Fernando Pessoa (18)
O diálogo da diversidade – Uma visão do acervo da Galeria Matias Brotas
Curadoria de Fernando Pessoa
Rosa Oliveira, Shirley Paes Leme, Renata Egreja |
Pensar é estar doente
dos olhos.
Alberto Caeiro
Logo ao primeiro olhar, fica evidente no acervo
da Galeria Matias Brotas a diversidade de suas obras: vários artistas, diversos
estilos, diferentes concepções de arte; pinturas, esculturas, fotografias,
desenhos, objetos... Como o propósito da exposição é mostrar o acervo,
imediatamente surgiu a questão de como é possível apresentar ao público uma
visão dessa diversidade, não adotando nenhuma perspectiva ou conceito determinados,
sem que essa mostra se torne um amontoado de obras. Como resposta a tal problema,
surgiu a ideia de conceber a própria exposição como uma obra de arte, compondo
um diálogo entre as suas obras, a partir da associação de semelhanças no seio
da própria diversidade.
Com esse propósito e ideia, busquei
aproximar possíveis identidades entre as obras, a fim de articular apenas um
diálogo de suas imagens, sem considerar o autor, ou o estilo, ou o suporte, ou
qualquer outro conceito. Para isso, lembrei-me de duas coisas: por um lado, do
verso do poema O guardador de rebanhos,
de Alberto Caeiro, posto como epígrafe – “Pensar é estar doente dos olhos” –,
pois o pensamento muitas vezes atropela a visão com seus entendimentos,
impedindo o olhar de ver o que aparece; por outro lado, do conselho que a
ex-diretora do Museu de Arte da Filadélfia, Anne d’Harnoncourt, em uma entrevista
a Hans Ulrich Obrist, deu aos jovens curadores: “é uma questão de olhar, olhar,
e olhar e então olhar de novo, porque nada substitui o olhar...”
Olhar não é apenas a experiência
sensível de nossas retinas, uma intuição sem entendimento, mas a possibilidade
de ser tomado pela visão do que aparece, reunindo e articulando, no próprio
instante, o sentido desse aparecer; olhar é ver sentidos. Então, como exercício
de visão, passei dias e dias só olhando, olhando e olhando e olhando de novo
todas aquelas imagens, percebendo as semelhanças entre seus ritmos, tons,
cores, temperaturas, irradiações, formas, movimentos, todos e quaisquer
elementos de possíveis interações entre elas, a fim de, com o diálogo dessa
diversidade, promover apenas uma festa para os olhos.
O desafio foi ver as obras não como
compartimentos fechados em si mesmos, autônomos e independentes, mas perceber
possíveis relações entre elas, algo que permita uma continuidade do olhar, um
diálogo visual, onde as imagens se articulam, uma evidenciando elementos da
outra, na diversidade de suas propostas. Foi a partir da decisão de compor a
exposição como uma obra de arte, através de um diálogo entre as suas imagens,
que as obras apresentadas foram selecionadas e organizadas. Nesse sentido, a
exposição convida o seu visitante a não apenas olhar cada obra de maneira
isolada, mas buscar ver as semelhanças que
as reúnem em suas diferenças. Um convite para ampliar o campo de visão, a fim
de perceber, no conjunto das obras, na eloquência de seu diálogo, a identidade
originária da própria arte.
Logo na entrada da Galeria,
podemos perceber o diálogo da diversidade proposto pela exposição: a fotografia
de Renan Cepeda com a pintura de Júlio Tigre e a gravura de Amilcar de Castro:
três suportes, estilos, técnicas, propostas, conceitos completamente
diferentes, em uma conversa sobre casas, a fim de
criar uma atmosfera de lar e saudar os visitantes com boas vindas: Entrem, aqui também moram os deuses.
Júlio Tigre |
A fotografia “casa Roxa”, da série
“night paintings”, de Renan Cepeda, uma casa noturna, com cores violáceas e
luminosas, cercada de silêncio e mistério, colocada ao lado da pintura da série
“quimica” de Júlio Tigre, faz aparecer, na abstração da pintura, uma outra
casa, também envolta no silêncio misterioso das luzes violáceas, como se
estivessem irmanadas numa mesma atmosfera que, simultaneamente lúdica e
assombrosa, transpira uma inusitada energia vigorosamente suave. Em composição
com essa conjuntura, a gravura de Amilcar de Castro, uma abstração concreta em
preto, branco e vermelho, sugere a visão de uma casa, como aquelas dos desenhos
de criança, apenas com a sua fachada lateral mostrando a porta e a janela.
Vários diálogos ocorrem ao mesmo
tempo no salão principal da galeria. Renata Egreja, Shirley Paes Leme, Rosa
Oliveira, Suzana Queiroga, Lara Felipe, Manfredo de Souzanetto, Luiz Dolino, Carlos Muniz, Amilcar de Castro,
Vilar, Julio Tigre e José Bechara discutem sobre variados temas, diversas
cores, diferentes formas, em uma mesma conversa sobre arte. É necessário silêncio para ver toda essa
balbúrdia
Na última sala da galeria, uma
espécie de instalação: três pinturas da série “Jardim suspenso” do
artista Raphael Bianco, dispostas em um tríptico na parede do fundo e em
suas duas laterais, uma escultura sonora de Paulo Vivacqua, da série
"mecânica dos fluídos", e um
banco. Ao sentarmos no banco, cercados naquela mata, cheia de ruídos estranhos,
somos aos poucos transportados para florestas encantadas, envoltos em suas
atmosferas maravilhosas e medonhas.
Toda exposição de arte é uma
comemoração da vida, à medida que, como pensou Aristóteles, a arte não só imita
a vida, mas a plenifica, exaltando as suas características originais. Uma
reunião de obras de arte promove, então, a memória da própria origem, uma
lembrança da intensidade da criação. Nesse sentido, as exposições de arte
possuem uma importância fundamental para uma comunidade, pois, ao mostrar o
sentido da criação, elas promovem uma educação do que é o mais essencial na
vida, a sua vitalidade original. Com esta exposição O diálogo da diversidade, a Galeria Matias Brotas propõe, portanto,
não apenas apresentar uma mostra da coleção reunida em seu acervo, mas
comemorar, em uma festa para os olhos, a criação que as obras de arte nos dão a
ver.
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