‘plantar’
nesse campo é um comportamento. Não é totalidade.
Isto, considerado à primeira vista. O próprio camponês ao
plantar, só percebe esse seu comportamento e este campo particular diante de
si. O ente em sua totalidade está velado. Está dissimulado.
Onde está, pois, o aberto? O ente em sua totalidade? A disposição
do humor? A ex-posição ek-sistente?
Heidegger diz na p. 37: ‘todo o comportamento do homem historial,
sentido expressamente ou não, compreendido ou não, está disposto e através
desta disposição colocado no ente em sua totalidade’.
O plantar é um comportamento do homem historial?
O ato de plantar como o movimento físico, fisiológico,
biológico, psíquico etc. não é historial. Mas todos esses ‘atos’ no
comportamento concreto desse camponês estão por assim dizer antes de toda e
qualquer interpretação, ‘científica’, encravados numa determinada situação que
à a vida, isto é, a história de camponês.
Você percebe aqui, quando dizemos vida, pensamos na
História de um homem e não na vida como bios, vida como sucessão de dados da
biografia, mas algo concreto, real, anterior a todas essas interpretações
‘delimitativas’?
Para vermos o comportamento historial do plantio em cujo
processo se desvela o ente em sua totalidade, vamos recordar a canção argentina
do último festival:
Pedro trazia a manhã às costas,
Pensado no Joana para a sesta,
Nas mãos trazia o trigo madura,
Saboreando um, mate, infindo como o tempo,
Minha pátria é o sulco da terra, contava Pedro,
Pedro Arado,
Pedro Terra
Pedro Joana,
Pedro da Guitarra,
Pedro Ninguém,
Pedro, Pedro ... etc...
O campo alheio que Pedro lavra, para nós que estamos fora,
é um ente ao lado do outro ente. Para Pedro no entanto é a presença de todo um
mundo que é a Vida: Joana, Guitarra, Arado, Terra, Nada. O complexo de
conflitos, lutas, amores, alegrias, humilhações, complexo que num processo de
incorporação no plantar, nessa luta de vida ou morte pelo sustento e
auto-realização, se torna o habitat, onde eclode todo um mundo de significações
vitais. Nesse pedaço de terra alheia está, portanto, presente a totalidade que
constitui o sentido desse ente chamado campo. Mas não somente desse campo para
esse indivíduo chamado Pedro, mas sim o sentido do campo como tal, como o
sentido que perfaz a essência de todos os campos enquanto campo.
Um problema difícil de compreender é que esse desvelamento
do ente campo, em sua totalidade é a revelação do sentido não somente desse
campo, para esse indivíduo Pedro, mas sim o sentido do campo em sua totalidade
e como tal. Como tal significa: de todos os campos enquanto campo.
Volta aqui aquele problema, lançado na última reunião por
Tiago: se a totalidade se torna presente nesse ente particular, na sua diferença
singular, como é possível haver mais do que um único ente singular?
Heidegger na p. 37: ‘o grau de revelação do ente em sua
totalidade não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos’.
Isto significa: para que haja a presença do ente em sua
totalidade, não é necessário estar presentes todos os entes em sentido
numérico. Ou melhor, a totalidade da presença desvelada é outra da totalidade numérica.
Existem também graus de revelação, isto é, grau de intensidade da
totalidade. A totalidade no desvelamento não se mede pela extensão, mas sim
pela intensidade. Com isso, esse campo assim é o exemplar, o típico (Gestalt) para todos os outros campos. O
típico não é o coeficiente comum, a média comum de todos os indivíduos, o
típico não é também a soma dos indivíduos. O típico é a forma originária, da
qual os outros recebem o seu modo de ser.
Deixar - ser o ente na sua totalidade é fazer aparecer no ente
todas as implicações ‘historiais’ de uma vida, implicação que não se manifesta
como explicitação desdobrada de algo já existente nesse espaço campo como que
potências escondidas, mas sim na presença da concreção atuante. Essa presença
da totalidade só se manifesta como processo, no qual devemos ‘andar’ juntos com
o caminhar historial da estória de Pedro camponês.
Somente no processo factual e real da estória (História) se
nos revela o ente campo em sua totalidade.
Uma tal revelação, não me traz o vasto conhecimento sobre a
composição química da terra, sobre a sua ‘história’ no sentido:
historiográfico, não me mostra qual o rendimento econômico optimal da área de X
metros quadrados etc. ‘Não coincide com a soma dos entes realmente conhecidos’,
diz Heidegger.
Trata-se antes de uma experiência, sob aspecto científico
rudimentar, mas que tem uma intensidade e concreção do ser muito maior do que a
extensionalidade horizontal dos conhecimentos científicos.
O que dissemos antes da revelação do ente – campo em sua
totalidade no processo da estória de Pedro pode ser mal entendida. A presença
da totalidade não é propriamente a totalidade dos fatos que constituem a
história particular da vida de Pedro. Por outro lado, porém, a presença da
totalidade se revela no processo da vida concreta de Pedro.
A totalidade que constitui o campo alheio lavrado por
Pedro, se torna presente como a concentração da presença do sentido cósmico da
Vida. Esse sentido cósmico é que dá a nitidez e a transparência universal à
vida particular de Pedro que se torna aqui um símbolo universal do camponês
pobre.
Esse sentido se manifesta como disposição de humor, isto é,
como Stimmung do ente em sua
totalidade. É dessa ‘afinação’ que surgem os interesses, os comportamentos do
camponês, aos quais correspondem os entes ‘agrícolas’.
Na vida cotidiana de Pedro no entanto, embora essa Stimmung esteja presente, o interesse
imediato e vivencial está voltado para esse espaço do campo que hoje tenho de
lavrar, esse arado, essas sementes, essa planta. Portanto, como este ou aquele
ente. Que este ou aquele ente surja com o sentido na minha frente, isto está condicionado
pela presença do ente em sua totalidade. Mas logo que se dá o desvelamento do
ente em sua totalidade, justamente com esse desvelamento se dá a afluência
concêntrica da totalidade no corpo desse
ente particular. Essa afluência particularizante é o fechamento da abertura
numa objetivação. Com isso se da o velamento. Esse velamento é uma espécie de
esquecimento em que se faz olvidar o âmbito da abertura, esquecimento que fixa
o ente na sua aparência, hipostatizando-o como este ente particular. Esse
velamento é dissimulação.
Com isso surge um conceito ambíguo de velamento.
O velamento como a gestaltização da abertura na nitidez
transparente da presença universo – singular.
O velamento como a dissimulação: isto é, objetivação da
Gestalt (o ente em sua totalidade presente como Gestalt) numa coisa.
13. Reunião:
Sobre a Essência da Verdade
NB: essa reflexão serve para os dois seminários. Para o
seminário de ‘Sobre a Essência da Verdade’ a reflexão tenta ilustrar o que seja
o desvelamento, o deixar - ser como
liberdade e o historial.
Da
morte livre.
A expressão a morte livre parece insinuar a morte
livremente escolhida. Mas a rápida leitura do capítulo, deixa-nos em dúvida, se
de fato o texto pensa na morte natural ou na morte livremente escolhida e
causada por mim.
A morte, que fenômeno é esse, descrito por Nietzsche, seja
ela suicida, seja natural?
Para ter acesso à morte a partir da qual o texto fala,
é necessário examinar o horizonte dentro do qual acabamos de colocar a
pergunta: a morte, que fenômeno é esse descrito por Nietzsche?
Essa pergunta pressupõe a morte como objeto da
descrição. Um fenômeno observado no outro como objeto do meu conhecer. O
homem nasce, vive e morre. Vida como um trecho de tempo, com o seu começo,
meio e fim. A morte é o fim como o ponto final de uma linha que
inicia com o nascimento. A minha morte, nessa perspectiva, eu a percebo também
como objeto do meu conhecer. Certamente, esse conhecer não é a morte que eu
morro, mas sim, a morte que eu concebo como antecipação, segundo o modelo
adquirido através da observação da morte do outro.
A morte que eu observo no outro ou a minha morte concebida
segundo o modelo da morte do outro; e a própria morte que eu vou morrer, morte
que atinge também a possibilidade de eu conceber a minha morte como objeto…como
se relacionam esses dois modos de ser da morte?
A nossa compreensão usual da morte quando dizemos ‘a morte,
que fenômeno é esse? A morte daquela pessoa; a morte do meu pai; a morte de
John Kennedy; depois da morte virá o juízo e a ressurreição; na morte tudo se
acaba etc etc.’…Já opera dentro de uma pré-compreensão do tempo.
Poder-se-ia examinar a intencionalidade, por exemplo, das
companhias de seguro, das empresas funerárias, as instituições clínicas,
associações para o salvamento de vida etc. Provavelmente descobrimos como
horizontes dessas objetivações, o mesmo modo de ser da morte, cuja
pressuposição assinala uma determinada pré-compreensão do tempo que é idêntica
com a nossa pré-compreesnão usual do tempo.
Esquematizando ao máximo o modo de ser desse tempo usual,
teremos a estrutura acima insinuada de um trecho de linha, cujo começo é o
nascimento, cujo meio é a vida e cujo fim é a morte. É o modelo de sucessão
progressiva do passado, presente e futuro. A nossa compreensão usual da morte
se constitui dentro desse esquema de sucessão.
Examine-se a si mesmo para se tornar nitidamente consciente
de como nosso pensar está preso a esse modo de ser do tempo. E a partir dessa
consciência, perguntar: será que a morte que eu vou morrer pode aparecer com a
morte, dentro do horizonte de uma tal temporalidade?
Peço também observar o processo da nossa indagação. A
pergunta inicial: a morte, que fenômeno é esse, se transformou numa pergunta
fundamental pela temporalidade da morte.
E a pergunta pela temporalidade não diz respeito somente à
morte, mas também à vida. Pois, na compreensão usual da morte e vida, operamos
dentro do horizonte da mesma temporalidade cuja estrutura se caracteriza como
sucessão lineal de passado, presente e futuro.
Portanto, a pergunta se amplia numa outra pergunta: será
que o horizonte da temporalidade sucessiva é o horizonte adequado, onde a vida
e a morte podem se revelar como elas são na verdade?
Dentro do processo da nossa reflexão nietzschiana, a
resposta é negativa. Pois, esse modelo de temporalidade usual já é o produto da
vida. A morte é justamente a impossibilidade dessa vida que serve como
fundamento e origem do esquema da temporalidade sucessiva. Como tal a morte não
pode ser pensada a partir dessa temporalidade-produto. Como pode algo pensar
através da categoria de algo a sua própria impossibilidade, o seu próprio nada?
Nietzsche diz no capítulo sobre a morte livre: “O
ensinamento que diz ‘morre a tempo’ ainda nos soa estranho” (cfr. a tradução do
livro…).
Na perspectiva do que dissemos acima: ‘morra a tempo’ nos
diz: a morte tem o seu próprio horizonte de temporalidade. Temporalidade que
não se estrutura no esquema de tarde (futuro) e cedo (passado), esquema esse
familiar ao nosso pensar da metafísica. Por isso o tempo da morte é-nos
estranho, ainda estrangeiro.
Essa impotência do pensar diante da morte, nos leva a
perguntar: como é possível experimentar a morte? Talvez possamos responder com
muita cautela: a morte é experimentada como o que nos sobrevem.
O que quer dizer isso? Por que é necessário a cautela?
A cautela se refere à formulação: a morte é experimentada
como o que nos sobrevem. Essa formulação está dentro do esquema:
experimento algo chamado morte como objeto.
Essa morte-objeto não é mais originária. É o produto do
horizonte da temporalidade-sucessão acima mencionado.
A morte enquanto morte é antes ela mesma um horizonte. Uma
abertura, uma disposição ontológica, estrutura fundamental da vida que
possibilita as ‘experiências’. Porque a vida já tem no seu seio uma abertura
fundamental chamada morte, podemos pensar algo como objeto morte.
Mas esse pensar algo como objeto morte, não é mais a experiência
originária da morte. A experiência não é experiência de (sobre). É antes a
própria abertura ontológica a partir da qual há experiência de alguma
coisa.
Por isso a formulação de cima ‘a morte é experimentada como
o que nos sobrevem’ deve ser corrigida. Possamos talvez dizer: a morte é abertura fundamental da nossa vida, é
a essência onipresente na nossa vida, é a própria estrutura da vida.
Mas essa estrutura tem o seu modo próprio de ser. Esse modo
de ser pode ser caracterizado por um verbo: ‘sobrevem’.
Portanto: a morte é a estrutura da vida que tem o mode
de ser da sobrevivência.
Para compreender o que acabamos de dizer, vamos recorrer a
um termo que na filosofia contemporânea substitui o termo vida, a saber:
existência que se escreve: ek-sistência.
Ek significa: abertura
originária. Sistência significa: permanência, objetivação,
corporificação.
A estrutura da vida humana é ek-sistência, isto é, a vida
se constitui como o processo no qual se abre um horizonte dentro do qual surge,
aparece, toma corpo aquilo que o homem é cada vez na sua concreção.
A dificuldade de compreender essa exposição vem,
certamente, do meu modo desajeitado de formular, mas também de um pré-conceito
que infecciona a nossa mente. Esse pré-conceito é o nosso bitolamento objetivista.
Ou para ser mais exato: bitolamento subjecto-objetivista.
Bitolamento objetivista porque pensamos, a verdade para ser
verdade deve ser ob-jectiva. E nem percebemos que o termo objetivo significa
pro-jectivo. Ob-jecto é o que é pro-jectado. Projectado a partir donde? A
partir de uma abertura, dentro de um horizonte.
Bitolamento subjetivista, porque ao ver que o ob-jecto é
pro-jecto de abertura originária, dizemos: Ah! então tudo é subjetivo. E não
percebemos que o subjetivo não é oposto ao objetivo. Quem diz objetivo, diz ao
mesmo tempo subjetivo e vice-versa, como no caso da correlação: pai-filho,
absoluto-relativo, dentro-fora, direita-esquerda etc. Além disso, quando você
desconfiar pergunta: ‘não é tudo subjetivo?’ não percebe que você concebe o subjetivo
como objeto, isto é: você está imaginando ou o outro ou a si mesmo como se esse
sujeito ali, à maneira de coisa que tem seus atos psíquicos, com os quais se
relaciona aos objetos, existentes em si. E não percebe que considera tanto o
objeto como o sujeito (lá e cá) dentro de um único horizonte coisista: tanto
objeto como sujeito são ‘coisas’. Com outras palavras: quando você diz objeto e
sujeito, você pode dizer isso, porque você já está dentro de uma abertura, onde
algo como o sujeito e algo como objeto se tornam possíveis, podem aparecer.
Portento, você já é ek-sistente de um modo todo especial.
O horizonte, a abertura originária, por conseguinte, é uma
dimensão anterior ao sujeito e objeto. Por isso devemo-nos acautelar
continuamente de não interpretá-la como uma simples vivência subjetiva
psicológica. Você pode vivenciar algo subjetivamente porque você está dentro da
abertura originária.
Depois dessa reflexão preventiva contra uma falsa
objetivação do horizonte, vamos voltar à estrutura da ek-sistência.
Dissemos acima: ek é abertura originária. Sistência é a
permanência, a objetivação, a corporificação a partir e dentro dessa abertura.
Como devemos entender isso? Como num processo. Processo,
como? Como História. Ou melhor: como estória. A vida é, pois, estorial.
O modo de ser da vida humana não é o modo de ser da pedra, da planta, do
animal. Ele é estorial. Como?
Explicar o como do modo de ser estorial é muito difícil.
Pois, sempre de novo se infiltra no pensamento de quem fala e de quem ouve
conceito e imaginação objetivados.
No entanto, se quisermos compreender ao menos um pouco o
modo de ser da filosofia, é necessário tentarmos ver essa estrutura do processo
estorial.
Por isso, a seguir, uma tentativa de elucidação. Para isso
vamos recorrer a uma figura desenhada por Paul Klee (cfr. uma das
enciclopédias, sob o verbete Klee).
Paul Klee
Descrição:
A linha começa num ponto. É o zero do movimento, parado,
ponto morto, como que a concentração de todas as energias da possibilidade
desse ponto. Dou os primeiros passos, tateantes, indefinidos, inseguros. Começo
a correr, aos poucos, a acelerar. Desse aceleramento, no ponto cento, no tempo
certo, que nasce da acumulação do aceleramento, a partir dessa concentração
energética dou uma guinada e levanto o vôo, não num vertical explosivo
inflacionário, mas sim numa curva que economiza e ao mesmo tempo acumulada e
retoma a energia já armazenada para um salto vigoroso e vertical para cima.
Monto por assim dizer no vigor desse salto, deixo que o impulso me carregue até
o ponto certo onde se esgota, aproveito então a curva da queda para montar num
outro impulso cadente e deixo-me levar para um outro salto de âmbito maior que
por sua vez, no tempo certo originante do impulso de curvatura, traça mais duas
curvas que me impulsionam para um novo salto ascencional.
Esse salto resultante de todo o complexo dos saltos
anteriores, é um pairar elegante que se esvai numa suavidade elegante e
vigorosa da linha prolongada com ponta que não é um ponto final, mas sim a
síntese de todo o processo.
Interpretação:
Comparando a linha de Klee com o traçado ao lado, vemos
claramente a distinção. A linha de Klee tem história. O traçado geométrico,
não.
Mas em que consiste a história ou melhor a estória?
Consiste na estrutura processual, em que cada passo nasce
do outro numa implicação de progressão que não é simplesmente uma evolução, mas
sim a constituição, a criação do destino. Nesse destino cada momento retoma os
passos já percorridos para dar-lhes novo sentido dentro da totalidade que brota
do acúmulo da energia da situação presente, decidindo com isso o rumo do passo
seguinte.
O tempo nessa estrutura não é uma sucessão de
trechos homogêneos cronológicos. Antes, cada passo constitui o Kairós,
isto é tempo decisão. Há, portanto, momentos exatos de guinada, momento exato
onde o impulso perde o seu fôlego, para deixar-se cair, há momento exato, onde
a queda se transforma em novos impulsos, há também o momento exato, onde todo o
elã se esvai num esgotamento necessário.
O momento exato é o tempo. O tempo da estória é o tempo da decisão. O
tempo oportuno. A hora (cfr. a Bíblia).
Esse tempo oportuno não é previsível, não é calculável, ele
nasce no seio de um processo que concresce (concreto!) de dentro
como o acúmulo de vida que num certo ponto crítico salta para uma nova decisão,
dando como o salto, uma nova orientação à totalidade do processo. O ponto
oportuno deve ser por isso nem mais nem menos. Se for demais, é
demasiadamente tarde, se for cedo, não é a tempo. (cfr.
Nietzsche, Da Morte Livre).
O ponto final não é um ponto de chegada como no caso do
traçado geométrico, mas como que a última ressonância da totalidade. Nesse
último acordo - harmonia, está todo o presente na retomada que é mais um remate
da obra de arte do que um ponto final. Quanto mais se avança, mais se torna
presente o passado como a presença da totalidade. De tal sorte que o fim
é lá onde se revela a vida como estória na sua totalidade.
Morte, nessa estrutura portanto, não é o fim, mas sim a
revelação, o desvelamento da totalidade na sua estoricidade. Morte e
Vida coincidem nessa estrutura.
Experimente agora imergir no movimento desse processo e andar
(andar junto com o processo se exprime em alemão pelo termo: erfahren, er-fahren: andar junto. Ora erfahren
significa: experimentar), o caminho dessa linha, concrescendo com a sua
estória. Isso é experiência
originária. Você verá que os momentos da vida não são criados por mim,
não estão sob o seu poder de dominação. Eles lhe sobre-vêm. Isto é, a
sua atitude é de auscultar no caminhar. Qual o atleta que ao correr, vai
auscultando a voz da energia que cresce em si para o salto decisivo. A sua
atitude é de abandono, de obediência. A sua vida portanto é uma abertura (ex)
que deixa-ser a vida, acolhe a sobreveniência do tempo oportuno, e nesse
abandonar-se, se constitui (sistência) como a vida humana, isto é, como
ex-sistência estorial. Isto é ser homem. Ek-sistência é ser homem, e ser homem
é a abertura para a sobreveniência estorial.
Este abandonar-se à constituição estorial se chama liberdade.
Morte livre por
conseguinte é um termo que resume essa estrutura do processo estorial.
A partir dessa estrutura, a partir desse modo de ser, desse
horizonte você poderá compreender o capítulo da morte livre em Nietzsche, no
qual ele descreve tipos deficientes do ser – humano, em que não se deu,
não aconteceu essa sobreveniência, por terem sido intempestivos: cedo ou
tarde demais, não no ponto oportuno da sazonamento.
Para
a seguinte reunião:
Refletir em grupo: por que Nietzsche acusa a Jesus Cristo
(o hebreu) de ter morrido cedo demais?
NB: a afirmação da terra é um tempo oportuno. Ao passo que
a fuga romântica para o céu, é cedo demais!
14. Reunião:
Sobre a Essência da Verdade
Cap. 6: a não – verdade enquanto dissimulação.
Vamos fazer algumas considerações sobre o capítulo.
O capítulo tem duas partes: a primeira parte vai da 1a
alínea da p. 39 até à 1a primeira alínea da p. 40 exclusivo:
“o velamento do ente”.
A segunda parte vai da 1a alínea da p. 40 até o
fim do capítulo: “A Liberdade – da verdade”.
O capítulo todo fala da não – verdade, do não –
desvelamento, isto é, do velamento.
Na compreensão do velamento, porém, vibram dois
momentos. O termo velamento é pois ambíguo.
O primeiro momento,
tratado na Segunda parte diz: o velamento é o mistério do Ser.
O segundo momento,
tratado na segunda parte diz: o velamento é o esquecimento do mistério do
Ser.
O título do capítulo “A não – verdade enquanto dissimução”,
traduz o termo alemão Verbergung
com dissimulação. Pessoalmente haveria de traduzir o Verbergung com o termo: encobrimento. Pois, encobrir pode
significar: cobrir para defender, guardar, proteger, por exemplo, as pálpebras
fechadas encobrem as pupilas dos olhos: contém o mistério do olhar. Encobrir
pode também significar: tapar, fechar, entulhar, fazer desaparecer, tolher.
Encobrimento como continência do mistério é o
sentido do velamento na primeira parte do capítulo.
Encobrimento como tolhimento do mistério é o sentido do
velamento na segunda parte do capítulo.
O capítulo é difícil de entender, pois a exposição para nós
que não vemos, parece muito abstrata. Para ter alguns fios de condução,
precisamos de fenômenos. Com a divida cautela em não se fixar demais nos
fenômenos, eis aqui alguns fenômenos que ilustram o velamento como continência
e o velamento como tolhimento.
O velamento como continência do mistério
Existe um filme japonês que se tornou célebre no Ocidente e
ganhou a palma de ouro em Cannes; chama-se: A porta do inferno. O filme,
baseado numa estória budista da Idade Média japonesa, narra a tragédia de
Kessa, assassinada pelo General Morito, em defesa da fidelidade conjugal.
Kessa, esposa do nobre Wataru Saemon-no-jo, serve como dama
de corte no palácio do senhor feudal, de quem o seu marido é general. Um dia o
palácio é cercado pelos inimigos. Torna-se necessário salvar a princesa real, a
quem os inimigos queriam capturar como refém. Diante da supremacia da força
inimiga, não há possibilidade de romper o cerco, a não ser por uma estratégia.
A estratégia consiste em atrair a atenção do inimigo para a saída oriental do
palácio, aproveitar a confusão e fazer escapar a princesa real pela saída
ocidental. Para isso Kessa, livremente se oferece para entrar na carruagem
real, simular a fuga da princesa pelo portão oriental. Morito, jovem oficial,
com um pelotão de guerreiros decididos a morrer, acompanha a carruagem falsa e
atrai a atenção do inimigo. Mas numa luta feroz, Morito consegue romper o cerco
e salvar a Kessa, que está desmaiada. Ao ver a dama da corte, inconsciente,
Morito fica apaixonado por ela.
Voltam os dias de paz. Morito tenta aproximar-se de Kessa,
esta o evita. Morito descobre que Kessa é a esposa do nobre Saemon-no-jo. Mas,
a sua paixão por Kessa aumenta. Jura possuí-la a todo custo. Usando de um
ardil, Morito consegue atrair a Kessa para a cada da tia dela, onde ameaça
matar a ela e a seu marido, se não aceitar o seu amor.
Levada pelo cuidado pela vida do esposo, mas na decisão de
jamais quebrar a fidelidade conjugal, Kessa decide a morrer no lugar do seu
marido. Ela diz sim a proposta de Morito, mas com a condição de ele na mesma
noite matar o seu marido. Ela promete deixar a porta do quarto de Saemon-no-jo
aberta, para que morito o possa matar. (Na Idade Média, os casais dormiam em
quartos separados). Volta à casa, finge alegria, convida o marido a tomar
vinho, o embriaga, fá-lo dormir no quarto dela e a própria Kessa vai dormir no
leito do marido. À meia-noite Morito assassina a Kessa, pensando ser
Saemon-no-jo.
A cena do encontro, onde Kessa se decide a morrer é muito
sóbria.
Não há violências externas. Há, porém, na expressão do
rosto uma intensa luta de sentimentos.
A câmara mostra o rosto de Kessa. Delicado, profundamente
feminino, aparentemente tranqüilo. Mas nessa serenidade de fraqueza impotente,
perpassa um tremor quase imperceptível, qual um hálito de vento na superfície
tranqüila do lago, e numa fracção de segundos se revela a agitação das
profundezas.
Há um silêncio prolongado. Na tensão desse silêncio, Kessa
pronuncia a palavra sim. Ao dizer sim, fecha os olhos, lentamente.
Todo o rosto se vela numa tranqüilidade serena. Poder-se-ia dizer: o sim
são as pálpebras fechadas numa concentração interior. As pálpebras cobre o
abismo da dor que se rasgou por instantes, quando o tremor sacudiu a superfície
do seu rosto. As pálpebras trêmulas numa vibração imperceptível, serenas, com-têm,
cobrem, guardam todo o pudor da dignidade feminina ultrajada, dor, ternura do
amor ao esposo, cuidado pela sua vida, medo, saudade, tristeza, ódio, a decisão
inabalável de manter a sua fidelidade, o abandono da fraqueza entregue à ameaça
da morte.
Esse encobrimento que ao guardar, ao fechar,
revela o âmago do Ser, esse desvelamento no velamento é o que Heidegger
chama de não – verdade, enquanto encobrimento. É o Mistério do Ser, a
Presença da Totalidade do ente na sua interioridade, o reino
‘não-experimentado e inexplorado da Verdade do Ser’(p. 40).
Podemos, portanto, dizer que a não – verdade, isto é, o não
– desvelamento, isto é, o velamento, o encobrimento pertence essencialmente ao desvelamento
como o avesso do verso de uma folha. É por assim dizer anterior ao desvelamento,
pois o mistério consiste na interioridade, na profundeza do Ser, donde a
verdade eclode no desvelamento.
Um outro fenômeno do velamento como guarda e proteção
da totalidade do Ser na sua interioridade é o botão de rosa. As pétalas, quais,
pálpebras, encobrem a rosa que vai eclodir. Mas justamente nesse encobrimento, revela
a Vida, as promessas de vida, todo o mundo de rosa na sua nascividade e
frescor. O botão é nesse sentido mais rosa do que a rosa aberta. A rosa aberta
está por assim dizer mais presente na proteção do encobrimento, nesse mistério
do botão que na própria rosa aberta.
O velamento tem o modo de ser da revelação do pudor.
Pudor originariamente é cobrir-se, não no sentido de esconder algo vergonhoso.
Essa interpretação já é derivada, coisificada. O pudor é algo como a proteção
que a integridade total da vida mantém para não volatilizar a unidade e a
auto-identidade no seu vigor, na sua plenitude. A vida na sua interioridade só
pode se desvelar no encobrimento. É essa
plenitude no vigor de sua totalidade que Heidegger chama de velamento como o
mistério do Ser. Mistério em alemão se chama: Geheimnis. Geheimnis vem
do termo Heim. Heim é o lar. É o em casa, o torrão natal de familiaridade. Heim é lá onde o humano vive como
humano sem destorcer da sua nascividade. Desvelamento é o humano, e o humano é
a casa do Ser.
O
velamento como o esquecimento do mistério do Ser
Esse tipo de encobrimento em vez de ser revelador no seu
encobrimento do mistério, tolhe, entulha justamente o caráter do mistério.
Encobrir, portanto, não tem tanto o sentido de esconder um Ente. Antes pelo
contrário, ele põe à luz nítida de um determinado enfoque o Ente. Mas,
com isso, faz recuar o mistério do Ente na sua totalidade; para esquecer que o
Ente só se revela no âmbito do desvelamento cuja origem é o encobrimento como
mistério. No caso, por exemplo, do botão de rosa, o velamento como tolimento
faz aparecer o botão dentro do enfoque bem claro e delimitado do objeto da
botânica, objeto da venda etc. Com isso, no entanto, não deixa o botão ser no
seu mistério como a interioridade do Ser. Ao mesmo tempo não consegue explicar,
donde nasce o próprio enfoque botânico.
Ilumina o ente, este o aquele, perde-se nele, sem poder
revelar a própria fonte da luz.
Quando esta tendência e o poder de saber nos toma conta e
eu não mais percebo nem sequer a presença da ausência do mistério, é então que
o próprio poder do saber se torna ele
mesmo radical impotência perante o mistério. É tão radical a sua própria
impotência que nem sequer sabe da sua impotência.
É, portanto, na ausência da ausência que mistério se torna
presente como aquilo que é radicalmente outro ao poder do pensar, com
aquilo que não está à mercê da vontade do poder.
É bem possível que esta auto-consciência do saber como o
poder, quando se torna tão radical que nem sequer consegue perceber a total
impotência, tenha-se tornado a partir da sua interioridade um campo aberto onde
a ausência do mistério se torna dolorosamente presente, como a impotência do
poder do pensamento.
15. Reunião
: Sobre a Essência da Verdade
Capítulo 7: A não verdade enquanto errância
O capítulo 6 falou do velamento como contingência do
mistério do Ser. No fim do capítulo começou-se a falar do modo, digamos,
distorcido do velamento que nos levava ao tolhimento, ao esquecimento do
mistério do ser.
O capítulo 7 fala mais especificamente desse esquecimento e
o denomina de errância.
O termo errância, errar, devemos talvez ouvi-lo mais
na acepção de vaguear errante fora do rumo originário. O termo alemão para
errância é Irre. A palavra indica também a pessoa louca, tresloucada. ‘
Louco’ aqui entendido no sentido da expressão de G. K. Chesterton que fala de
uma ‘verdade enlouquecida’. Você toma uma verdade, isola-a das outras, a
absolutiza. A verdade por assim dizer se ‘desembesta’ e acaba se tornando
falsa. Uma tal verdade enlouquecida é, por exemplo, a justiça que só quer ser
justa a todo custo e nada mais: fiat iustitia
et pereat mundus!
A liberdade como abandono ao desvelamento do mistério do
ser é ek-sistência. Essa abertura nasciva não é uma abertura desbaratada,
escancarada, mas algo como velamento sereno da superfície no lago
profundo. Esse velamento tênue e fugaz no seu equilíbrio é a presença do ente
na sua totalidade. Ek-sistir indica, portanto, a pulsação desta vida, a
respiração tranqüila e plena desse equilíbrio. Como tal o desvelamento do
mistério, é somente possível no movimento, no processo. Ek-sistir é sistir, isto
é, ser como e em essa respiração.
A presença do velamento desvelador como o mistério do ser,
no entanto, não está sob o domínio do nosso poder. Não podermos causar nem
prever ou calcular o seu aparecimento. Pois, é justamente o mistério do ser que
nos abre a possibilidade e a abertura da liberdade.
Não possuindo poder nem supervisão sobre a Presença do ente
em sua totalidade, ek-sistindo no âmbito tênue do velamento, a nossa tendência
é de perpetuar, assegurar, nos apoderar deste instante de nascividade. Fixamo-nos
no ente, olvidando o seu nascimento como ente na sua totalidade. Esquecemos
que é só à mercê da nascividade que nos é dado o ente. Na abertura da
ek-sistência tomamos posição de asseguramento, in-sistindo no ente. A
abertura que estava, por assim dizer, voltada para a gratuidade do
mistério do ser, dá-lhe as costas e volta-se para o ente, não mais no abandono
do deixar-se, mas sim, na preocupação de tomar medidas de asseguramento
do ente, de ter a certeza do ente. O ente como fator de nossa segurança. O ente
como preocupação se torna medida de nossa existência. Isto é in-sistência.
Esse dar às costas à nascividade, dirigir-se ao ente na
busca da segurança, concatenar um ente com um outro na rede desse asseguramento
e assim ir de um ente para o outro, criando todo um mundo de ocupações, tudo
isso acontece ao mesmo tempo. É esse movimento que cria a História da
Humanidade como existência ocidental. Essa odisséia do pensar ocidental se
chama: errância.
O movimento de afastamento da nascividade para a
in-sistência nos entes em particular como articulações do auto-asseguramento é
irreversível. A errância pertence à essência do desvelamento. Nós, a Humanidade
historial, estamos metidos nesse movimento. A errância como ex-sistência
insistente é um destino, o nosso destino, isto é, a nossa História.
É como se fôssemos ondas circulares da superfície de um
lago, que se afastam cada vez mais do centro onde se desencadeou o primeiro
movimento ondulatório com a queda de uma pedra. Portanto, a raiz, o fundamento
de todos os erros, está nessa estrutura historial da errância. Como tal, a
errância pertence à essência da Verdade; como a expansão da onda pertence
necessariamente ao impulso originário do centro ondulatório. E o esquecimento,
o afastamento do mistério do ser pertence necessariamente à errância, como o
afastamento das ondas do seu centro pertencem ao movimento da expansão.
O movimento da errância é, portanto, estrutura
essencialmente à abertura do ser-aí, da ek-sistência. Ele domina, portanto, o
homem (p. 44).
Por conseguinte, a partir da reflexão desse capítulo é
necessário revisarmos tudo o que viemos dizendo até aqui sobre a abertura
originária de liberdade.
O desvelamento na sua originária nascividade e limpidez não
é mais possível à nossa época humanidade. Não é possível sairmos da nossa
situação, do processo expansivo da errância, voltarmos ao arcaico-pretérito da
origem no recolhimento.
Não podemos? Heidegger diz algo diferente. E di-lo de uma
forma que nos leva a precisar a nossa reflexão: ‘mas pelo desgarramento a
errância contribui também para fazer nascer essa possibilidade que o homem pode
tirar da ek-sistência e que consiste em não se dixar levar pelo desgarramento.
O homem não sucumbe no desgarramento se é capaz de provar a errância enquanto
tal a não desconhecer o mistério do ser-aí’ (p.44). nós estamos, pois, metidos
até os ossos nesse processo de errância. Não há para nós nenhuma possibilidade
de sair dela. Sair seria uma tentativa tão absurda como saltar sobre a própria
sombra, como a tentativa do barão Müchhausen de sair de um pantanal que o
engolia, puxando-se pelos próprios cabelos.
Não se trata de sair da situação; antes, pelo contrário,
trata-se de imergir nela. Mas ao imergir surge a chance de o Mistério do ser se
desvelar como a ausência, de um movimento da errância, que nos carrega,
nos faz ver no seu movimento, que ele é o movimento de desgarramento. A nossa
situação é semelhante à de um astronauta que inteiramente fechado no seio
escuro de um foguete, sem janelas, foi lançado no espaço. Não possuímos nenhum
ponto de referência a não ser a nossa imanência. Pois, toda a comparação
estabelecida com o passado, é uma comparação feita a partir da nossa imanência.
Mas o lançamento originário imprimiu ao foguete uma aceleração (errância). Que
tenha havido um lançamento não podemos saber de fora. Mas resta uma possibilidade
ao nosso astronauta. Ao auscultar de dentro, imerso no movimento ele
pode perceber aos poucos o aceleramento do foguete e descobrir que está se
perdendo cada vez mais no espaço. Essa percepção é “provar (isto é,
experimentar) a errância enquanto tal” (p. 44). Nessa experiência se
manifesta o mistério do ser-aí, como ambigüidade, como presença do ser na
ausência.
Com outras palavras: ao auscultar a aceleração da errância,
o homem percebe a ausência do mistério do ser como ameaça de algo que lhe
falta. Assim “a ameaça de desgarramento” que é a presença ameaçadora da
ausência do mistério do Ser “mantém o homem na indigência do constrangimento”
(p. 44).
Com outros termos, o homem começa a perceber a inanidade, a
indigência, da sua segurança. Ele que vivia na errância, esquecido do mistério
do Ser, portanto, ele que vivia na sua situação como um estado normal, sim,
como progresso, desenvolvimento, conquista e vitória começa a perceber que tudo
isto está se minando por dentro, em si mesmo, que está ficando vazio de
sentido. Nesse vazio, isto é, na experiência da errância como errância, se
revela o mistério do ser como ausência.
Assim, o homem começa a oscilar entre a sua total imersão
na expansão errante e no vazio da ausência de sentido. Com isso ele não
é mais o esquecimento do mistério do ser que nem se quer percebe o
esquecimento. Ele se volta ao mistério do ser, não através de uma reviravolta,
mas pela radicalização do esquecimento do ser. Avança tanto que no próprio
afastamento começa a surgir o vácuo do afastamento como ausência, como
indigência. O ser-aí como errância se transforma em, se torna um voltar-se
para a indigência. Esse voltar-se para a indigência é a necessidade
como transformação operada a partir do interior do próprio movimento da
errância através da autoradicalização (p.44).
Do capítulo 6 sabemos que ‘O desvelamento do ente enquanto
tal é, ao mesmo tempo e em si mesmo a dissimulação do ente em sua totalidade’
(p.44).
No entanto, essa afirmação deve ser entendida exatamente. O
desvelamento do ente enquanto tal se dá originariamente como o velamento do
mistério do Ser. Esse velamento não é o esquecimento do mistério do ser. Antes,
pelo contrário, é a Presença do Ser. Mas essa presença que é o equilíbrio tênue
só se torna presente com a ‘dissimulação do ente em sua totalidade’ (p. 44).
Nesse sentido o desvelamento do ente enquanto tal é, ao mesmo tempo, isto é,
simultaneamente, o esquecimento do ente em sua totalidade. Nessa simultaneidade,
nessa ambigüidade está o ponto onde pode acontecer o declínio do
desvelamento para a errância. O velamento como guarda do mistério se
hipostatiza como este ou aquele objeto em particular, serve então como
articulações (e) da abertura do auto-asseguramento da ek-sistência insistente,
isto é, da errância.
Portanto: a dissimulação do que está velado (isto é, a
entificação, a objetivaçào) e a errância (isto é, o desencadeamento do
inter-esse assegurante) vão juntas e pertencem à essência originária da verdade
(isto é, ao modo da presença atuante da verdade como ela se apresenta na
situação epocal da atual humanidade).
A Liberdade como abertura que deixa ser o ente na sua
totalidade deve ser compreendida a partir da errância, do nosso destino
historial, a partir da ek-sistência in-sistente do nosso ser-aí (p.44, última
alínea).
No início do nosso seminário dizíamos: usualmente se define
a essência da verdade como adequação da enunciação com o objeto, isto é,
como conformidade da apresentação. Essa concepção da verdade, ou melhor,
da presença atuante (essência no sentido verbal) da verdade.
É a concepção do ‘senso comum’ e vê a essência da verdade
dentro dos moldes da errância. A coisa, o objeto é a medida da verdade. Mas, ao
dizer isso, já se concebeu o ente como objeto. O ente não é mais visto como a
presença encoberta do mistério do Ser, mas sim, como aquilo que dá e determina
a certeza e o asseguramento da minha existência que consiste em saber.
Eu não deixo mais o ente ser, mas o uso como medida de minha segurança. Isto já
pressupõe um horizonte de pré-compreensão, a saber: ser homem não é estar ao
mistério do Ser, mas sim ter conhecimentos certos. E ter conhecimentos
certos é assegurar a minha existência, perpetuá-la, criando um mundo de entes,
colocando-os sob normas e leis que possibilitam a previsão, provisão, o
cálculo, o domínio, o progresso.
Dizer: ‘o ente é a medida do meu conhecimento’ soa bem.
Parece estar se dizendo: deixemos o ente ser ente. não se percebe no entanto
que ao dizermos isso, tacitamente já acrescentamos: Objetivamente. E não
damos conta de que atrás desse ‘objetivamente’ se esconde o inter-esse
virulento de auto-asseguramento: somente o que é previsível, calculável, certo,
assegurativo do meu saber tem o direito de ser ente. A ek-sistência obj-ectiva
que perfaz a nossa estrutura historial está inteiramente ordenada, dominada
pelo processo da errância como a vontade de dominação, de apropriação do ente
para a nossa própria segurança, se embala na aceleração da errância. A nossa
ek-sistência, o nosso ser-aí é in-sistência na objetivação. Libertar o ente,
deixar-ser o ente, se entende como arrancá-lo do mistério para a dominação,
para apropriação. Portanto, a adaequatio
rei et intellectus se baseia nessa abertura da ek-sistência
in-sistente, na abertura da errância!
Revisando o que dissemos e entendemos antes dessa análise
do capítulo 7, podemos agora dizer: não é assim que por debaixo da fossilização
objetivista do adaequatio rei et
intellectus esteja imediatamente a abertura originária autêntica do
deixar-ser-o ente como o desvelamento da liberdade?
Pois, o capítulo 7 nos mostra que a Liberdade na nossa
situação epocal ocidental só atua como a presença ausente, como a
errância que se chama objetivação ou vontade do poder.
Portanto, devemos procurar a ‘possibilidade’ da abertura
originária no próprio processo historial da errância. Haverá essa
‘possibilidade’?
Heidegger responde: essa possibilidade é a própria opressão
(constrangimento) da ameaça da indigência, que irrompe no próprio seio da
errância como necessidade inelutável (p..44), como a ausência do
mistério do Ser.
Com outras palavras: a liberdade, a abertura originária, o
deixar-ser o ente em sua totalidade para nós que estamos perdidamente embalados
no elã da errância, é a experiência da própria errância como um mistério
(pp.44-45).
A exacerbação da vontade do auto-asseguramento, a
aceleração do saber que é a dominação do ente, na proliferação frenética
trans-cendente de medidas de segurança, organizações, cálculos e pro-gressos,
começa a se reacender, volver-se para dentro de si mesma e experimentar a total
gratuidade, a inanidade de sua im-posição. Com outras palavras, se experimenta
a própria energética da errância como o mistério da errância que não está mais
sob o meu poder. Isto é: o próprio poder no seu poder não se tem a si mesmo
mesmo sob a medida do seu poder.
Dito de uma outra forma: o esquecimento do mistério do ser
, se intui (intus esse) como
mistério do esquecimento do ser.
Somente, quando a estrutura do conhecer assegurativo (adaequatio rei et intellectus)
racha por assim dizer de dentro para fora e liberta a sensibilidade,
isto é, a capacidade de uma abertura para o mistério, se torna possível
“colocar mais origináriamente a questão da essência da verdade” (p. 45).
Somente então “se revela afinal o fundamento da implicação da essência da
verdade com a verdade da essência”.
Com outros termos, a essência, isto é, a presença atuante
do desvelamento do ser está ligada intimamente com o modo de desvelamento dessa
própria atuação que no nosso caso é ausência, silêncio, esquecimento,
velamento, modo de ser esse que o saber da dominação desconhece.
Essa rachadura que liberta o campo aberto onde se coloca a
questão da essência da verdade, onde se percebe a diferença onto-lógica entre o
mistério do ser e seu esquecimento, entre ser e ente, é a ferida
originária que nasce juntamente com o desvelamento do ser. Dessa ferida (Ur-sprung, salto originário) e rompe o
abismo infinitesimal da Wende (versão, guinada), como o movimento da errância,
como o desgarramento que embala a História da Humanidade na busca trans-cedental
dissimulada de sua própria origem como Unidade da total Identidade. Esse
movimento da trans-cendência que hoje se camufla na expansão imperialista e
planetária chamada civilização científico-tecnológica é a Meta-física, lugar
onde habita a questão do ser do ente (p. 45).
A Liberdade como ek-sistência in-sistente da errância na
presença do desvelamento na ausência dissimulada é a filosofia. A essência da
verdade é a essência da filosofia.
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