Fernando Pessoa (5)
[1] Martin Heidegger.
Ser e tempo §44. Trad. Marcia de Sá
Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988, p. 281 [Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1986, s. 213]. Todas as
citações deste texto são de M. Heidegger.
Arte e verdade no
pensamento de Heidegger
Fernando Pessoa[1]
Cheio de méritos, mas poeticamente
O homem habita esta terra.[2]
Desde Ser e tempo, o propósito
do pensamento de Heidegger é recolocar a questão do sentido do ser, através de
um questionamento acerca da essência da verdade. O seu ponto de partida
consiste no que ele caracterizou como “esquecimento do ser”. Logo na abertura
de Ser e tempo, ele constata que a
questão que fomentou as pesquisas dos antigos pensadores gregos foi esquecida
no pensamento moderno, tornando-se o ser o conceito mais universal, indefinível
e evidente por si mesmo – a última fumaça
de uma realidade evaporante, de acordo com a sentença de Nietzsche. A
partir da compreensão de que estamos decaídos no império do esquecimento do
ser, Heidegger propõe recolocar a questão de seu sentido, através de uma
investigação acerca do fenômeno originário da verdade: “Se verdade encontra-se num nexo originário com o ser, então o fenômeno da verdade remete ao âmbito da problemática
ontológica fundamental.”[3]
Podemos dizer que toda a tarefa, o propósito, a causa ou o assunto do
pensamento de Heidegger foi recolocar a questão do ser, através de um
deslocamento de nossa compreensão de verdade, do sentido derivado da certeza de
uma adequação correta, para o seu sentido original de desencobrimento.
Tradicionalmente, a verdade sempre foi compreendida como um juízo
adequado à coisa, uma adequação correta entre a proposição ideal e a coisa
real. Adequar uma coisa à outra indica uma justaposição entre dois entes
diferentes, nesse caso, uma ligação entre o juízo do sujeito e o objeto do
mundo. Essa compreensão de verdade já pressupõe, nela mesma, que homem e mundo
estejam separados e dispostos numa relação compartimentada: o interior do
sujeito, como uma coisa inteligente (o lado ideal), e o objeto exterior, como
uma coisa que se opõe ao sujeito (o lado real); conhecer é operar uma síntese
entre essas duas coisas diferentes, encontrar a adequação correta entre esses
dois lados, o de dentro com o de fora. “O conteúdo ideal do juízo é, pois, o
que o que se acha numa relação de concordância. E esta diz respeito a um nexo
entre o conteúdo ideal do juízo e a coisa real sobre a qual se julga”[4] –
afirma Heidegger em sua obra Ser e tempo,
para então questionar: “Em seu modo de ser, a concordância é real, ideal ou
nenhuma delas? Como se deve apreender
ontologicamente a relação entre o ente ideal e o real simplesmente dado?”[5] A
tradição filosófica, do princípio ao fim de sua história, sempre oscilou para
um ou outro lado – ora como idealismo, ao fundar essa relação na idéia; ora
como realismo, argumentando que o fundamento da relação é o real. Este impasse
entre o idealismo e o realismo perfaz o caminho do esquecimento do ser. Ao
contrário de adotar cegamente um desses lados, a fim de recolocar a questão do
ser em seu nexo com a verdade, Heidegger pergunta: “Será um acaso o fato desse
problema há mais de dois milênios não sair do lugar? Ou será que o descaminho
da questão consiste em seu ponto de partida, ou seja, na separação
ontologicamente não esclarecida entre real e ideal?”[6]
Heidegger quer desse modo evitar a cilada de pressupor como evidente que
a realidade esteja dividida em dois compartimentos, um dentro e um fora, o
sujeito e o objeto – na armadilha da separação, ontologicamente não
esclarecida, do real em homem e mundo. Ele propõe mostrar que, antes de homem e
mundo, a realidade se estrutura na unidade de seu acontecimento existencial, o
que ele caracterizou com a palavra alemã Da-sein,
que foi traduzida para o português nos termos: ser-aí, ser-o-aí, existência, pre-sença (tradução que adotamos neste
texto). O que Heidegger propõe indicar com esta palavra é a instância de
acontecimento do ser. Anterior à separação entre homem e mundo, a presença é o
lugar do ser, a instância na qual o que é aparece, o aqui e agora da situação
em que somos no mundo. Não há o homem, como algo autônomo e pré-existente de um
lado, e o mundo também como algo autônomo e pré-existente do outro lado e,
depois, uma relação, uma síntese ou adequação entre eles. Antes disso, homem e
mundo são na unidade do acontecimento existencial da presença; antes de ser uma
adequação, uma síntese de dois lados, essa relação se constitui a partir da
unidade do aparecimento presente, no fato de a realidade sempre se realizar
existencialmente aí, lançada no acontecimento de sua presença. Ao contrário da
estrutura sujeito e objeto, por serem no e a partir do acontecimento
existencial, o homem e o mundo não são coisas autônomas, realidades já prontas
e acabadas – mas se constituem existencialmente jogados na possibilidade de
ser. Heidegger chama essa possibilidade de “abertura” ou “clareira do ser”. A
abertura consiste no estar lançado da possibilidade de ser, no que aparece,
fundamento comum tanto do homem como do mundo, o que constitui a sua relação:
Este aberto
foi apreendido na aurora do pensamento ocidental como tà alethéa, o desencoberto. Se, em lugar de “verdade”, traduzimos a
palavra alétheia por
“desencobrimento”, essa tradução não só é mais literal, como também indica a
necessidade de repensar mais originalmente a noção corrente de verdade como
adequação da enunciação, no sentido, ainda incompreendido, de desencobrimento e
de descoberta do ente.[7]
Por o homem ser no mundo a partir da possibilidade aberta em seu
acontecimento existencial, antes de haver uma adequação de dois entes
subsistentes, o sujeito e o objeto, a verdade deve ser compreendida, em seu
aparecimento original, como um “des-encobrimento” da própria unidade latente de
homem e mundo. Tal como no termo alemão utilizado por Heidegger, Un-verborgenheit, a palavra
des-encobrimento indica o aparecimento de algo que estava encoberto, um
acontecimento de clarificação que mostra, faz aparecer, tornando visível,
nítido, o que até então permanecia confuso, oculto, encoberto. Como uma
modalidade de acontecimento, Heidegger compreende que a verdade é um
desencobrimento do ser, o fenômeno no qual o que é, a realidade, aparece na
plenitude de sua própria perfeição. Antes de uma adequação correta entre o juízo
e a coisa, a verdade é o viger da abertura de ser, a realização de seu vigor
mais apropriado. Sendo a vigência de um vigor, a verdade não é nunca uma coisa
dada, algo que se apreende numa determinação, mas sempre um acontecimento: o
desencobrimento do que estava encoberto. Devemos advertir que esse encoberto
não é uma coisa escondida dentro das coisas que, quando desencoberta, fica
escancarada. Desencobrimento e encobrimento antes de serem coisas dadas,
compartimentos separados que se anulam um ao outro, constituem a disputa, a
dinâmica, a decisão que, cindindo a possibilidade de ser, a faz aparecer numa
realidade. A decadência consiste no esquecimento dessa vigência, o que ocorre
quando o homem e o mundo, ao contrário serem na possibilidade original do
acontecimento, são compreendidos como coisas prontas, entes simplesmente dados,
sujeito e objeto; o esquecimento do ser promove a decadência no ente. É por
essa queda que a verdade passa a ser concebida como certeza da coisa, a sua
determinação adequada na proposição. Ao perder a cadência original e própria da
abertura de ser, isto é, a tensão entre verdade e não-verdade como
desencobrimento do que se encobre, a compreensão existencial decai numa
apreensão cristalizada, coisificada, de si e do mundo. O homem se desvia de sua
abertura e o ser passa a ser compreendido como um ente – “O esquecimento da
verdade do ser em favor da avalanche do ente, não pensado em sua essência, é o
sentido da decadência mencionada em Ser e tempo.”[8]
O ser, enquanto possibilidade aberta, sempre se abriga no ente, como sua
realização concreta; toda abertura do possível se fecha na efetividade do que
se realiza; por isso, pertence à essência da verdade como desencobrimento, o
seu velamento, o encobrimento constitutivo da abertura de ser. Como ao
desencobrimento pertence o encobrimento, a verdade e a não-verdade não são
excludentes, elas se complementam como disputa entre ser e ente. Toda abertura
favorece um fechamento, sendo essa dinâmica de realização que conduz o
aparecimento dos entes, a efetivação do possível numa realidade. “Platão nos
diz o que é essa condução numa sentença do Banquete:
“Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poíesis, é pro-dução”. – “A pro-dução
conduz do encobrimento para o desencobrimento.”[9]
Por produção, hervor-bringen, pro-duccere, Heidegger compreende o conduzir para frente que faz aparecer – a
manifestação do real, a sua produção no que aparece. A abertura do ser sempre
se concretiza no aparecimento dos entes – a dinâmica da realidade, sua
realização, consiste nessa produção que manifesta, que faz aparecer o real. A
produção mais elementar do real é aquela que os antigos gregos chamavam de physis, o vigor imperante do que aparece
por si e desde si mesmo. Physis é o
que se produz, se mostra, a partir de si mesmo; o que nasce, tem origem, por si
e não por outro: “A physis, o surgir
e elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poíesis. A physis é até a
máxima poíesis. Pois o vigente physei tem em si mesmo (en eautó) o eclodir da produção.
Enquanto o que é produzido pelo artesanato e pela arte não possui o eclodir da
produção em si mesmo, mas em um outro (en
allo), no artesão e no artista.”[10]
Distinto da produção física, há também aquela que é feita pela ação do homem:
uma árvore produz por si mesma o seu fruto, mas não se torna, por si mesma, uma
mesa ou cadeira – para isso, é preciso haver a intervenção humana. A esse modo
de produzir aquilo que, ao contrário de nascer por si, foi feito por um outro,
o grego chamou de téchne. Physis e téchne são dois modos possíveis de poíesis, de produção. Devemos aqui ainda reproduzir duas
advertências que nos faz Heidegger:
De um lado, téchne não constitui apenas a palavra do
fazer na habilidade artesanal, mas também do fazer na grande arte e das
belas-artes. A téchne pertence à
produção, a poíesis, é portanto, algo
poético. De outro lado, o que vale considerar ainda a propósito da palavra téchne é de maior peso. Téchne ocorre, desde cedo até o tempo de
Platão, juntamente com a palavra epistéme.
Ambas são palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo. Dizem ser
versado em alguma coisa, dizem entender do assunto.[11]
Antes de significar uma ação prática, a execução de um fazer, a palavra
grega téchne indica uma modalidade do
saber: o saber operar de quem entende do assunto e, por isso, produz. Téchne é o conhecimento de quem sabe
trazer o não-vigente que está latente para a vigência do desencobrimento,
fazendo aparecer o que antes não aparecia. Toda produção que manifesta o que
estava encoberto é poíesis, dinâmica
de aparecimento que mostra a realidade, desencobrindo o ente (isto é, o que se
realiza, aparece); sendo essa produção “física”, quando produzida desde si
mesma, ou “técnica”, quando produzida pela mão do homem. Embora no mundo grego téchne indique tanto a habilidade
artesanal como as belas-artes, Heidegger propõe mostrar como, a partir da
modernidade, com o advento da ciência e da tecnologia, torna-se necessário
estabelecer uma distinção entre a produção da ciência e da técnica com relação
à produção artística. Para demonstrar essa distinção, Heidegger utiliza-se de
um recurso que a língua alemã oferece em sua possibilidade de compor palavras
através da junção de diferentes partículas a um mesmo radical, dando diversas
nuances a seu sentido. Heidegger caracteriza a produção, o pôr-se em obra do
real como desencobrimento, com o verbo stellen,
“pôr”, estabelecendo uma distinção entre essas três modalidades produtivas, a
partir do acréscimo de três partículas diferentes a esse verbo: ele caracteriza
a produção científica de Vor-stellen,
a produção tecnológica de Ge-stellen
e a produção artística de Her-stellen
– termos que, para manter uma analogia na língua portuguesa, poderíamos
traduzir como: pro-pôr, com-pôr e ex-pôr (no sentido de produzir, criar). Vamos
rapidamente caracterizar cada um desses modos de pôr, de produção, através de
uma breve demonstração dessa questão, de como ela é tratada em três textos de
Heidegger: Ciência e pensamento do
sentido [Wissenschaft und Besinnung],
A questão da técnica [Die Frage nach der Technik] – ambos
publicados em Ensaios e conferências
[Vorträge und Aufsätze] – e A origem da obra de arte [Der Ursprung des Kunstwerkes] –
publicado em Caminhos de floresta [Holzwege].
1. A pro-posição
(Vor-stellung) da ciência moderna
De acordo com Heidegger, a ciência moderna pro-põe o real no modo de sua
objetidade. Sua tese diz: “a ciência é a teoria do real”. O real, como já
vimos, é o vigente, o que vigora e, assim, aparece; por real, Heidegger
compreende a operação que realiza a realidade, no sentido de a pôr em frente,
de trazer à luz, de aduzir e produzir, de levar à vigência, aparecer. Todavia,
distinto do grego antigo que compreendia essa vigência como uma operação da
própria physis, do que aparece desde
si mesmo no desencobrimento, a modernidade passa a compreender essa realização,
a partir do esquema causa e efeito, como uma ação de um agente – o real
torna-se o resultado de uma causa:
Sendo o
resultado, o efeito é sempre feito de um fazer, isto é, de um fazer entendido,
agora, como esforço e trabalho. O resultado do feito de um fazer é o fato. A
expressão “de fato” indica, hoje em dia, uma certeza e significa “certo”,
“seguro”. Assim, em vez de “é certamente assim”, podemos dizer “é de fato
assim”, “é realmente assim”. Ora, com o início da Idade Moderna, a palavra
“real” assume, a partir do século XVII, o sentido de “certo”.[12]
Na modernidade, o real é o que ocorre de fato, ele é o que podemos ter
certeza, o que pode ser aferido, medido, calculado e, assim, pro-posto
objetivamente; o real é o resultado, o efeito de uma causa passível de ser
calculada. A ciência pro-põe um real que, determinado pela causalidade, se
estrutura em operações e processamentos que podem ser previstos e, assim,
previamente, calculados e resolvidos. Neste sentido, a partir dessa compreensão
moderna, o real se mostra como um ob-jeto, o que está posto diante, contra,
para a apreensão do sujeito. Heidegger chama de objetidade o modo de vigência da realidade que, na idade moderna, a
faz aparecer como objeto.
Por sua vez, ainda no intuito de explicar a frase “a ciência é uma teoria
do real”, devemos compreender que teoria indica na modernidade uma observação
que visa certificar-se do que vê, um examinar que se propõe a elaborar o real
no sentido de apoderar-se, assegurar-se, obter a certeza do que é observado e,
assim, deter o seu resultado. Como teoria
do real, a ciência pro-põe uma realidade determinada, definida pela
certeza. Essa determinação que visa certificar-se da realidade é demandada pela
própria pro-posição teórica, pela qual o real aparece em sua objetividade:
A ciência
corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua atividade
de teoria, explora e dispõe do real na objetidade. A ciência põe o real. E o
dispõe a propor-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa
seqüência de causas aduzidas que se podem prever. Desta maneira o real pode ser
previsível e tornar-se perseguido em suas conseqüências. É como se assegura do
real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento
científico pode, então, processar à vontade. A pro-posição processadora, que
assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade processável,
constitui o traço fundamental com que a ciência moderna corresponde ao real.[13]
Visando dispor do mundo através da pro-posição processadora, a ciência
com sua representação teórico-objetivante produz uma realidade coisificada, a
partir da qual o que indicamos anteriormente como abertura, clareira do ser, se
fecha na compreensão de homem e mundo como sujeito e objeto. A produção
científica, a partir da modernidade, promoveu um deslocamento da própria noção
de verdade, que abandona a sua característica originária de desencobrimento,
passando a ser compreendida como uma adequação correta do intelecto à coisa. A
produção como proposição promove o esquecimento da verdade do ser em favor da
avalanche do ente, o que acarreta a de-cadência da verdade como
desencobrimento, na verdade como adequação.
2. A com-posição
(Ge-stell) da técnica moderna
De acordo com Heidegger, a técnica moderna compõe o real no modo de sua
exploração. Heidegger compreende que a técnica moderna também se caracteriza em
ser um desencobrimento que mostra, faz aparecer, o real – todavia não mais como
uma produção poética: “O que é a técnica moderna? Também ela é um
desencobrimento. (...) [Porém], o desencobrimento dominante na técnica moderna
não se desenvolve numa pro-dução no sentido de poíesis. O desencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração
que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser
beneficiada e armazenada.”[14]
Para Heidegger, a característica fundamental da técnica moderna consiste em
dispor da natureza, a fim de explorar e apoderar-se de sua energia para
estocá-la; o propósito da técnica moderna é desafiar a natureza a fornecer
energia: “O desencobrimento que domina a técnica moderna possui, como
característica, o pôr no sentido de explorar (Herausforderung). Esta exploração se dá e acontece num múltiplo
movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se
transformado, o transformado, estocado, o estocado, distribuído, o distribuído,
reprocessado.”[15] O que
promove esse tipo de desencobrimento é a pretensão da técnica obter um estoque
energético que garanta o controle do real, a sua efetiva disponibilidade.
Ao desencobrir o real na perspectiva de obter o seu controle e segurança,
a técnica moderna põe a natureza na disponibilidade de sua exploração; a esse
modo de por, Heidegger chama de com-posição (Ge-stell). Com a partícula alemã Ge, colocada antes do verbo stellen,
Heidegger quer indicar uma reunião prévia do por, uma antecipação que planeja o
que vai ser posto. Por isso, distinto de como em geral os alemães compreendem
esse termo, a saber como armação, estrutura, estante, chassi, esqueleto, o
sentido que Heidegger quer ressaltar com a palavra Ge-stell é o de com-posição, uma reunião prévia do que é posto, que
assegure, de antemão, o controle e a dominação do real, viabilizando, assim, a
sua exploração: “Com-posição, Ge-stell,
significa a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o homem
a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade (Bestand).”[16]
Ao desencobrir o real como disponibilidade, o homem e o mundo deixam de
ser compreendidos como sujeito e objeto, tornando-se elementos da composição
técnica: o homem se torna força de trabalho e o mundo, matéria prima. Devemos
observar, também nesse mesmo sentido que, ao dispor do real na composição, a
técnica moderna opera uma nova transformação da verdade, que passa da certeza
do entendimento para a eficácia da produtividade. A técnica moderna não propõe
uma teoria do real, mas compõe uma produção sempre maior, em um tempo sempre
menor. A produtividade técnica como composição visa unicamente a exploração
energética do real, a dominação incondicional do ente – e esse é o seu perigo:
instaurar o império da produção total, onde tudo passa a ser
unidimensionalizado na bitola da produtividade:
A composição
não põe, contudo, em perigo apenas o homem em sua relação consigo mesmo e com
tudo que é e está sendo. Como destino, a com-posição remete ao desencobrimento
do tipo da dis-posição. Onde esta domina, afasta-se qualquer outra
possibilidade de desencobrimento. A composição encobre, sobretudo, o
desencobrimento, que, no sentido da poíesis,
deixa o real emergir para aparecer em seu ser. Ao invés, o pôr da exploração
impele à referência contrária com o que é e está sendo. Onde reina a
composição, é o direcionamento e asseguramento da disponibilidade que marcam
todo o desencobrimento.[17]
Heidegger compreende que a composição exploradora da técnica moderna, ao
pôr a natureza à disposição, oferece o risco de o homem, trocando o ser pelo
ter, só ver o mundo a partir da perspectiva produtivista, na qual tudo torna-se
produto, ou como produção ou como consumo. No círculo vicioso de produzir para
consumir e consumir para produzir, o homem se esquece de ser, se aliena e se
perde. Com a unidimencionalização produtivista da realidade, ao encobrir o
desencobrimento que, poeticamente, deixa o real aparecer em sua abertura, o
homem corre o risco de não mais compreender a sua existência e perder o sentido
de ser: “A composição é o perigo extremo porque justamente ela ameaça trancar o
homem na dis-posição, como pretensamente o único modo de desencobrimento. E
assim trancado, tenta levá-lo para o perigo de abandonar sua essência de homem
livre.”[18] O
perigo da técnica moderna é, por só desencobrir a realidade em sua disposição
exploradora, inviabilizar ao homem a sua abertura mais originária, aquela que,
por lhe ser mais própria, constitui a sua identidade, a sua essência de ser
livre. Oposta à com-posição da técnica, Heidegger indica que a ex-posição da
arte é uma modalidade produtiva que pode restituir ao homem a sua liberdade
esquecida.
3. A ex-posição
(Her-stellung) da arte
De acordo com Heidegger, a arte ex-põe o real no modo de sua liberdade.
Sua tese diz: “A arte é o pôr-se em obra da verdade”. Ao contrário tanto da
proposição objetivante, como da composição exploradora que visam dominar o
ente, este pôr que a arte produz
ex-põe o ser, iluminando a sua clareira. De acordo com Heidegger, o que é
próprio da arte é a manifestação da verdade do ser, o desencobrimento. Tal
desencobrimento, todavia, não mostra o ente determinado, como a produção da
ciência e da técnica moderna, mas sim o próprio aberto do ser:
Na obra, a
verdade está em obra – portanto, não apenas algo verdadeiro. O quadro de Van
Gogh que mostra os sapatos de camponês (...) não dá a conhecer apenas o que é
este ente singular enquanto tal, antes deixa acontecer o desencobrimento
enquanto tal, relativamente ao ente no seu todo. Todo ente se torna com ele
mais ente. O ser que se encobre é, desta maneira, clareado. A luz assim
configurada proporciona o seu aparecer na obra. O aparecer proporcionado na
obra é o belo. A beleza é um modo como a
verdade enquanto desencobrimento vigora.”[19]
Ao afirmar que a arte é o pôr-se em obra da verdade, Heidegger não quer
dizer que a arte apresenta corretamente um ente particular, mas sim que o
próprio ser, o que faz as coisas serem o que elas são, se mostra na obra de
arte. Nesse sentido, a arte proporciona uma clarificação não deste ou daquele
ente, mas sim da totalidade dos entes – todo ente se torna, na arte, mais ente.
Para este pensamento, a beleza de uma obra não consiste em ela ser agradável
aos sentidos, um prazer estético, mas antes em promover a vigência da verdade
como desencobrimento, uma experiência de ser, uma operação ontológica.
A produção artística, caracterizada por Heidegger com o termo Her-stellen (que significa criar,
apresentar, pôr para fora), constitui a ex-posição do que é mais apropriado ao
ente que aparece, por ela o mostrar em seu próprio ser. Diferente de uma teoria
do real ou de sua disponibilidade – cujas produções, porque provém de um agente
concebido como causa da ação, não respeitam a propriedade do que é produzido,
mas pro-põe ou com-põe antecipadamente o que deve ser posto –, o ex-pôr da arte
é um deixar ser da verdade, um abandono ao seu acontecimento, que revela o que
o ente é nele mesmo, em sua totalidade.
Por vivermos numa época científico-tecnológica, na qual a realidade é
concebida a partir do esquema causa-efeito, de um modo geral temos a tendência
de achar que o artista é o agente da obra de arte. Todavia, Heidegger, logo ao
início de seu texto A origem da obra de
arte, a fim de desfazer essa compreensão habitual de que a obra tem a sua
origem a partir da e pela atividade do artista, lembra que só há artista graças
a sua obra. O artista é a origem da obra e a obra é a origem do artista –
nenhum é sem o outro. Entretanto, como um não tem em si o outro, ambos são, em
si e na sua reciprocidade, mediante um terceiro, que é o primeiro: a arte –
“Assim como o artista é a origem da obra de um modo necessariamente diferente
do modo como a obra é a origem do artista, tão certo é a arte ser, ainda de um
outro modo, a origem para o artista e, ao mesmo tempo, para a obra.”[20]
Mas é a arte algo? O que é “arte”? Nós só podemos ver o que é arte onde ela se
efetiva, nas obras de arte e nos artistas. Todavia, se um quadro de Van Gogh é
tão artístico como uma sinfonia de Beethoven ou uma escultura de Michelangelo,
a arte não se restringe nem à obra nem ao artista. “A essência da arte, na qual
se baseiam, acima de tudo, a obra de arte e o artista, é o pôr-se em obra da
verdade.”[21]
A fim de compreendermos o sentido da frase de Heidegger “a arte é o
pôr-se em obra da verdade” devemos pensá-la na ambivalência de sua construção,
no sentido que tanto a arte pode ser compreendida como sujeito da frase – a
arte põe em obra a verdade –, como o contrário: a verdade que se põe em obra na
arte. A arte se funda na verdade, sendo a verdade o fundamento da arte. Essa
ambivalência do sentido da frase de Heidegger não é uma ambigüidade, antes ela
visa indicar que a relação entre arte e verdade se constitui numa uma dinâmica
circular, onde um engendra o outro numa reciprocidade fundamental. Arte e
verdade são o mesmo, a criação que des-encobre e, assim, mostra o que se
oculta: poíesis. Arte e verdade
constituem o acontecimento original da abertura do ser, através do qual o ente
se mostra em sua possibilidade mais plena e apropriada. Esse acontecimento, a
descoberta não significa a apreensão de um ente particular, a determinação de
alguma realidade efetiva, mas uma compreensão do que torna possível o real
aparecer em sua totalidade, ela corresponde ao iluminar que faz aparecer. A
arte é uma abertura por onde a verdade se põe em obra – a verdade é o
desencobrimento no qual a arte acontece; essa circularidade entre arte e
verdade constitui a dinâmica mais própria da relação do homem com o mundo.
Antes de haver uma separação entre sujeito e objeto, a arte instaura a
necessidade possível, ou a possibilidade necessária, aberta no próprio
acontecimento da verdade.
Quem orienta o que deve ser feito, conduzindo o trabalho do artista, não
é o seu arbítrio, mas o próprio elemento da arte e o seu material, a terra.
Heidegger vai indicar que o artista, ao utilizar um material, não o gasta, mas,
pelo contrário, o liberta para si mesmo. “A obra efetua essa exposição (Herstellung) da terra na medida em que
ela própria se repõe (zurückstellt)
na terra.”[22] A obra
se re-põe no que é o mais próprio da pedra, da madeira, do metal, da cor, do
som, da palavra; a obra se repõe na terra, fazendo com que ela se exponha na
obra. Ao contrário de gastar o material de que a obra é feita, a arte faz com
que ele surja, pela primeira vez, diante, no aberto da obra:
[Na obra de arte]
A rocha alcança o suportar e o jazer e só assim se torna rocha; os metais
alcançam o resplandecer e o reluzir, as cores o brilhar, o som o soar, a
palavra o dizer. Tudo isso surge diante na medida em que a obra se repõe no
caráter maciço e pesado da pedra, no caráter firme e maleável da madeira, na
dureza e no brilho do metal, no luminoso e no escuro da cor, no timbre do som e
no poder de nomear da palavra.[23]
Na criação artística, em sua pro-dução como exposição, não há nem
subjetividade do homem, nem objetividade da coisa; nela não há sujeito ou
objeto, mas um acontecimento apropriante.
A arte é o pôr-se em obra da verdade por ex-pôr a abertura na qual o ente se
desencobre em sua totalidade. Antes de ser uma ação de um agente, a criação
artística põe homem e mundo num acontecimento de reciprocidade, no qual a
realidade se mostra apropriadamente. “É precisamente na grande arte que o
artista permanece, face à obra, algo indiferente, quase como uma passagem que
se destrói a si mesma no criar, uma passagem para o passar-a-ser da obra.”[24]
Se na obra está em obra um acontecimento da verdade, a criação do artista deve
consistir não em um fazer, mas, antes, em um deixar a obra vir a ser obra. Esse
é o sentido da produção como exposição: um deixar re-pôr-se no ser, que mostra
o ente nele mesmo. Tal deixar ser, compreendido como o pôr-se em obra da
verdade, perfaz o que Heidegger compreende como liberdade: “A essência da
liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como exposição ao
ente enquanto ele tem o caráter de desencoberto.”[25]
Antes de ser compreendida, no horizonte da objetividade, como um livre-arbítrio
do sujeito, a liberdade é aqui pensada como o deixar o ente ser o que e como
ele é, uma ex-posição que o mostra em sua mais própria perfeição – essa relação
entre verdade e liberdade, posta em obra na obra de arte, expõe o ente
descoberto em sua totalidade.
Heidegger indica que a exposição artística do real no modo de sua
liberdade é o que pode vir a superar a decadência do desencobrimento promovida
tanto pela proposição objetivante da ciência, a verdade como adequação do juízo
à coisa, como pela composição exploradora da técnica, a verdade como o
asseguramento da disponibilidade, eficácia. A decadência dessas produções
ocorre por, em ambas, o ser estar esquecido em prol da dominação do ente. Tanto
a ciência como a técnica modernas, ao visarem dispor incondicionalmente da
realidade, produzem um real estabelecido previamente, seja pela objetidade ou
pela disponibilidade, no qual o homem não mais experimenta a sua modalidade
mais própria de ser exposto no acontecimento de sua presença – abertura,
clareira, desencobrimento – e, assim, se esquece do ser. Diante da constatação
desse esquecimento, o pensamento de Heidegger recoloca a questão do ser a fim de
nos lembrar que, apesar de todos os méritos científicos e tecnológicos da
modernidade, é poeticamente que o homem habita esta terra.
[1]
Professor de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.
[2] Verso do
poema de Hölderlin No azul sereno florece...,
que Heidegger interpretou em seu texto intitulado “...Poeticamente o homem
habita...”
[3] Martin Heidegger.
Ser e tempo §44. Trad. Marcia de Sá
Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988, p. 281 [Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1986, s. 213]. Todas as
citações deste texto são de M. Heidegger.
[4] Idem, p.
284 [s. 216].
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Sobre
a essência da verdade. In: Heidegger. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural,
1979, (col. Os pensadores), p. 138 (tradução modificada) [Vom Wesen der Wahrheit.
In: Wegmarken. Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1967, s. 84].
[8] Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 53 [Über
den humanismus. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, s. 21].
[9] A
questão da técnica. In: Ensaios e
conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.
16 [Die Frage nach der Technik. In: Vorträge und Aufsätze.
Stuttgart: Klett-Cotta, 2004, s. 15].
[10] Idem.
[11] Idem, p. 17 [s. 16].
[12] Ciência
e pensamento do sentido. In: Ensaios
e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002,
p. 44 [Wissenschaft und Besinnung. In: Vorträge und Aufsätze. Stutgard:
Klett-Cotta, 2004, s. 47].
[13] Idem, p. 48 [s. 52].
[14] A questão da técnica, p. 18 [Die Frage nach der Technik, s. 18].
[15] Idem,
p. 20 [s. 20].
[16] Idem,
p. 24 [s. 24].
[17] Idem,
p. 30 [s. 31].
[18] Idem,
p. 34 [s. 36].
[19] Origem
da obra de arte. In: Caminhos de
Floresta. Trad. Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2002, p. 56 [Der Ursprung des Kunstwerkes. In: Holzwege.
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1972, s. 44].
[20] Idem, p. 8 [s. 7].
[21] Idem,
p. 76 [s. 59].
[22] Idem,
p. 46 [s. 36].
[23] Idem,
p. 44 [s. 35].
[24] Idem,
p. 36 [s. 29].
[25] Sobre a essência da verdade, p. 138 [Von Wesen der Wahrheit, s. 84].Arte e verdade no pensamento de Heidegger
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