Juliana Pessoa (5)
Juliana Pessoa. Uma lebre para Beuys. Grafite sobre papel. |
Mesmo quando o
camponês se afana e trabalha,
Quando a semente se
transforma no verão,
Nunca é ele que alcança. É a terra que presenteia.
Rainer Maria Rilke
Joseph Beuys foi um artista alemão da segunda metade do
século XX, que produziu um riquíssimo legado que inclui desenhos,
esculturas, instalações, ações, bem como diálogos e palestras públicos, tendo,
para isso, se utilizado dos mais inusitados tipos de matéria, tais como: gordura
vegetal, feltro, mel, animais (vivos e mortos), plantas, baterias, quadros
negros. E, além disso, ampliou o horizonte de possibilidades materiais da arte,
incluindo a linguagem, a vontade e o pensamento como “matérias” fundamentais a
serem trabalhadas pelos artistas. Exemplo disso é sua obra Bomba de mel no local de trabalho, realizada na Ducumenta de
Kassel, em 1977, que consistiu em 100 dias de conferências públicas, envolvendo
milhares de pessoas, fazendo assim do próprio pensamento a sua obra.
Avesso à especificidade da arte a um âmbito restrito da
realidade, o artista enveredou pelo ativismo político e ecológico, sendo um dos
fundadores do Partido Verde da Alemanha; e dedicou-se também à atividade de
professor de escultura na Academia de Arte de Düsseldorf, até ser demitido,
após incluir na sua turma, alunos reprovados no teste de aptidão, isto é,
pessoas consideradas inaptas para exercer a atividade artística. Episódio que
contribuiu para que Beuys, juntamente com o escritor Heinrich Böll, fundasse também em Düsseldorf, em 1972, a “Universidade
Livre Internacional para a Criatividade e Pesquisas Interdisciplinares” (FIU). Beuys e Böll, inclusive, escreveram o Manifesto de Fundação da
universidade, que se inicia com a seguinte afirmação:
“A criatividade não se
limita às pessoas que se dedicam a uma forma artística específica, e mesmo para
os artistas, a criatividade não está confinada ao exercício exclusivo de sua
obra. Cada um de nós possui um potencial criativo [...]. Reconhecer, explorar e
desenvolver esse potencial é a tarefa dessa escola”. (p. 149. EPFTWM)
Não devemos concluir que essa multiplicidade de atuações
(artísticas, políticas, educacionais) significa também multiplicidade de
interesses, como se se tratasse de uma tentativa de se falar de tudo, sem
nenhum foco ou rigor. Pelo contrário, Beuys dedicou a totalidade da sua obra à
uma única tarefa, pensar o que é a arte, sua essência, ou ainda, sua esfera de
poder. É desde esse horizonte
que podemos conceber o conjunto de sua obra, o seu pensamento.
Joseph Beuys. |
Talvez ainda cause espanto afirmar haver na arte
pensamento, tão acostumados estamos em nos relacionar om as obras como simples
objetos da sensação, aos quais apenas vivenciamos de maneira frívola e
desinteressada. De fato, se por pensamento compreendemos uma formulação
conceitual operada por sinapses que ocorrem no interior do cérebro, de teor exclusivamente
lógico-racional-matemático e com validade universal: não, definitivamente a
arte não pensa.
Aqui compreendemos o pensamento não como um equação
conceitual, mas como um eterno criar, descobrir, conhecer. Pensar, deste
modo, não é solucionar problemas, mas estar interessado, disposto, à abertura
da realidade. O que não pode ser entendido como um falatório indiscriminado e
individual, cada um pensa o que quer, como quer e pronto. Essa abertura da
realidade é o que encaminha o pensamento, dá limite e sentido, sem jamais
liquidá-lo. Pensar é o que permanece sempre como tarefa. Nesse sentido, portanto, a arte pensa. E, para Beuys, o
pensamento é simultaneamente tanto a matéria-prima fundamental, quanto a
própria obra da arte.
Deste modo, o fenômeno artístico não é coisa alguma: não
é algo específico – seja espiritual, genial ou genético – que alguém possui,
tem à mão como sua posse, em detrimento de outros que não o têm; nem é um
objeto da sensação, composto de alguma matéria enformada, cuja qualidade o
diferencia dos demais objetos; tampouco é uma reação emotiva ou sentimento de
prazer ou ainda juízo crítico que determinadas pessoas experimentam.
Arte, em seu sentido mais próprio, para Beuys, é
pensamento. Devemos ver sua obra a partir dessa perspectiva: como um provocar,
promover, ou melhor, como um colocar o pensamento em ação. Isso não significa
um distanciamento do caráter material ancestral da arte, como se Beuys, em um
íntimo diálogo com Hegel, pretendesse promover uma arte espiritual, filosófica,
purificada de seu vínculo com a materialidade da terra. Pelo contrário, sua
intensão é expor, eu diria até mesmo, escancarar a reciprocidade que há entre o
pensamento e a materialidade da terra.
Pensar não é nenhuma abstração, algo que se passa em uma
realidade paralela à do corpo. O pensamento tanto é do corpo, quanto depende da
terra. Tradicionalmente, concebemos o corpo como o receptáculo ou mesmo a
prisão da alma, da subjetividade, da razão, do espírito, da inteligência – o
corpo é entendido assim como inferior e irracional, âmbito do pathos, do erro, da ilusão. Tanto a
tradição filosófica, quanto a ciência moderna compartilham uma certa pretensão
de ultrapassar a condição corpórea do homem, seja no âmbito da abstração
teórica ou da técnica.
Para Beuys, diferentemente, o corpo não é nenhum receptáculo
formado por uma estrutura orgânica multicelular, no interior da qual infinitas
reações físico-químico-biológicas ocorrem. Não provém de nenhuma roleta de
genes, tampouco é controlado por um sofisticado circuito de neurotransmissores.
Nesse sentido, nem podemos dizer também que o homem possui um corpo.
Diferentemente dessa compreensão tradicional, para Beuys,
o corpo é a condição de possibilidade da existência. Nele estão reunidos em uma
unidade indivisível homem e terra. Deste modo, o corpo também não é uma coisa
simplesmente dada, aí à mão, pronta, mas o nosso modo de ser sobre esta terra,
logo, trata-se de algo fundamentalmente plástico, a ser modelado, formado,
esculpido, à medida que se vive. Não temos, assim, mais algo como um corpo.
Falamos aqui de um fenômeno, que podemos chamar o encorporar.
Do mesmo modo, devemos também pensar o que é a terra
nessa relação de reciprocidade e copertencimento com o homem. Pois certamente
Beuys não se refere à terra, assim como um cientista ou um técnico. Para ele, não
somos senhores e donos da terra. A terra não é o que está aí disponível na
forma de um planeta do sistema solar, como fonte de matéria-prima para pesquisa,
produção e consumo. A terra é o vivo, o próprio vivente, o modo como a vida
é. Ela é o que ultrapassa o meramente humano. Podemos assim dizer que a terra é
o próprio tempo, pois é simultaneamente o mais arcaico e o que ainda está por
vir.
Não tem lugar, data, nem certidão de nascimento, mas reúne
a totalidade das realizações, passadas e vindouras. A terra é a grande
possibilitadora da existência. Isso não apenas porque dela provém os recursos
para a subsistência humana, mas porque ela é o vivente, a nascividade enquanto
tal, o que permanece na ultrapassagem e, assim, o propriamente estimulante da
existência. De acordo com Beuys, um princípio plástico, originário, criativo,
perfaz o modo de ser de vida. É a partir da criação que devemos conceber o
caráter fundamental de tudo o que é.
Dissemos anteriormente que o pensamento é do corpo,
devemos agora melhorar essa afirmação: Como nem a terra, nem o homem estão
prontos ou se quer podem vir a alcançar um determinado telos, mas se constituem como criação, o corpo não é algo que dentre
outras atividades que realiza, também pensa. O pensamento é o modo por meio do
qual a corporalidade se materializa, se encorpora nas suas realizações. Não há um âmbito da existência desprovido de pensamento
ou criação, podemos estar mais distraídos ou interessados nas nossas ações, mas
estamos sempre diante da possibilidade de um envolvimento criativo e pensante.
A discussão que Beuys promove acerca do que é a arte é,
deste modo, extremamente radical, no sentido de liga-la às raízes da própria
vida. Pensamento e arte, para ele, são sinônimos. Logo, assim como o pensamento
não é uma atividade dentre outras, tampouco a arte pode ser entendida assim. Para Beuys, esse princípio originário que perfaz o modo
de ser da vida é o que ele concebe propriamente como arte.
Joseph Beuys. 7000 carvalhos. O início do plantio das
mudas de carvalho.
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Daí, podemos compreender suas afirmações mais célebres: o pensamento
é plástico e todos somos artistas.
Ambas as afirmações não pretendem outra coisa, senão indicar, acenar, que estamos
todos criativamente envolvidos com o contínuo processo de formação da
realidade.
Essa força criadora, estimulante, é a origem da arte.
Nesse sentido a arte aparece como algo que em muito ultrapassa o meramente
humano. De acordo com Beuys, ela é o fundamento do vivente, o que perfaz todos
os processos de formação da matéria; podemos, assim, dizer que a arte é o
propriamente terreno.
Sendo o terreno que é, a arte também não possui lugar,
data, nem certidão de nascimento, não pode ser fixada, nem conhece nenhum fim
ou término, mas é originária, incansável
concepção, isto é, geração. Assim, quando Beuys nos convida a pensar o que
é a arte, ele não quer com isso especificar uma resposta para a questão e,
assim, liquidar definitivamente o assunto. Somos aqui convidados a pensar a
arte de forma originária, a partir de sua vigência nasciva nas suas mais
diversas manifestações, enquanto uma força que nós estamos permanentemente
envolvidos.
Para Beuys, a necessidade dessa discussão é fundamental,
pois de maneira gradativa, o fenômeno artístico foi perdendo o seu vigor, se restringindo
a um âmbito específico das humanidades e entulhado por um emaranhado de
conhecimentos teóricos, históricos e filosóficos.
Assim, nossa concepção moderna de arte costuma afirmar
que apesar de as civilizações arcaicas contarem com pinturas, esculturas,
mosaicos..., alcançamos a maturidade do fazer e das técnicas artísticas, a arte
propriamente dita, apenas no Renascimento. E que o seu amadurecimento teórico, uma
consideração específica sobre a arte, surge no século XVIII, que denominamos Estética.
Essa disciplina busca solucionar um antigo problema que opunha idealistas e
empiristas: a arte se funda no meu sentimento e, portanto, é de ordem subjetiva
ou se funda na materialidade do objeto, e assim, é objetiva?
Esse é o contexto em que Kant escreve sua Terceira Crítica, A crítica do juízo, que vem legitimar a Estética, a consideração acerca do perceber sensível,
como uma disciplina filosófica, inaugurando uma teoria com a qual, apesar dos
séculos, ainda estamos bastante familiarizados, quando nos voltamos para as
questões da arte: gênio, gosto, juízo, desinteresse, sentimento de prazer, belo,
são para nós palavras habituais.
Desse modo, essa consideração da arte trata exclusivamente
da sensibilidade, não sendo, portanto, da ordem do conceito, da verdade, do
pensamento. A arte passa a ser vista como o âmbito sensível da existência, no
qual o homem extravasa seus sentimentos mais delirantes, por meio de desenhos,
pinturas, esculturas, fotografias, performances..., como que para aliviar-se
das duras penas da vida real.
Desde esse horizonte teórico, somos capazes de ver as
obras apenas como expressões da vivência de um indivíduo, um extrato de sua
interioridade. (Merda de artista) Assim, também as experimentamos a partir de
nossas vivências pessoais, cada um à sua maneira, como juízes do grau de
assertividade do artista.
Quando Beuys nos convida a pensar o que é a arte, ele
acena para a necessidade de se abdicar de tanto conhecimento, de tanta teoria,
a fim de se poder experimentar a origem do fenômeno artístico. Perguntar pela origem da arte não é perguntar
pelo seu começo, como quem quer precisar um onde e um quando. A origem não é o
que aconteceu em um passado e que agora não acontece mais, mas ela é o
originário, inesgotável fonte geradora: não passa, mas vigora.
Está aí à vista, mas sempre se escondendo. O mais
próximo, mas também o mais distante. Há que se ter um frescor no olhar, certa
inocência de quem não sabe nada, certo esquecimento ou memória curta.
Joseph Beuys, 7000 carvalhos. A "ação" em seu estado atual. |
Isso demanda, sobretudo, esforço e paciência, uma tentativa
de ver, ou melhor, de ser um tipo feliz de Sísifo, que de maneira incansável
rola sua pedra morro acima, para, depois, alegremente, lança-la morro abaixo e,
assim, recomeçar a tarefa. Estamos aqui diante muito mais de um perder, do que
um ganhar.
Caminhamos na beira de abismos.
Em seu convite, Beuys quer, de fato, nos atrair para um labirinto,
nos confundir com enigmas, por o mundo às avessas, a fim de nos mostrar a
plasticidade da própria vida, seu caráter criativo, aberto, livre – originário.
Se pudermos falar de um âmbito da arte, sem dúvida esse âmbito seria o da
liberdade.
Como já ficou claro, artista não é aquele que se dedica à
uma atividade específica, denominada estética, mas é, de acordo com Beuys, o paradigma
do homem. Com certeza, Beuys não institui um modelo de humanidade, como quem
prescreve regras para direcionar o modo como as pessoas devem viver, como se
houvesse alguma teleologia existencial.
O artista é paradigma, no sentido de ser ele quem
maximamente expõe a dimensão da liberdade humana, não nesse ou naquele aspecto,
mas na totalidade de suas realizações. A ação do homem livre é exemplar, à
medida que por meio dela não aprendemos algo determinado, mas o modo de ser da
própria liberdade. Liberdade aqui em nada tem a ver com livre-arbítrio, no
sentido de um tudo poder, nem com o sentido negativo da independência, como um
não depender de nada, nem ninguém.
Para Beuys, a liberdade é um ser livre de, na necessidade
de um ser livre para. Isso significa que o homem livre é aquele que é por si e
não por outro e para si e não para o outro. Quando falamos ser livre para,
estamos diante de um sentido criativo de liberdade, como um poder produzir, no
sentido de concretizar algo que antes simplesmente não era. À medida que a
corporalidade é o modo como a existência se materializa, se encorpora nas suas
realizações, a criação é algo congênito ao homem, na sua reciprocidade com a
terra.
Criar não é um arbitrário inventar formas, mas é a maior
responsabilidade. Geralmente, compreendemos responsabilidade como uma carga
que, ao contrário de nos libertar, nos achata, deprime, abate. Isso, para
Beuys, provém de nossa má relação com o trabalho: somos livres à medida que
somos dispensados de toda responsabilidade e não “precisamos” fazer nada,
estando, assim, liberados para passar o tempo, como quem está à toa.
No entanto, Beuys concebe a responsabilidade como a contraparte
fundamental da liberdade, o ser livre para. Essa responsabilidade não é outra
coisa senão a nossa habilidade para responder. Responder a que? Aos estímulos da terra, que
nos fazem descobrir o secreto começo das
coisas, isto é, a necessidade da criação.
Ser livre significa, assim, assumir maximamente essa
responsabilidade com a terra, descobrindo, desde si e junto a ela, que viver, à
medida que é criação, nos exige a maior audácia e o supremo risco. Nessa descoberta
o que está em jogo não é um decifrar, mas um aprender a conviver com enigmas,
não um sair, mas um se enredar em labirintos.
A terra se mostra, deste modo, não como algo à disposição
do homem, como matéria-prima a ser explorada e armazenada, a serviço de uma
produtividade e consumo sem limites. Desde a perspectiva do artista, a terra
aparece como o mistério que faz pensar
e, assim, criar: por isso a grande estimulante para a vida.
Os artistas são sempre artistas da terra, amam tanto a
terra a ponto de sentir as suas vibrações pulsarem nas veias de suas obras:
olham
a terra sempre com olhos de primeira vez e por isso descobrem em tudo um
receptáculo de originalidade, tecendo sentidos que aviem à festa da existência,
onde o
trabalho, a tarefa do viver, não é uma repetição alienante, mas uma força criadora.
Deste modo, o exercício acadêmico em sala de aula não é
apenas uma atividade docente, mas artística; a fundação de um partido não é
apenas um artifício para se alcançar o poder e governar, sobretudo, a política
se funda no horizonte da arte; a forma, seja ela imagem ou palavra, não é
apenas a expressão de um conceito universalmente válido ou de uma vivência
pessoal, mas o próprio processo de criação do mundo, uma experiência criadora
de sentidos da terra: linguagem.
Sendo assim, o horizonte da arte é o da vida, em seu
sentido mais amplo. Essa amplitude se dá porque a vida não é a vivência ou
posse de alguém, mas uma força que reúne a todos, da qual todos participam de
modo criativo e pensante ou ainda de modo frouxo e alienado. Assim, afirmar que
a arte se funda na vida, é conceber para ela uma dimensão política fundamental.
Não há sentido no privado, a construção da linguagem, dos
sentidos possíveis do viver, é sempre plural, ou melhor, social. Daí Beuys
apresentar sua concepção artística como uma plástica
social.
A crise política em que vivemos se mostra, para Beuys,
como uma crise da linguagem: uma perda
progressiva da criatividade, cuja consequência é um estiolamento dos
sentidos que nos orientam em nosso viver. Essa perda decorre do modo como nossa
época se compreende, isto é, do que ela concebe como o seu valor supremo: o
progresso científico-tecnológico.
A ciência não é mais uma atividade a qual o homem se
dedica. Em nossa época, ela se tornou uma autocracia,
no sentido de ter se tornado um poder de
organização da História, em âmbito planetário. Isso acarretou uma unidimensionalização
das possibilidades de sentido: tudo está a serviço da produção e do consumo
totais. Não se reconhece mais sequer a hipótese de se ultrapassar essa
disposição.
E, assim, nossas necessidades, nossos estilos de vida, a decisão
sobre o sentido da existência, só reconhecem como valor de verdade aquilo que a
técnica é capaz de produzir e processar em informação. Até nossos sonhos se
tornaram tecnológicos.
Nesse roldão, esvazia-se as línguas naturais,
propriamente criativas, terrenas, à medida que se nega a originalidade do
trabalho e se substitui a necessidade criativa da produção, pela mera produtividade
ilimitada. Quando o automatismo, a inteligência artificial e a robotização controlam
os modos de produção, o progresso industrial e econômico se sobrepõe ao
trabalho como o traço imemorial de união entre homem e terra.
Assim nossa época se aliena em relação à necessidade e à
responsabilidade da criação. A técnica moderna nega tanto a força criativa do
pensamento, quanto a possibilidade de uma ação livre, transformadora, uma vez
que sua racionalidade totalitária domina
e, assim, anula a existência por meio de instrumentos que falam, pensam e
decidem por nós. De tanto processamento
automático já não se consegue ver os processos essenciais da vida: ao
contrário da arte que ama a terra, a ciência se revolta contra a condição
terrena da vida, à medida que quer transformar as coisas e nós mesmos em meros
produtos de produção e consumo.
Sendo o homem o ser terreno que ele é, nossa época
provoca a ruína de seu modo de ser, isto é, atrofia sua corporalidade,
desertificando a terra. Sacrificando-se as fontes terrenas da criação, a
linguagem seca, a arte definha, a política agoniza. Para Beuys, essa é a doença
de nossa época. Estamos doentes, pois fundamos nossa existência em um modo de
ser automatizado, inerte, alienado de sua fonte originária, que efetivamente deprime
e mata.
Graças ao progresso de nossa época, conseguimos
desenvolver formas de extermínio total da vida e da terra: armas absolutas, artefatos atômicos, químicos, bacteriológicos e
biotecnológicos. (Já ouvimos anseios de se colonizar outro planeta, porque os
recursos da terra estão se esgotando nessa vontade da produção total).
Nosso modo de produzir, ao não se fundar no respeito e na
necessidade da terra, sacrifica a pureza do ar e da água, elimina as áreas
verdes em favor do avanço do concreto e do asfalto, biocidas e dejetos de esgotos
desequilibram a natureza, substâncias químicas nocivas comprometem a qualidade
dos alimentos, a produção e a distribuição irresponsáveis de biotecnologias, ao
contrário dos benefícios prometidos, acabam se tornando uma ameaça à vida na
terra.
Falamos aqui de problemas que não são, de maneira
nenhuma, abstratos, mas de máxima concretude. Problemas demasiadamente nossos. Beuys
promove uma discussão sobre a arte a fim não apenas de expor o horror de nossa
época, mas, sobretudo, de escancarar a nossa ativa participação nesse processo.
Não chegamos onde estamos por meio da revelação de uma
necessidade histórica, mas por uma série de decisões, iniciativas, vontades: todos
os dias, afirmamos essa realidade no modo como pensamos, agimos, trabalhamos,
comemos, compramos, sonhamos, desejamos. Paulatinamente, somos educados para
isso, queremos isso e é isso que realizamos.
A convivência social é a condição ancestral do homem
sobre esta terra: trabalhamos, falamos, criamos, pensamos sempre socialmente,
isto é, o trabalho, a linguagem, a criação e o pensamento só se tornam reais,
só adquirem sentido, concretude, se
houver possibilidade de conversa, diálogo e acordo. Nosso modo de vida tropeça no outro, assim
como o outro esbarra na gente. A criação nunca é a ação privada de um eu, mas
sempre de um nós.
Beuys nos abre a possibilidade de ver a ciência a partir
da ótica da arte e a arte a partir da ótica da vida. Nessa visão o que vemos é
o visionário, o terreno. Assim, gradativamente, redescobrimos e reaprendemos o
aspecto libertador do trabalho, a natureza da linguagem, a origem da plástica social.
Ver a arte a partir da vida é vê-la fundamentalmente como
uma dimensão social e política, na qual estamos todos envolvidos em uma
atividade plástica fundamental: resguardar o sentido da terra e, assim,
encorporar sua presença criativa, realizando-a em nossas ações e pensamentos.
Ao perigo da vontade
da técnica, a fim de se evitar que essa desgraça
aconteça, Beuys não propõe nenhuma revolução que altere a realidade da
noite para o dia, mas a transformação do homem com o pensar essencial da arte.
texto incrível. valeu ó
ResponderExcluirmuito legal seu texto Juliana, vc escreveu em 2015 e só vi agora por desdobramentos de busca na internet mas achei muito bem construído e esclarecedor sobre o processo de trabalho do Beuys. Vi tbém seus trabalhos na galeria e achei tbém muito legais. Milton Blaser
ResponderExcluirOlá, Milton
ExcluirMuito obrigada! Admiro muito o pensamento de Beuys.