sábado, 23 de abril de 2016

História da Filosofia Contemporânea





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Indicação de Leitura

A educação ontológica:
uma possível relação entre educação e arte,
a partir do pensamento de Martin Heidegger*


Fernando Pessoa


Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo.

João Guimarães Rosa



Embora Heidegger não tenha problematizado explicitamente o tema da educação, esse problema está presente de modo velado em diversas obras de seu pensamento, à medida que a sua tarefa fundamental é recolocar a questão da verdade do ser na relação com a essência do homem e, assim, numa espécie de “educação ontológica”, trazer o homem de volta à propriedade de seu ser: “Para onde se dirige a cura senão no sentido de reconduzir o homem de volta à sua essência?”[1]

Distinto da interpretação medieval e moderna da existência como realidade efetiva, segundo Heidegger a existência é a essência do homem: somente o homem existe. O que não significa afirmar que apenas ele é real, mas que é o único ente que se realiza a partir e através de uma compreensão de ser. O nosso ser nunca se apresenta como algo pronto e acabado, pois estamos sempre vindo a ser o que somos, a partir e através da compreensão existencial de nossa conjuntura. Existir, para Heidegger, significa: ser na compreensão de ser: “A metafísica se tranca ao dado essencial simples, de que o homem só vige em sua essência, enquanto é interpelado pelo ser. (...) Chamo de ec-sistência do homem o estar na clareira do ser. Esse modo de ser só é próprio do homem.” (CH, p. 41; UH, s. 13)

Por existir, o homem possui uma relação essencial com o ser, a qual, de acordo com Heidegger, foi esquecida pela tradição metafísica da filosofia, à medida que essa sempre interpretou o ser como um ente supra-sensível: idéia (Platão), substância (Aristóteles), deus (pensamento medieval), consciência (Descartes), razão (Kant), espírito (Hegel). A tarefa do pensamento de Heidegger, que se inicia na obra Ser e tempo (1927) e percorre todo o caminho de seu pensamento, é recolocar a questão da verdade do ser em seu nexo com a essência existencial do homem, a fim de promover uma transformação do pensamento tradicional que desperte os homens para uma apropriação de seu ser:

Sempre de novo é necessário ressaltar que: a questão da verdade posta aqui não visa apenas uma modificação de seu conceito tradicional, tampouco um complemento à sua representação corrente, mas uma transformação do ser-homem. Esta mudança não ocorre por causa de novas descobertas psicológicas ou biológicas. O homem não é aqui objeto de nenhuma antropologia. O homem está aqui em questão na mais profunda e mais vasta perspectiva, a que é propriamente fundamental: o homem em sua relação ao ser, isto é, o ser e sua verdade em sua relação ao homem.[2]

Por meio de uma desconstrução do conceito tradicional de verdade, Heidegger visa mostrar uma experiência original de pensamento capaz de promover uma transformação do ser-homem, o que vamos neste texto caracterizar como uma educação ontológica do homem. Por conceber que, devido ao esquecimento do ser promovido pela tradição metafísica do pensamento, o homem atual é decadente, no sentido de ter perdido a cadência, o pulso e o vigor de sua existência, encontrando-se, assim, desvirtuado de seu sentido de ser, numa indigência existencial, Heidegger quer, com seu projeto de superação da metafísica, despertar o homem para a sua possibilidade de ser a partir e através de sua compreensão de ser. O homem está aqui em questão na mais profunda e mais vasta perspectiva porque ele é pensado na sua relação com o ser, em sua verdade.

Desde Ser e tempo, a tarefa que motiva e perfaz o pensamento de Heidegger consiste em recolocar a questão do ser, através da desconstrução da interpretação metafísica de verdade, a fim de mostrar a característica mais própria da essência do homem, a sua compreensão existencial. Antes de ser uma determinação conceitual adequada e correta da coisa, para Heidegger a verdade é um acontecimento fundamental de nosso modo de ser, o que ele caracterizou com o termo descobrimento (Unverborgenheit), com o intuito de indicar com essa palavra que a verdade é um fenômeno de revelação do que estava encoberto, velado. A partir desse novo horizonte de compreensão, Heidegger indica que a arte (e não a ciência!) é uma instância privilegiada para o acontecimento da verdade; a tese axial de seu texto A origem da obra de arte afirma: “a arte é o pôr-se em obra da verdade”. Distinto do pensamento estético que, compreendendo a obra a partir da recepção, concebe a arte como um prazer dos sentidos, o sentimento do belo, Heidegger pensa a arte como um acontecimento da verdade que transforma o homem. A partir desta compreensão heideggeriana de verdade e arte, o propósito deste texto é, portanto, mostrar uma possível relação entre educação e arte, concebendo a educação ontologicamente como transformação do homem.

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Para compreendermos a indigência de nosso tempo, apresentarei brevemente o que Heidegger caracterizou, no fim do primeiro capítulo de sua obra Introdução à metafísica, com os termos “obscurecimento do mundo” e “despotenciação do espírito”: “O obscurecimento do mundo inclui em si uma despotenciação do espírito, sua dissolução, desvirtuamento e deturpação”.[3] A indigência de nosso tempo consiste tanto no obscurecimento do mundo, quanto na despotenciação do espírito – ela constitui a atual relação do homem com o mundo: com o espírito despotenciado, o homem habita um mundo obscurecido; em um mundo obscuro, o homem vive com o espírito despotenciado.

Essa relação despotenciada e obscura do homem com o mundo, que Heidegger buscou mostrar, de diversos modos, ao longo de toda a sua obra, sendo o ponto de partida fundamental de todos os caminhos de seu pensamento, é o que em Ser e tempo ele caracterizou como esquecimento do ser: ao esquecer do ser, o homem decai no ente.[4] Tendo esse esquecimento como ponto de partida, o propósito de todo o seu pensamento foi recolocar a questão do sentido (ou verdade) do ser, a fim de indicar a possibilidade necessária da superação desse esquecimento, lembrar o homem da necessidade de cuidar de seu próprio ser: para onde se dirige a cura senão no sentido de reconduzir o homem de volta à sua essência? A indigência de nosso tempo se funda no esquecimento do ser, o que promove o obscurecimento do mundo e a despotenciação do espírito.

O obscurecimento do mundo corresponde à perda do sentido original das coisas, do descobrimento conjuntural de sua verdade; ele constitui o desvirtuamento da cura. Mundo não significa aqui nenhum conceito ou categoria científica, seja cosmológica ou cosmonáutica, geo ou topográfica, eco ou biológica, física ou astrofísica; mundo aqui não é o planeta Terra: “Mundo é sempre mundo espiritual”[5]. Para Heidegger, mundo é a constituição histórica e existencial da realidade, estruturada pelos nexos significativos dos entes, na conjuntura de seu acontecimento. O ente nunca aparece isolado nele mesmo, mas sempre se mostra já articulado na totalidade significativa de seu mundo. Essa totalidade constitui a possibilidade de compreensão do que as coisas são; só sabemos, por exemplo, o que é uma televisão em um mundo tecnológico, no qual há eletricidade, emissão e captação de ondas, aparelhos de filmar e reproduzir imagens, e toda a parafernália que, mesmo sem nunca ser ensinada, todos desse mundo compreendem. Tudo que compreendemos está pré-inserido em uma trama de sentidos, uma composição de nexos significativos, sempre estruturada e reestruturada historicamente. O mundo é sempre histórico...

... E existencial. O mundo não é algo pronto, uma coisa já feita; ele se compõe no interesse de cada visão (circunvisão). Uma pedra, por exemplo, na visão de um pedreiro, é para construir; já para o geólogo, ela é para estudar; ao pintor, ela é para pintar e ao escultor, é para esculpir; à criança, pedra é para brincar e ao minerador, ela é para negociar... – em cada um desses exemplos, de acordo com o interesse que abre a perspectiva, a circunvisão que estrutura as conexões significativas, pedra ganha um sentido diferente: lajota, minério, cor, formas, brinquedo, mercadoria... Mas, o que é a pedra ela mesma? Ela não é nunca algo nela mesma, autônomo e universal, pronto e já determinado previamente, mas sempre a possibilidade do sentido que a faz aparecer como isso ou aquilo numa conjuntura histórica e existencial.[6] A pedra, ou qualquer outro ente, sempre aparece e se realiza no horizonte de um interesse, na articulação conjuntural de um significado. O mundo é essa articulação da conjuntura significativa, que mostra o sentido das coisas, o que as faz ser o que elas são. Como articulação histórico-existencial de sentido, o mundo não é, ele mundifica.[7] O obscurecimento do mundo significa então a perda da originalidade de sua mundificação, o esquecimento da possibilidade de descoberta conjuntural do sentido de ser dos entes.

O mundo mundifica na linguagem de um povo, no seu horizonte de compreensão das coisas, de significação dos entes; o mundo é a constituição histórica e existencial da linguagem, o que faz as coisas terem ou não sentido. Para Heidegger, antes de ser apenas uma faculdade semântica e fonética do homem, “a linguagem é a casa do ser”. Como estrutura de compreensão conjuntural dos entes, a linguagem é o que mostra ou oculta o que as coisas são; nela, os entes, o homem e o mundo, aparecem. Conseqüentemente, o esquecimento do ser – o obscurecimento do mundo e a despotenciação do espírito – é um fenômeno de linguagem, de enfraquecimento do seu poder de fazer aparecer.

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Heidegger indica que os processos essenciais do obscurecimento do mundo são: “a fuga dos deuses, a destruição da Terra, a massificação do homem, a primazia da mediocridade”[8]:
A fuga dos deuses, fenômeno moderno diagnosticado por Dostoiévski e Nietzsche como fundamento do niilismo europeu, corresponde à perda de um sentido transcendente de organização do mundo promovida pela autonomia da vontade do homem: “Se Deus existe, tudo é Sua vontade e fora de Sua vontade, nada posso. Se ele não existe, tudo é minha vontade e sou obrigado a manifestar a minha própria vontade”.[9] Pressupondo que o princípio, o fundamento de todas as coisas seja a sua vontade, o homem moderno, a partir do paradigma da verdade como certeza do entendimento e, assim, através da compreensão de que o seu pensamento, a consciência de si, é o fundamento de toda a realidade, mata Deus para ocupar o seu lugar: penso, logo existo – e, como toda a existência está fundada na certeza dessa consciência, tudo é minha vontade.

A destruição da Terra é consequência da soberania da vontade da consciência, ela é resultado de sua sanha. Sendo o seu senhor, e concebendo que a terra pode (deve) dar tudo que a sua vontade quer, o homem usa os recursos naturais de modo desmedido e, consequentemente, destrutivo. Ao compreender a terra apenas como energia, fonte material, matéria prima de produção, e visando armazenar um estoque energético que garanta a máxima produtividade de seus bens, o homem promove uma exploração incondicional dos recursos terrestres, que acaba esgotando a natureza. A autonomia da vontade humana, ao querer a garantia de uma produção total, abusa e destrói a terra.
E destrói também o homem que, concebido apenas como força de trabalho, se torna escravo da produção: produz para consumir e consome para produzir. A massificação do homem é igualmente uma consequência da autonomia e soberania da consciência, pois, agora, perante uma existência calcada no entendimento do eu penso, diante da verdade como certeza da consciência, todos os homens são iguais; igualdade, liberdade e fraternidade passam a ser os lemas fundamentais da modernidade.

Com isso, a mediocridade ganha primazia no mundo moderno, pois, como os homens são iguais, todos têm acesso a tudo. Mas, para que todos tenham acesso a tudo, tudo tem de estar acessível a todos: “Um nível elevado nas ciências e nas artes só é acessível aos espíritos superiores e nós não temos que fazer com espíritos superiores! Os espíritos superiores são naturalmente despóticos e sempre causaram muito mais mal que bem. Será preciso bani-los ou condená-los à morte. Arrancar a língua a Cícero, furar os olhos de Copérnico, lapidar Shakespeare”.[10] Para os homens serem iguais, tudo precisa estar ao alcance de todos, é necessário nivelar montanhas: a mediocridade se tornar fundamental.

Os fenômenos da fuga dos deuses, da destruição da terra, da massificação do homem e da primazia da mediocridade constituem os processos essenciais do obscurecimento do mundo:

A existência começou, então, a deslizar para um mundo sem a profundidade que restitui e atribui ao homem o que lhe é essencial e, assim, o constringe à superioridade e o faz agir com hierarquia. Todas as coisas escorregam para um mesmo nível, para uma superfície que, semelhante a um espelho oxidado, já não mais espelha, nada reflete. A dimensão dominante tornou-se a da extensão e do número. Capacidade já não significa potência e prodigalidade, advindas de uma alta superabundância e do domínio das forças, mas do exercício de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos e dependente sempre de certo suor e esforço.[11]

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Como o mundo é sempre mundo espiritual, ao obscurecimento do mundo corresponde uma despotenciação do espírito, uma “desinterpretação” (Missdeutung) que, por ser desviada do elemento, da propriedade do que é interpretado, constitui a sua dissolução, desvirtuamento e deturpação. Um tal julgamento equivale a, por exemplo, avaliar a natureza e as possibilidades de um peixe pela capacidade dele viver no seco. Desvirtuado do que lhe é essencial, alienado de sua força elementar, esquecido da cura existencial de seu ser, o homem deixa de se compreender em suas mais próprias possibilidades, decaindo numa determinação medíocre dos entes, na superficialidade geral de todas as coisas na qual, tal como um espelho oxidado, tudo fica opaco, confuso e indiferente.

Essa desapropriação da força, a despotenciação do espírito que desvirtua o homem, é demonstrada por Heidegger também em quatro características complementares:

A primeira, característica fundamental e decisiva, consiste na transformação do espírito em inteligência. Heidegger compreende tal fenômeno como uma substituição histórica do pensamento que medita (cuida do ser) por um pensamento que calcula (domina os entes). Como as dimensões fundamentais da modernidade são a extensão e o número, o pensamento não se interessa mais no que o ente é, mas sim em quanto ele é, no sentido de que não importa mais o caráter singular e intransferível do que é pensado, mas apenas o que ele serve, o que pode ser aferido e comparado, determinado e contabilizado. A extensão e o número são características independentes da natureza qualitativa e essencial do que é pensado: cinco pedras, quantitativamente, são iguais a cinco homens. Ao independer de sua própria natureza, todo ente se torna comparável ao outro – mais (maior), menos (menor) ou igual ao outro. Além disso, ao independer de sua propriedade essencial, todo o ente se torna igualmente previsível e manipulável, passível de ser contado, esperado, calculado. Sendo todos os entes semelhantes, previsíveis e manipuláveis, o homem não precisa de concentração e serenidade para meditar no que eles são, mas sim da astúcia e esperteza para calcular as suas operações: “Decisiva é a transformação do espírito em inteligência: qual seja a simples habilidade ou perícia no exame, no cálculo e na avaliação das coisas dadas, com vistas a uma possível transformação, reprodução e distribuição em massa, sujeita em si mesma à possibilidade de uma organização, o que não vale para o espírito”.[12]

Transformado em inteligência, habilidade ou perícia, astúcia ou esperteza, o espírito torna-se, consequentemente, um instrumento a serviço de um outro fim, distinto da ociosa dádiva e potenciação de si mesmo; e, como instrumento de uso, com a sua finalidade determinada pelo negócio, o espírito desvirtuado em inteligência pode ser agora organizado, ensinado e aprendido por todos: capacidade já não significa potência e prodigalidade, advindas de uma alta superabundância e do domínio das forças, mas o exercício de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos e dependente sempre de certo suor e esforço.

O espírito, desvirtuado em inteligência a serviço de finalidades, torna-se cultura, bem cultural: “os poderes de todo acontecer espiritual – a poesia e a arte plástica, a constituição do estado e a religião – recaem no âmbito de uma possível assistência e planejamento conscientes, ao mesmo tempo em que sofrem uma disposição em regiões”.[13] As manifestações do espírito, interpretadas como bens culturais, precisam ser regionalmente organizadas e socialmente preservadas e produzidas, de modo consciente e planejado, a fim de viabilizar a todos educação e cultura, isto é, inteligência. A (des)interpretação que degenera o espírito em inteligência, essa, em instrumento a serviço de um fim e, esse, em bem cultural, acaba por transformar o espírito em peça de ornamentação, enfeite decorativo, penduricalho, balangandã: o espírito se transforma em refinada afetação, grã-finagem cultural.[14]

A despotenciação do espírito se constitui na unidade histórica e existencial de sua transformação em inteligência, de sua degradação em instrumento a serviço de outros interesses, de sua desfiguração em bem cultural, e de seu tornar-se ornamento de decoração – correspondentes à fuga dos deuses, à destruição da terra, à massificação do homem e à primazia da mediocridade, característicos do obscurecimento do mundo. A despotenciação do espírito e o obscurecimento do mundo compõem o esquecimento da essencialização (sentido ou verdade) do ser, decaída na dominação do ente – fenômeno que caracteriza a indigência de nosso tempo.

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Contra esse desvirtuamento múltiplo do espírito caracterizamo-lhe a Essencialização do seguinte modo: “O espírito não é nem a sutileza vazia nem o jogo sem compromisso da engenhosidade nem tão pouco o exercício desmedido de análises intelectuais nem mesmo a razão universal. O espírito é a ex-posição sapiente, originariamente disposta à Essencialização do ser”. Espírito é a potenciação das potências do ente, como tal na totalidade. Onde domina o espírito, o ente se torna, como tal, sempre e cada vez mais ente.[15]

Ao contrário dessa desinterpretação que, por desviar o espírito de seu próprio elemento, promove a sua desintegração, Heidegger repete o que ele já havia caracterizado em seu Discurso reitoral: antes de ser inteligência, instrumento cultural ou ornamento decorativo, o espírito é a ex-posição sapiente, originariamente disposta à essencialização do ser. Exposição é a tradução portuguesa da palavra alemã Entschlossenheit, derivada do verbo schliessen: fechar, tapar, tampar, obstruir. O oposto de schliessen é Ent-schliessen: des-fechar, des-tapar, des-obstruir. Entschlossenheit forma a substantivação desse destrancar, indica a essência do ent-schlossen: o desfechado, desobstruído, aberto, exposto. Essa exposição indica uma resolução que, rompendo o que estava bloqueando, abre ao homem a propriedade de seu ser, ela é a sua decisão[16]. Tal exposição consiste na retomada do que é próprio ao espírito, na assunção de sua sapientia elementar; a sabedoria da disposição que se doa à exposição do que, por ser original, nasce junto, conhece (cum gnoscere; con-nasce): conhecer é nascer junto, criar. Tal sabedoria não provém da inteligência da realidade em certezas do entendimento, de uma habilidade em exercícios intelectuais, mas sim, como fruto de uma educação ontológica, ela nasce da relação originária com a essencialização do ser, daquele que se dispõe a descobrir, na conjuntura, o que é o ente.

Disposição (Stimmung) indica uma tonalidade afetiva, um humor ou paixão que, afinada e perpassada por sua conjuntura, se entrega à situação de modo simpático (no mesmo páthos), sintônico (no mesmo tonus, força, ritmo) e sincrônico (no mesmo tempo ou cadência). Disposição originária é a experiência sapiente de ser na essencialização do ser. O originário dessa experiência consiste em seu súbito, na cisão imediata da decisão. O que está originariamente disposto ocorre na entrega à conjuntura, na descoberta de seus nexos, na decisão do sentido de suas conexões – a exposição sapiente se dispõe na harmonia que junta a conjuntura de seu acontecimento. Não há planejamento, previsão, método, segurança – apenas a confiança no enredo, doação ao destino, exposição, amor fati; pois, o originário não provém de outro, mas, subitamente, da assunção e graça de si mesmo.

O espírito é a ex-posição sapiente, originariamente disposta à essencialização do ser. Essencialização é a tradução da palavra alemã Wesen, utilizada por Heidegger para indicar o modo verbal do ser, da essência, a sua vigência – a essencialização do ser (Wesen des Seins) indica que o ser não é, mas se dá, vigora. Através da tradição metafísica do pensamento ocidental, o ser, a essência dos entes, acabou se solidificando na compreensão da substância como qüididade, virou conceito, categoria proposicional. Com o termo Wesen, Heidegger propõe pensar a dinâmica verbal da essência, que, antes de estar determinada, definida em algum conceito (ente), sempre recomeça na vigência histórica e existencial de cada conjuntura (ser); por isso, ao contrário de sua verdade estar fixada na certeza do entendimento (ente), a essência dos entes aparece na descoberta conjuntural da disposição sapiente (ser). Portanto, o espírito é essa exposição à verdade do ser que descobre originariamente o que é o ente.

Essa compreensão é explicitada na sequência da citação, em que Heidegger, a fim de caracterizar o contrário da despotenciação do espírito, após a frase de seu Discurso reitoral, conclui: Espírito é a potenciação das potências do ente, como tal na totalidade. Onde domina o espírito, o ente se torna, como tal, sempre e cada vez mais ente. Espírito é o que anima, desperta, clareia, o que faz as coisas aparecerem com vigor, força, intensidade; ele é o que potencia a essencialização do ser, intensifica a mundificação do mundo e concentra a sua conjuntura histórico-existencial. Por isso não se trata desse ou daquele ente, uma pedra ou um sapato, mas do ente como tal na totalidade. O ente como tal consiste na entidade que, antes de distinguir-se nesse ou naquele ente específico, caracteriza o ser ente de todo e qualquer ente – o seu fato de ser. Por não se definir nisso ou naquilo, o ente como tal corresponde à totalidade de tudo que é. Ao afirmar que o espírito é a potenciação do ente como tal na totalidade, Heidegger quer indicar que ele (o espírito) evidencia nexos que articulam sentidos originais dos entes, aguça a inteligência de sua verdade mais própria, simples e elementar. O espírito mostra, ilumina, faz aparecer; ao contrário da capacidade da inteligência produzida pelo exercício de uma rotina, o poder do espírito advém de uma alta superabundância e do domínio de forças – o espírito se potencia na prodigalidade da graça, em sua virtude dadivosa. Onde domina e vigora o espírito, o ente se torna mais ente, mais nítido no que ele é, singular, próprio, intenso, verdadeiro, elementar e extraordinário. O espírito faz aparecer o ente como tal em sua totalidade, ele mostra o sentido de ser.

Desse modo, como podemos conferir com essa interpretação do espírito e da possibilidade de sua transformação em inteligência, Heidegger pensa, por um lado, a indigência de nosso tempo, constituída pelo obscurecimento do mundo e pela despotenciação do espírito, mas também, por outro lado, o que este texto propõe indicar como educação ontológica: a possibilidade de nosso tempo superar a sua indigência através de um despertar do espírito: “O homem não é amo e senhor do ente. O homem é o pastor do ser”.[17]

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...e para que poetas em tempo indigente?, pergunta Hölderlin em sua elegia Pão e vinho. Essa questão nasce tanto do perigo que o obscurecimento do mundo e a despotenciação do espírito provocam, quanto da necessidade de despertar o espírito com a poesia. Viver em tempo indigente é perigoso não apenas pelos riscos que ameaçam, deste ou daquele modo, a vida deste ou daquele homem, família ou povo: “O perigo consiste na ameaça que diz respeito à essência do homem na sua relação com o próprio ser e não em perigos casuais. Esse perigo é o Perigo”.[18] A indigência de nosso tempo é o Perigo porque não ameaça apenas isso ou aquilo, esse ou aquele, mas a nossa compreensão do ente como tal na sua totalidade. Se o espírito potencia e esclarece, tornando todo ente cada vez mais ente, mais nítido e singular, vivo e desperto, intenso, concreto e real, a sua falta, ou falsificação em inteligência, despotencia e obscurece o ente como tal na totalidade, tornando todo ente cada vez menos ente, menos nítido, confuso, adormecido, indiferente... – tal como um espelho oxidado que já não reflete mais nada.

Para mostrar a amplitude e profundidade da questão acerca da necessidade dos poetas em tempo indigente, torna-se necessário resgatar o tema da linguagem, a fim de alinhavar o texto com a demonstração de para que arte hoje e, assim, arrematar o seu fim com a questão da relação entre educação e arte. Como já foi referido acima, antes de compreender a linguagem apenas em seus aspectos semânticos e fonéticos, Heidegger a pensa como “casa do ser” – expressão cunhada em Sobre o humanismo e, posteriormente, utilizada em diversos textos. A casa do ser é a instância de acontecimento dos entes, onde tudo é ou não é; como casa do ser, fora da linguagem, as coisas nem são nem não são – não há palavra (ser) para dizer o fora da linguagem (ser). A linguagem constitui a instância de realização da realidade, onde se dá a relação do homem com o mundo. Nesse sentido, Heidegger compreende a linguagem como o fundamento de toda a realidade, é nela que o ente se mostra, aparece, vem a ser e é; linguagem é o que articula, funda, viabiliza a relação do homem com o mundo. Logo, a indigência que promove a decadência dessa relação, na qual o ente se torna cada vez menos ente, é um problema da linguagem, na linguagem: o esquecimento do ser é um fenômeno de linguagem.

Como vimos acima, o que faz o ente ser o que ele é não é nunca algo nele mesmo, uma substância interna, mas o nexo histórico e existencial que o enreda neste ou naquele sentido em cada conjuntura; o ente se mostra sempre articulado nos remetimentos significativos de ser para isso ou aquilo, de acordo com a perspectiva de possíveis interesses. Antes de qualquer representação semântica ou fonética da realidade, a linguagem é para Heidegger a composição desses nexos significativos dos entes, o que constitui os seus sentidos de ser; ela é a instância de compreensão dos entes, na qual eles são apreendidos como isso ou aquilo. À medida que é na linguagem que os entes são, dependendo de como se cultiva e exerce essa possibilidade histórica e existencial de ser, de compreensão conjuntural das conexões significativas, os entes se tornam mais ou menos entes, eles aparecem com mais ou menos sentido – nítidos, claros, evidentes. Assim como a linguagem mostra, articula, faz aparecer, ela também oculta, desarticula, confunde – essas possibilidades são relativas ao modo como ela é exercida.

A existência cotidiana tem tendência a se acostumar com as coisas, em se habituar com o seu mundo e não mais descobrir outros sentidos além daqueles que são geralmente já sabidos, aceitos. Por força seja do hábito, dos preconceitos morais ou dos conceitos científicos, seja por receio da angústia ou pelo medo de errar, temos a tendência de fixar as nossas compreensões da realidade em determinações prontas, sem descobrir o sentido de ser na conjuntura do acontecimento existencial. De modo imperceptível, adotamos o que está dado, feito, pronto, outorgamos as nossas compreensões ao já estabelecido, sem mais cuidar e decidir por nós mesmo o que somos. O hábito do dia-a-dia promove, articula, compreende uma realidade pobre, mesquinha, ordinária, indiferente – já sabida, há muito, por todos. Pelo contrário, ao criador, por ele cuidar de não se fixar no já estabelecido e sempre, de novo, criar originariamente a sua existência, não há pobreza, mesquinharia e indiferença. Por ser originária, a criação não se funda em algo já dado, uma criatura, mas é sempre nova, fonte geradora, prodigalidade inaugural. Criar é bendizer o mundo, cantar a sua poesia original.

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Em seu texto A origem da obra de arte, Heidegger caracteriza a atividade artística como o pôr-se em obra da verdade. A verdade, antes de ser uma certeza do entendimento, é o que, tal como a arte, põe-se em obra. Devemos notar que há uma importante ambiguidade nessa frase, pois arte e verdade são simultaneamente os sujeitos e os objetos da frase: tanto é a arte que põe a verdade em obra, quanto é a verdade que põe em obra a arte. Heidegger compreende essa circularidade entre arte e verdade de um duplo modo complementar:
Assim, a essência da arte foi previamente determinada como pôr-em-obra da verdade. Porém, essa determinação é deliberadamente ambígua. Por um lado, diz que a arte é o fixar da verdade que se estabelece na figura. É o que acontece no criar como pro-duzir do descobrimento do ente. Mas pôr-em-obra significa ao mesmo tempo: pôr em andamento e levar a acontecer o ser-obra. Isso acontece como resguardar.[19]

Heidegger pensa o pôr em obra da verdade na arte como criação e resguardo: a arte é o resguardar criador da verdade na obra:

A criação. Heidegger não compreende o fenômeno da criação artística como uma ação de um sujeito, o arbítrio de sua vontade: “É precisamente na grande arte – e é só dela que aqui se trata – que o artista permanece, face à obra, algo indiferente, quase como uma passagem que se destrói a si mesma no criar, uma passagem para o passar-a-ser da obra”.[20] Anterior a qualquer atividade individual do artista, um arbítrio de sua consciência subjetiva, Heidegger compreende o fenômeno da criação como “um modo do devir e acontecer da verdade”; antes de se determinar na certeza de um conceito ou juízo, a verdade é algo que devém e acontece na obra, nela se estabelecendo: “O estabelecimento (einzurichten) da verdade na obra é o produzir de um ente que antes não era e que, posteriormente, nunca mais virá ao ser”: “A verdade se retifica (richtet sich in: arretar-se, ficar arretado) na obra”.[21]

Heidegger pensa essa concretização ou estabelecimento da verdade (não como uma atividade de um sujeito, mas) como o que ele chama de rasgo (Riss) da verdade (descobrimento do ser); o que precisa ser compreendido não como um fazer, mas como um deixar-se ao que se mostra, se expõe na conjuntura descoberta: “É o entregar-se extático do homem existente ao descobrimento do ser”.[22] Como o homem se constitui essencialmente jogado no aí, do aqui e agora, de sua presença, entregar-se a esse jogo é pôr-se à disposição de seu próprio acontecimento, o que ficou indicado acima com a atividade mais própria do espírito: a ex-posição sapiente, originariamente disposta à essencialização do ser – uma decisão que se abre ao acontecimento originário do sentido de seu próprio ser. A arte como o pôr-se em obra da verdade consiste no dispor da conjuntura que, expondo o ente na articulação do nexo de sua juntura, compõe o seu sentido mais apropriado. Ao contrário de ser um arbítrio ou escolha, a decisão indica uma resolução que ocorre como um destrancamento do oculto que o faz aparecer – por isso o termo des-cobrimento para designar esse fenômeno: a verdade é um acontecimento que abre a clareira na qual o ente aparece perfeito em sua forma: “O ser-criada da obra significa: ser-fixado da verdade na figura (Gestalt)”.[23]

O resguardo. A arte é o pôr-se em obra da verdade que cria a obra; a obra é um ser-criado pela verdade (acontecimento originário do descobrimento); a verdade é, portanto, algo que se inscreve na obra, essa é o receptáculo daquela, a sua figura. Por essa inscrição da verdade na obra, toda obra de arte está impregnada de verdade: “Na obra o ser-criada está expressamente inscrito naquilo que é criado, de tal forma que, a partir dele, daquilo que assim é produzido, sobressai expressamente. Se é isso o que acontece, então também temos de poder experimentar expressamente, na obra, o seu ser-criada”.[24] Esse ser-criado da verdade na obra pode então ser experimentado por aqueles que se abrem à obra, dispõem-se em seu acontecimento. A esse fenômeno, correspondente à criação, Heidegger chama, em seu texto A origem da obra de arte, de resguardo: “Assim como não pode haver uma obra sem ser criada (necessitando essencialmente daqueles que criam), também o criado ele mesmo não pode se tornar algo que é sem aqueles que resguardam”.[25]

A experiência que temos de uma obra de arte não consiste em uma compreensão da excelência da atividade do artista, a virtuosidade de quem a fez, mas sim o extraordinário daquele feito: “que tal obra é e não, pelo contrário, não é”:
Quanto mais a obra se abre de forma essencial, tanto mais se torna luminoso o caráter único disso: que ela é e que, pelo contrário, não não é. Quanto mais essencialmente esse abalo vier ao aberto, tanto mais a obra se torna surpreendente e solitária. ‘Que ela é’ – eis o que se nos oferece no produzir da obra.[26]

O resguardo de uma obra de arte ocorre com o espanto de seu extraordinário, quando a obra nos rouba todas as referências com o ordinário familiar, habitual e banal – e se torna surpreendente e solitária, singular e espantosa, mostrando o ameaçador (Ungeheure: o não familiar do estranho, a enormidade, o monstruoso) da existência. Esse acontecimento nos abala, nos transforma, desloca as nossas compreensões cotidianas, modifica os nexos familiares de nosso mundo habitual. A experiência desse espanto não transforma apenas a nossa compreensão deste ou daquele ente, mas sim do ente enquanto tal na totalidade; ela modifica toda a nossa relação com o mundo, com o seu sentido de ser.
Na obra, a verdade está em obra – portanto, não apenas algo verdadeiro. O quadro de Van Gogh que mostra os sapatos de camponês [...] não dá a conhecer apenas o que é este ente singular enquanto tal, antes deixa acontecer o descobrimento enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo. Todo ente se torna com ele mais ente. O ser que se encobre é, desta maneira, clareado. A luz assim configurada proporciona o seu aparecer na obra. O aparecer proporcionado na obra é o belo. A beleza é um modo como a verdade enquanto descobrimento vigora.[27]

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Antes de ser interpretada esteticamente como o prazer sensível, a beleza consiste na experiência ontológica do vigor poético da verdade, em sua exposição ao ente como tal na totalidade, que ensina a sabedoria de ser na conjuntura do que se apresenta: a cura. Ao afirmar que a arte é o pôr-se em obra da verdade, Heidegger não quer dizer que a arte representa corretamente um ente particular, mas sim que o próprio ser, o que faz todas coisas serem o que elas são, se mostra na obra de arte: a arte proporciona uma clarificação do descobrimento enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo: todo ente se torna, na arte, mais ente.

Ao contrário do obscurecimento do mundo, a arte ilumina o que os entes são; contra a despotenciação do espírito, a arte anima a existência mostrando a sua beleza: tanto na criação quanto em seu resguardo, não há pobreza nem mesquinharia, mas sim a prodigalidade do espírito. Ao proporcionar a experiência do espírito, a arte opera uma transformação da indigência de nosso tempo, que modifica a relação do homem com o mundo. O acontecimento da verdade na arte constitui uma educação ontológica do homem, à medida que desperta, recorda e comemora o seu sentido mais próprio de ser. Ao contrário da indigência proporcionada pelo esquecimento, a arte devolve ao homem a potência de seu elemento original, a sua propriedade de ser: “O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação”.[28]

A arte é o pôr-se em obra da verdade que, repetindo o processo da criação, devolve à palavra o seu sentido original e restitui à existência a sua propriedade de ser. Tanto na criação quanto no resguardo, o poético da arte dá ao homem uma experiência do sentido originário de si e do mundo que, renovando a linguagem, limpando as suas formulações oxidadas, o desperta de suas compreensões habituais, esclarecendo o sentido de ser na conjuntura do mundo, de descobrir o que se apresenta na exposição sapiente de seu acontecimento. O acontecimento da verdade, que se põe em obra na arte, faz o homem recordar de seu esquecimento e, assim, cuidar da sua existência, dar sentido ao seu destino, decidir.

*

No diálogo com Günter Lorenz, que ocorreu em janeiro de 1965, na ocasião do “Congresso de Escritores Latino-Americanos”, em Gênova, João Guimarães Rosa confessou que:
Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isso significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen. Soa a Heidegger, não?[29]

Concordando com o pensamento de Heidegger, Guimarães Rosa também compreende que a cadência ou decadência da existência depende do cuidado com a linguagem. Como casa do ser, a linguagem é a porta para o infinito; mas porque está oculta em montanhas de cinzas, tal como um espelho oxidado, já não reflete quase nada, deixando tudo embaçado, confuso e indiferente. Compreendendo o escritor como “arquiteto da alma”, Guimarães Rosa assume a tarefa de ser um guardião da casa do ser, aquele que cuida da linguagem, restituindo à palavra o seu sentido original. Como arquiteto da alma, o escritor (re)constrói o espírito limpando a linguagem das cinzas, das significações calcificadas pelo hábito do cotidiano, até ela ser novamente vida. À medida que se constitui exposto originariamente na essencialização do ser, o homem precisa ter sempre o cuidado de devolver à palavra o seu sentido original, repetindo o modo de ser mais apropriado de sua essência existencial: a cura como ex-posição sapiente, originariamente disposta à essencialização do ser.

Por existir, o homem possui uma relação com o ser, podendo estar tanto exposto ao acontecimento de sua verdade, disposto na descoberta do que aparece, como na indigência de uma alienação, desviado da conjuntura original de seu acontecimento. Como pôr-se em obra da verdade, a arte retira o homem da indigência de sua decadência, à medida que, o convida a assumir a tarefa de ser o seu próprio destino.

A arte educa o homem a, cuidando da palavra, trazer o ser à fala. Desse modo, o homem repete o processo da criação, existe originariamente. Essa educação que a arte promove não consiste em nenhuma formação, no sentido da capacitação de um saber ou habilidade, mas se dá na transformação do ser-homem que, encontrando-se decaído na indigência de nosso tempo, precisa superar o obscurecimento do mundo e a despotenciação do espírito. Ao por em obra a verdade, a arte promove uma educação do homem. Todavia, antes de aprender a dominar algum ente, a arte ensina o homem a ser o que ele é, a assumir a sua condição existencial e existir propriamente. A partir dessa compreensão heideggeriana de verdade e arte, este texto propõe indicar uma possível relação entre educação e arte, concebendo a educação ontologicamente como transformação do homem.



* Publicado em O educar poético. Organizadores: Manuel Antônio de Castro, Igor Fagundes e Antônio Máximo Ferraz. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2014.
[1] HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Trad.Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 34. Cura é a tradução portuguesa da palavra alemã Sorge, que Heidegger utiliza em sua obra Ser e tempo para indicar a totalidade estrutural da “presença” (Dasein) – o ente que cada um de nós somos –, em sua unidade de “ser-no-mundo”. Por nossa essência existencial, como nunca estamos prontos e acabados, para vir a ser temporalmente o nosso próprio ser, temos que sempre cuidar do que somos. Esse cuidado que perfaz existencialmente o que somos, Heidegger chama de Sorge, palavra traduzida para o português pelo termo latino cura.
[2] Idem. Questões fundamentais da filosofia. Curso do semestre de inverno de 1937-1938.
[3] Martin Heidegger. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987, p. 71.
[4] Ente, tradução portuguesa do alemão Seiende, do grego on, do latim ens, é o particípio presente do verbo ser – do alemão Sein, do grego einai, do latim Sum. A diferença entre ser e ente é determinada gramaticalmente como uma diferença da forma nominal do verbo: o infinitivo verbal e o seu particípio. O sentido gramatical da diferença entre o infinitivo e o particípio é a “participação”, o “ter parte em”, que indica uma distinção entre a totalidade latente, enquanto pura possibilidade de aparecer, e a especificidade manifesta de um aparecimento efetivo, a realidade do que participa e, assim, aparece: “O ser não pode ser. Se fosse, não mais permaneceria o ser, mas seria um ente” (La thèse de Kant sur l’Être. In: Questions II. Paris: Gallimard-NRF, 1987, p. 115). A diferença entre ser e ente é a participação, o aparecimento: tudo que aparece (que é) é ente; o ser – conforme Heidegger afirma em 1927 em Ser e tempo § 44 e confirma na conferência Tempo e Ser, proferida em 31 de janeiro de 1962: “Ser não é. Ser se dá (Es gibt) como o descobrir da presentificação” (Zeit und Sein. Em Zur sache des Denkens. Tübingen: Max Niemeyer, 1988, p. 6). O esquecimento do ser consiste, portanto, na perda do horizonte da possibilidade do aparecer (o infinitivo: ser) com a fixação na determinação de uma realidade aparecida (o particípio: ente).
[5] Martin Heidegger. Introdução à metafísica. Op. cit. p. 71.
[6] Apesar dessa distinção entre história e existência, devemos compreender que a existência é sempre histórica e a história, sempre existencial: elas constituem, simultaneamente de modo geral e particular, a conjuntura do mundo.
[7] Uso aqui o neologismo “mundificar” para traduzir o que Heidegger indicou, em diversas obras, com a construção verbal alemã Welten, utilizada, por exemplo, na frase Welt ist nie, sondern weltet (mundo não é, mas mundifica), em Vom Wesen des Grundes (A essência do fundamento) de 1928; ou na expressão Das Welten der Welt (a mundificação do mundo), de seu texto Alétheia de 1943; ou ainda, como outra variação do mesmo sentido, na frase Das Welten von Welt (a mundificação de mundo), escrita em Das Ding (A coisa) em 1950.
[8] Martin Heidegger. Introdução à metafísica. Op. cit. p. 71.
[9] Fiódor M. Dostoiévski. Os demônios. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, Obra completa, vol. III, 1975. Fala do personagem Kirílov, III parte, p. 1299.
[10] Idem, ibidem. Fala do personagem Piotr Stiepânovith, II parte, p 1137.
[11] Martin Heidegger. Introdução à metafísica. Op. cit. p. 71.
[12] Idem, ibidem, p. 72.
[13] Idem, ibidem, p. 73.
[14] Cf. Gilvan Fogel. “A respeito da ‘despotenciação do espírito’”. Sofia. Revista do Departamento de Filosofia da UFES, vol. IX, nº 11 e 12, 2004, p. 81.
[15] Martin Heidegger. Introdução à metafísica. Op. cit. p. 75.
[16] A tradutora da obra de Heidegger Ser e tempo para a língua portuguesa, Marcia Sá Cavalcante Schuback, traduziu a palavra alemã Entschlossenheit por decisão, visando resgatar o seu sentido etimológico de arrancar, separar – scindere.
[17] Martin Heidegger. Sobre o humanismo. Op. cit. p. 68.
[18] Idem. Para que poetas? Em Caminhos de floresta. Trad. Bernhard Sylla e Vitor Moura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 56.
[19] Martin Heidegger. A origem da obra de arte. Em Caminhos de floresta. Trad. Irene Borges-Duarte e Filipa Pedroso. Op. cit. p. 75.
[20] Idem, ibidem, p. 36.
[21] Idem, ibidem, p. 64 e 65.
[22] Idem, ibidem, p. 71.
[23] Idem, ibidem, p. 67.
[24] Idem, ibidem, p. 86.
[25] Idem, ibidem, p. 75.
[26] Idem, ibidem, p. 68 e 69.
[27] Idem, ibidem, p. 56.
[28] João Guimarães Rosa. Diálogo com Guimarães Rosa. Em Ficção completa, volume I. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995, p. 48.
[29] Idem, ibidem, p. 47.  Sobre a relação de Heidegger com o termo umsorgen, ver nota 1 deste texto.



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