O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é pensar, a partir de uma interpretação do sentido de sertão em Grande sertão: veredas (GSV), o nexo fundamental, a conexão original que João Guimarães Rosa (JGR) indicou haver entre grande sertão e travessia – este texto propõe mostrar, com o exemplo do destino de Riobaldo, como a travessia corresponde ao modo mais apropriado de se viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o destino do homem jogado na vida, sua liberdade.
Fernando Pessoa (1)
Ao mestre Gilvan Fogel, com carinho
Lhe
falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não
sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O
que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.
João Guimarães Rosa
I. Da travessia do grande
sertão
O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é
pensar, a partir de uma interpretação do sentido de sertão em Grande sertão: veredas (GSV), o nexo
fundamental, a conexão original que João Guimarães Rosa (JGR) indicou haver
entre grande sertão e travessia – este texto propõe mostrar, com o exemplo do
destino de Riobaldo, como a travessia corresponde ao modo mais apropriado de se
viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o destino do homem jogado
na vida, sua liberdade.
Como todos os temas, símbolos e imagens de JGR, devemos compreender a
travessia em GSV na unidade de suas dimensões histórica e metafísica. Por um lado,
essa palavra indica as andanças dos sertanejos, as travessias que Riobaldo fez,
ainda menino, do São Francisco e, já chefe dos jagunços, do Liso do Sussuarão;
por outro lado, travessia indica também o modo de ser no mundo, como o real se
apresenta, se realiza: Digo: o real não
está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.[1] Por
este seu aspecto metafísico, a obra GSV começa nonada e finda na travessia,
indicando que o sertão se funda, tem seu princípio e origem, no nada e acaba,
tem sua finalidade e meta, na travessia. Esse começo e fim, antes de serem
apenas o início e o término de algo, indicam a vigência do que transcende, daquilo
que, por se fundar no nada, obtém o seu solo na ultrapassagem de qualquer
determinação. A travessia constitui a dinâmica mais própria do sertão, a sua essencialização
originária, transcendência, liberdade; travessia significa a liberdade de ser
fundamento originário de si mesmo.
Toda travessia se compõe de três características fundamentais e
indiscerníveis: o ultrapassar, o perpassar e o destinar. O ultrapassar
caracteriza a travessia como transcendência, o fato de ela, por se fundar no
nada, estar sempre jogada em seu acontecimento, no dar-se existencial de si
mesma. A travessia se constitui na permanência da ultrapassagem, no surgir do
aparecer, vigência originária de ser. O perpassar corresponde à entrega a essa
ultrapassagem, daquele que se doa inteiro à presença de seu acontecimento. O
perpassamento da ultrapassagem perfaz a sua própria completude no deixar ser
apropriado da conjuntura; a ultrapassagem é perfeita pelo perpassar de nossa
presença. Ao perpassar a sua própria ultrapassagem, a travessia ganha destino,
o sentido que alinhava o foi com o será e, assim, costura a estória compondo o seu
enredo. Como ultrapassar, perpassar e destinar, a travessia constitui o modo de
ser do sertão, da vida como tarefa de auto-constituição de si, o viver como
aprender a viver.
E o sertão? Tal como travessia, o sertão em GSV também precisa ser
compreendido na unidade de suas duas dimensões, a geográfica e a metafísica.
Sertão indica o interior do Brasil, o seu cerne mais íntimo, suas minas. O
sertão é as Minas Gerais; ou melhor: o
sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a
caatinga. (458). Por outro lado, o
sertão está em toda parte (8), ele é do
tamanho do mundo (68); ou melhor: o
sertão é sem lugar (331), ele é o
sozinho, dentro da gente (289). Por este aspecto metafísico do sertão, JGR afirma,
em sua entrevista a Günter Lorenz, intitulada Diálogo com Guimarães Rosa, que: “Goethe nasceu no sertão, assim
como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac.”[2] Esses
escritores nasceram no sertão não por provirem histórica ou geograficamente do
interior do Brasil, mas pela dimensão metafísica de suas escritas, de suas
relações com a linguagem. “Portanto torno a repetir: não do ponto de vista
filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe,
Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão,
onde Inneres und Ausseres sind nicht mehr
zu trennen.” (DGR, 50)
O sertão é o lugar da solidão onde, conforme citação feita por Guimarães
Rosa da obra Divã oriental-ocidental
de Goethe, “o interior e o exterior já não podem ser separados”: no sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou o tu, ele está ainda além do céu e do inferno (DGR,
50) – jenseits Von Gut und Bösel[3].
Esta condição ocorre pelo estado de inocência do homem do sertão, que, por não
ter comido da árvore do conhecimento, não possui a culpa do pecado original. Sem
ter culpa da vida, não há para esse homem uma lei moral que, acima de tudo e de
todos, prescreva de antemão o que o ele deve ou não fazer; a sua ação é
decidida na própria conjuntura, é conhecida na descoberta do que, nela, aparece
como o mais apropriado. O jagunço é o
sertão (200) porque ele vive jogado na travessia. Por isso, solidão – a
condição de ser um eu que ainda não encontrou o outro, ou melhor, que ainda não
se perdeu na alteridade. Solidão deve ser aqui distinguida do isolamento, pois
enquanto esse diz separação, confinamento, exílio, aquela indica
auto-consistência, a propriedade do homem que se realiza por si mesmo e para si
mesmo e não por outro e para outro. Solidão indica a assunção do que é mais apropriado,
a liberdade de decidir e consumar o seu próprio destino.
“A gente do sertão, os homens de meus livros, vivem sem consciência do
pecado original; portanto não sabem o que é o bem e o que é o mal.” (DGR, 58) Como
o sertanejo ainda não conheceu a culpa do pecado e, assim, não prescreveu uma
lei soberana que determina universalmente o que é o bem e o mal, o seu eu se
constitui jogado na junção de sua conjuntura, na travessia de seu acontecimento.
Antes do confinamento do eu no sujeito, o isolamento do homem na autonomia de
sua consciência, o sertanejo se encontra jogado no mundo, jagunço no sertão,
tendo sempre que descobrir o que ele é, encontrar o sentido de seu destino, no
próprio acontecimento existencial. Viver
– não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque apreender-a-viver
é que é o viver mesmo. (546).
Apreender a viver é conhecer, nascer com, junto ao que acontece,
articulando o sentido do mundo a partir da junção de cada conjuntura, do nexo que
se evidencia na conjunção do acontecimento. Ao contrário da adoção de leis
prévias, de ser legislado por regras morais ou lógicas, o homem do sertão é
legislador, ele descobre a medida das coisas para além do bem e do mal, aprende
o sentido do que aparece (é) no
próprio aparecimento (ser). Essa
medida consiste na necessidade do que se mostra como mais apropriado,
autêntico; o sentido que revela propriedade e autenticidade, nexo, verdade,
liberdade e destino. O verdadeiro sentido aparece como a propriedade do que é preciso,
do que, na travessia do grande sertão, é descoberto como possibilidade necessária
de ser. O sertão é isto, o senhor sabe:
tudo incerto, tudo certo. (146)
Por não ter uma determinação prévia, o
sertão é grande ocultado demais, ele é o que precisa ser, constantemente,
descoberto: Sertão – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra.
De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem. (356) – o
sertão ensina que o real só se dispõe para a gente, de repente, no meio da
travessia. Como o que só se compreende na ultrapassagem, não se pode querer
entender o que é o sertão, o real, através da determinação de algum conceito,
seja ele lógico, estético ou moral. Conhecer o sertão não é dominá-lo com um
entendimento qualquer, mas consiste na graça de, descobrindo o que se oculta, compreender
o que se revela como mistério. Não
podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser vero bom jagunço.
(533)
O grande sertão impõe um pensamento que, ao contrário de buscar
determinar o que é pensado com a certeza de um juízo, encontra a travessia que,
na conjuntura, se mostra como necessária, perfeita. O grande do grande sertão
consiste nesse perfazimento de sua travessia, no ser tomado, atravessado, pelo
mistério do sertão. Por só aparecer se ocultando, o sertão precisa ser experimentado
– e experiência, emperia, Erfahren, é travessia, atravessamento.
Não há um acesso linear, de fora para dentro, crescente e gradativo para se
entrar o sertão – ele não tem janelas nem
portas (462). Para se entrar no sertão é necessário, de repente, saltar
para dentro do instante que já se está, se integrar no interesse de sua
conjuntura. Só já desde dentro é que se pode entrar no sertão, se despertar
para ele, apropriá-lo.
Esta
vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não
me entenderá. Ao que, por
outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que se diz e se faz – que qualquer
um vira brabo corajoso, se puder comer cru o coração de uma onça pintada. É,
mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar a mão curta, a
ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem
muito medo natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço
valentão – e esse homem afia a sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a
onça, com muita inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O
senhor não é um bom entendedor? (102)
Riobaldo, a fim de indicar os ocultos caminhos da vida, conta o exemplo
de como o homem precisa se apropriar de sua coragem através da experiência de
um acontecimento que abre, inaugura, desperta o que ele é. É preciso já ter
coragem para tornar-se corajoso. Esta dinâmica circular de vir a ser o que já
se é constitui o acontecimento apropriante de um instante extraordinário, o
súbito abrir-se do destino, tempo da travessia – Aquela travessia durou só um instantezinho enorme (367).
Quanto tempo dura um instante? Ao contrário do agora, que, por ser
concebido por um tempo repartido em passado, presente e futuro, vem e passa, o
instante constitui o acontecimento no qual o tempo, voltando-se para si mesmo,
se concentra na reunião circular da simultaneidade de seu princípio com o seu
fim. O instante é a unidade da totalidade temporal; o acontecimento em que o tempo
é todo tempo o tempo todo: comigo as
coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre (94) – um tempo no qual
não há antes ou depois, menos ou mais, nascimento ou morte: o instante é a
eternidade que perfaz a travessia do grande sertão, a origem do tempo, fundamento
do destino. O sertão é sem tempo, travessia de um instantezinho enorme.
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O assunto deste texto é a travessia do grande sertão; o seu propósito é mostrar
o nexo fundamental, a conexão original que JGR indicou haver entre grande
sertão e travessia – pensar como a travessia corresponde ao modo mais
apropriado de se viver no sertão, como ela constitui o mundo do jagunço, o
destino do homem jogado na vida. A fim de prosseguir essa análise, encaminhando
o texto ao retorno de seu propósito original, podemos conferir este nexo entre
grande sertão e travessia no exemplo que dele oferece a estória de Riobaldo, o
destino que o conduziu a tornar-se chefe dos jagunços, e matar o Hermógenes: E o “Urutu-Branco”? Ah, não me fale. Ah,
esse... Tristonho levado que foi – que era um pobre menino do destino... (17)
II. O destino de
Riobaldo como travessia do grande sertão
Eu não era o do certo: eu era o da sina!
Grande sertão:veredas narra a saga de
Riobaldo, conta o périplo de sua travessia, a fim de pensar o destino de sua
vida. Após cumprir as tarefas de ser chefe dos jagunços, Riobaldo, seja de
range rede ou assentado em sua cadeira grandalhona da Cariranha, tomou gosto de
especular idéias e passou a narrar as venturas de suas andanças pelo sertão.
Como nessa narrativa ele conta a sua vida não apenas para relatar o ocorrido,
mas principalmente refletir sobre o vivido, a sua estória não é linear, apenas
informativa – contar seguido,
alinhavando, só mesmo sendo as coisas de rasa importância (68) –, mas interpretativa,
especulativa, uma narração hermenêutica, que vai e volta buscando compreender
os desígnios do sertão, o sentido de sua travessia – Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não
é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (68) Matéria
vertente é aquela que extravasa, transborda, escorre, escoa, mas também a que
retorna, retoma, volta, verte à origem – tal como canta a canção de Siruiz:
Olererê,
Baiana,
eu ia e não
vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, oh
Baiana,
e volto do
meio pra trás...
Já com a estória
bastante avançada, Riobaldo volta ao início e conta como tudo começou: Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O
primeiro. Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão. (69) Um
fato que, um dia, se deu, se abriu, indica o acontecimento inesperado, súbito, de
um instante extraordinário. Por ser inesperado, este fato não foi planejado por
nenhuma antecipação, ele caracteriza um acontecimento que surpreende; e surpreender
é pegar em flagrante, improvisar repentinamente uma ação. Esse repentino compõe
a estrutura do instante, a subitaneidade desse acontecimento extraordinário. O
extraordinário corresponde ao espanto que, abalando as referências ordinárias
do cotidiano, transforma as compreensões habituais que temos de nós mesmos, dos
outros e do mundo – de tudo. Todo súbito acontecimento de um fato
extraordinário inaugura algo novo, constitui uma abertura original; por isso
Riobaldo diz que este fato foi o primeiro. O primeiro, aqui, não é aquele que
ocupa o lugar inicial numa seqüência linear, quantitativa e progressiva, mas o
que tem primazia, é fundamental e elementar, origem que abre e perfaz o aberto.
Um fato primeiro é aquele que, deflagrando uma necessidade, demanda travessia,
instaura destino: Será que tem um ponto
certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia da minha vida.
(186)
Riobaldo
conta que esse fato fundamental de sua vida ocorreu na travessia do São
Francisco, que ele e o menino fizeram ainda jovens. Com quatorze anos, Riobaldo
foi com a sua mãe ao porto do Rio-de-Janeiro pedir esmola para pagar uma promessa
que o curou de grave doença. No terceiro ou quarto dia, de repente, viu um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro,
com chapéu de couro, rindo e olhando para ele. Aproximou-se, conversaram e,
cheios de simpatias, ficaram amigos:
Mas eu olhava esse menino, com um prazer
de companhia, como nunca por ninguém eu tinha sentido. Achava que ele era muito
diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito
aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço,
fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um
desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim
como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro
amigo desconhecido. (70)
Riobaldo
sente um diferente prazer com o menino desconhecido, o desejo de uma grande
simpatia. Senti, modo meu de menino, que
ele também se simpatizava a já comigo. (70) Irmanados no interesse dessa
inesperada amizade, foram passear de canoa pelo de-Janeiro, rio de águas claras
que, meia légua abaixo, desemboca no São Francisco – A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento
vermelho, recebe para si o de-Janeiro, quase só um rego verde só. (71) Riobaldo,
que não sabia nadar, sentou na canoa como pinto
em ovo, e, inseguro com aquela situação, com medo e vergonha, resolveu ter brio e manter a calma.
Canoando pelas
águas claras do de-Janeiro, o menino começou a mostrar para Riobaldo os bichos
cágados em cima da pedra, ou nadando no rio:
E chamou a minha atenção para o mato da
beira, em pé, paredão, feito à régua regulado. – “As flores...” – ele prezou.
No alto, eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras
trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo. Um pássaro cantou.
Nhambu? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci
de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? (71)
No passeio no
de-Janeiro, o menino mostra a Riobaldo a epifania do mundo. Entregue à graça da
amizade, impressionado com a força singela desse menino, Riobaldo,
completamente perpassado pelo seu acontecimento, experimenta um instante
extraordinário, daqueles que nunca mais se esquece. A canoa logo chega ao São
Francisco e, para Riobaldo, Medo maior
que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo
dum rio grande. (71) Assim, primeiro ele pediu para dali voltar e depois,
quando o menino e o canoeiro levantaram e a canoa balançou, deu um grito: Eu disse um grito. – “Tem nada não...” – ele
falou, até meigo muito. – “Mas, então, fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele
se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com
uma palavra só, firme mas sem vexame: –
“Atravessa!” O canoeiro obedeceu. (72)
Essa
travessia do São Francisco foi um acontecimento fundamental na vida de
Riobaldo, algo que transformou todo o seu ser: O São Francisco partiu minha vida em duas partes. (199) Ele conta
que teve medo. Achava que o rio queria naufragar, mastigar e engolir tudo que
encontrasse, a aguagem bruta, traiçoeira.
O medo se tornou ainda maior quando, no meio da travessia, desfez a sua última
segurança ao descobrir que, se virasse, aquela canoa não boiava: “Esta é das
que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de pau-d’óleo não
sobrenadam...” – disse o canoeiro. A sensação de completa ausência de controle,
segurança nenhuma, chegou a dar uma tontura em Riobaldo – mas eu devo de ter arregalado doidos olhos. Quieto, composto,
confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” ele me disse. (72)
E esse conselho foi um presente definitivo na vida de Riobaldo – o presente (doréomai) divino (teo) de Diadorim (Teo-dorina).
No completo abandono em que se encontrava, disposto na angústia de não contar
com mais nada seguro, Riobaldo, ao ouvir Diadorim falar da coragem, acorda para
a necessidade de assumir o seu poder ser e, perfazendo súbita transformação,
experimenta o despertar de sua aurora:
O chapéu de couro que ele tinha era
quase novo. Os olhos, eu sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro.
Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me ver tremido todo
assim, o menino tirava aumento para a sua coragem. Mas eu agüentei o aque do
olhar dele. Aqueles olhos então foram ficando bons, retomando brilho. E o
menino pôs a mão na minha. ... Era uma mão branca, com os dedos dela delicados.
– “Você também é animoso...” – me disse. Amanheci a minha aurora. (73)
Por sustentar o olhar cheio
de dureza do menino, Riobaldo descobre a sua própria coragem e dela se
apropria. Então o menino o reconhece como um igual: você também é animoso... Essa descoberta e apropriação da coragem
faz Riobaldo tornar-se quem ele é, desperta a sua aurora. Esse amanhecer
corresponde à abertura de um destino, um fato que se dá, um dia se abre – o
primeiro!! Riobaldo conta essa estória da travessia do São Francisco a fim de
mostrar como a sua vida de jagunço começou. O acontecimento primeiro, o
instante extraordinário que transformou toda a sua vida, foi o aparecimento da
coragem; ela é o fundamento do destino de Riobaldo, a origem, começo e
comando, princípio e fim da travessia do grande sertão. Ao término desse relato do que amanheceu a sua aurora,
ele diz: Eu não tinha medo mais. Eu? O
sério pontual é isto, o senhor escute mais do que estou dizendo; e escute
desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe
contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa
importante falta nome. (74)
Precisamos escutar a estória
de Riobaldo com os ouvidos para ouvir mais do que ele diz, com uma escuta
desarmada, inocente, tão completamente doada ao que é contado que, por mercê desse
interesse, ouve, no que é dito, o que se oculta, o sobredito que falta nome. Esse
salto é o que a estória de Riobaldo nos convida a fazer; o seu propósito
principal é despertar a compreensão do que se oculta naquilo que a realidade
mostra e, assim, ver o invisível mistério do mundo – perceber as suas
silenciosas transformações. Ao despertar a sua própria coragem, Riobaldo descobre
o seu sentido de ser, transforma toda a sua existência, a compreensão dos entes
em seu todo, e ganha a propriedade de seu destino, verdade, liberdade – Soa a Heidegger, não? (DGR, 47)
- ~ -
O desempenho fundamental, no qual e pelo qual somente nossa
presença pode devir essencial, está em despertar a coragem para sermos nós
mesmos, para a nossa presença no mundo. A coragem para uma presença própria e
originária e seus poderes encobertos é a pressuposição fundamental para obter a
essência das coisas. É essa coragem que cria o ânimo, as disposições básicas em
que a presença se arroja até e de volta às fronteiras do sendo em seu todo. A
essência não vem ao encontro numa inspiração, não se elabora por uma “teoria”,
não se apresenta numa doutrina. A essência só se abre à coragem originária da presença
para o sendo em seu todo. Por quê? Porque
a coragem só se move dirigida para frente; ela se desloca do já dado,
aventura-se no risco do extraordinário e cuida do inevitável. A coragem, porém,
não é mero desejo contemplativo, ao contrário, a coragem fixa a sua vontade em
tarefas simples e claras, força e atrela a si todas as forças, todos os meios,
todas as imagens.[4]
- ~ -
A travessia do São Francisco
com o menino despertou a coragem de Riobaldo decidir o seu próprio destino,
tornar-se chefe dos jagunços, o Urutu-Branco, e vencer o diabo: Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como
menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando o meu ânimo para
se aventurar a travessia do Rio Chico, na canoa afundadeira. Esse menino, e eu,
é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! (261)
Diadorim é o menino que, na travessia do São Francisco, presenteia Riobaldo com
o destino de se tornar chefe dos jagunços e matar o Hermógenes: Para poder matar o Hermógenes era que eu
tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por
toda parte? (344) – A modo que o
resumo de minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do
Hermógenes. (364) Riobaldo amanheceu para o seu destino, quando tinha
quatorze anos, na travessia do São Francisco com o amigo Diadorim, ao descobrir
a sua própria coragem; o destino de Riobaldo, como travessia do grande sertão,
começa com a descoberta da coragem – ela é a condição fundamental de seu
desempenho, porque a coragem dispõe o homem no ânimo de perfazer as fronteiras
do sendo (ente) em seu todo e, assim, abrir-se à essência das coisas: a coragem
ensina ao homem ser na vigência da própria conjuntura e, perpassando a sua
ultrapassagem, descobrir o sentido de ser na travessia de seu acontecimento. Que: coragem – é o que o coração bate; se
não, bate falso. Travessia – do sertão – a toda travessia. (319)
A coragem é a disposição
fundamental de GSV, sua questão central: Queria
entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos
atos, dar corpo ao suceder. (69) A coragem é o que promove todo o destino
de Riobaldo, ela é a origem de sua travessia do grande sertão: O sério é isto, da estória toda: porque
viver é muito perigoso, carece de ter coragem. O perigo da vida consiste em ela
não estar nunca pronta, manter-se sempre aberta à possibilidade de ser diante
da morte. Por o homem nunca obter uma determinação certa e segura do que ele é,
mas sempre existir jogado na possibilidade de sua presença, temos que ser no
que estamos sendo, ex-sistir. Essa
necessidade é uma possibilidade, um poder ser, uma abertura existencial; nenhum
algo, um ente real, apenas a possibilidade de ser que se abre como necessária,
como precisando vir a ser, realizar-se. E como No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. (DGR, 8), essa
realização de nossa possibilidade existencial é a tarefa que nos foi concedida como
liberdade ou miséria: miséria para o alienado de si, cuja vida é um enigma e cruel
acaso; liberdade para quem tem a coragem de assumir o seu poder ser, fazendo de
todo foi assim, um assim eu quis e hei de querer – apropriando e perfazendo o
seu destino no eterno retorno de sua própria auto superação. Assim, com estas
transformações de seu espírito, Riobaldo se torna Tatarana e Tatarana,
Urutu-Branco e o Urutu-Branco, por fim, criança: Fui o chefe Urutu-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o Jagunço
Riobaldo (345) –, um pobre menino do destino...
Riobaldo é o
nome de batismo do menino órfão de pai e cuja mãe morreu quando ele tinha
quatorze ou quinze anos, pouco depois da travessia que amanheceu a sua aurora; Ela morreu, como a minha vida mudou para uma
segunda parte. Amanheci mais. (75) A morte da mãe amanhece mais Riobaldo no
sentido de amadurecer e consolidar o que havia se aberto com a travessia do
rio: porque somos sempre a nossa possibilidade de ser, viver é muito perigoso,
carece de ter coragem. Nonada, travessia. Eu
Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo,
homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. (132) Completamente
entregue a si mesmo, fundado no nada e jogado na travessia, Riobaldo, homem,
jagunço, logo se transforma em Tatarana. Tatarana
é taturana, ambira, bicho-cabeludo, lagarta-de-fogo, suçuarana; bicho-lagarta
que queima como fogo. Por sua excelente pontaria, reconhecido por todos por sua
mira e valentia, logo o jagunço Riobaldo passa a se chamar Tatarana: Ah, eu, meu nome era Tatarana! (278) Tatarana foi o seu nome até se
tornar chefe do bando, ocasião em que, rebatizado por Zé Bebelo, ganhou o nome Urutu Branco:
– “Mas, você é outro homem, você revira
o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...”
O nome que ele me dava, era um nome,
rebatismo desse nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto
que logo gritavam, entusiasmados:
– “O Urutu-Branco!
Ei, o Urutu Branco!...”
Assim era que, na rudeza deles, eles tinham
muita compreensão. Até porque mais não seria que, eu chefe, agora ainda me
viessem e dissessem Riobaldo somente,
ou aquele apelido apodo conome, que era de Tatarana.
(279)
Como
Urutu-Branco, Riobaldo é outro homem, tornou-se um chefe terrível, capaz de
revirar o sertão até achar e matar o Hermógenes, o pactário traidor. Essa sua
caçada (re)começa em outra travessia, a do Liso do Suçuarão, a mesma que,
outrora, Medeiro Vaz, o Rei dos Gerais, tentou, sem êxito, realizar. O Liso do Suçuarão não concedia passagem a
gente viva, era o raso pior havente,
era um escampo dos infernos. (27) A idéia de atravessar o Liso e capturar a
mulher legal do Hermógenes, que morava desprotegida do marido do outro lado,
nos fundões daquele deserto, foi de Diadorim, quando ainda Medeiro Vaz era o
chefe. Nessa ocasião, tudo foi planejado e preparado: haviam esperado o fim das
chuvas de março, para pegar o céu
perfeito, com os campos ainda subindo verdes, ajuntado boa cavalaria,
descansada numa fazenda próxima, e quantidade de comidas e mantimentos, em
tantos burros cargueiros: e que era
despropósito, por amor daquela fartura – as carnes e farinhas, e rapadura, nem
faltava sal, nem café. De tudo. (33) E
água, muita água nos bogós de couro e cabaças. Ainda três bons rastreadores
para farejar o caminho e, no intuito de tudo prever, antes uma consulta à filha
de ciganos, Ana Duzuza, dona adivinhadora
da boa ou má sorte da gente. (27) Com tudo planejado e preparado, visto, previsto
e revisto, certificado e seguro, Medeiro Vaz não conseguiu atravessar o Liso, e
teve que voltar com os seus homens do meio pra trás. Riobaldo, o Urutu-Branco,
tempos depois, ao contrário de Medeiro Vaz, decide fazer sua travessia sem
nada, preparativo nenhum, completamente entregue ao que acontecer.
Porque, o que eu estava mandando, nem
Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo sem nada!
Aprofundar naquele raso perverso – o
chão esturricado, solidão, chão aventesma – mas sem preparativos nenhum, nem
cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem
bogós de couro-cru derramando de cheios, nem tropas de jegues para carregar
água. Para que eu carecia de tantos embaraços? (...) Eu não era o do certo: eu
era o da sina! (322)
Ao contrário
de se prevenir com o cálculo de um planejamento que pretende assegurar
previamente de tudo, Riobaldo, fundado em sua coragem, disposto no ânimo que
abre o sendo em seu todo, se doa inteiro à travessia, descobrindo a sorte de
seu destino na conjuntura do acontecimento. E como gentileza gera gentileza, o raso daquele Liso abriu-se em flor,
reciprocidade de doação, integridade do interesse. O que era? Que o raso não era
tão terrível? Ou foi por graças que achamos todo o carecido nãostante no ir em
rumos incertos, sem mesmo se percurar? (323) – O céu enuveou dando mormaço
e refresco, acharam reses bravas para carnear e mais dois veados, gordos, e
água, muita água para os homens e cavalos. Ali
então tinha de tudo? Afiguro que tinha. (323)
Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço
nem desgosto, eu apalpei os cheios. (324) Riobaldo não era o do certo, mas
o da sina. Jogado no acontecimento da situação, perpassando a ultrapassagem de
sua conjuntura, aprende o que fazer na necessidade do que se abre, na
descoberta do que ocorre; ele é jagunço sertanejo, o chefe Urutu-Branco, que sabe
que mestre não é quem sempre ensina, mas
quem de repente aprende. Riobaldo é mestre e chefe porque sabe à medida que
aprende, e manda à medida que obedece. O sertão se abre a quem está aberto à
sua medida, disposto na coragem de ser de acordo com a sua vigência mais
essencial, descobrindo o que o ente é na conjuntura do que está sendo. O
acontecimento da conjuntura, a descoberta de seu sentido, é a medida que
compreende o sertão, constitui a força de sua sabedoria e o poder de seu mando.
Sei de mim? Cumpro. (385) Riobaldo,
Tatarana, Urutu-Branco traçam a sina de um
pobre menino do destino. GSV conta a estória de Riobaldo a fim de mostrar
como o homem pode se realizar a partir da coragem de acolher, assumir e decidir
o destino que se oferece. Dádiva da vida. Decisão que é graça, inocência,
assunção do que se abre como necessário a uma presença própria e originária,
descobrimento de ser, travessia do grande sertão.
[1] ROSA,
João Guimarães. Grande Sertão: veredas.
In: Ficção Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 46. Como
todas as citações de GSV são desta edição, farei apenas referência, entre
parênteses no corpo do texto, da página da obra.
[2] ROSA,
João Guimarães e LORENZ, Günter. Diálogo
com Guimarães Rosa. In: Ficção Completa, Vol. I. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1995, p. 49. Referência da página entre parênteses no corpo do texto
com a indicação DGR.
[3] Além do bem e do mal, título de uma obra
de Nietzsche citado em alemão por Guimarães Rosa. DGR, 45.
[4]
HEIDEGGER, Martin. Da essência da verdade.
Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2007. Coleção Pensamento Humano. P. 101.
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